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1. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

1.5. O uso da fotografia na reconstituição histórica via história oral

Desde sua invenção, a fotografia se transformou em um importante instrumento de registro dos mais variados eventos e foi entendida como uma espécie de “espelho do real”, pois seu uso provocava em outros tempos, a falsa ideia de um registro documental isento de qualquer interferência crítica. Durante décadas, foi amplamente empregada para ilustrar as mais variadas pesquisas, configurando-se nesta perspectiva como um interessante recurso para se autenticar a veracidade do trabalho. Todavia, a partir do último quarto do século XX, intelectuais de diversas especialidades insurgiram- se contra essa visão e a fotografia passou a ser encarada através de novas perspectivas. Nesta nova abordagem, cientistas sociais evidenciam a fotografia não mais como uma simples forma de expressão, mas também como protagonista e portadora de uma narrativa própria, que é criada dentro de um contexto social (MARTINS, 2008). Nesse sentido, a fotografia pode ser vista como uma reprodução de um recorte de uma determinada situação real, entretanto, sua representação e sua significação, vão além do que o próprio fotógrafo, em um primeiro momento, imaginaria que fosse.

Para Kossoy (1998), a fotografia possui um caráter polissêmico e o mais explícito desses sentidos é o que está expresso na imagem congelada, enquanto as demais significações permanecem ocultas, invisíveis a um primeiro olhar. Conforme Kossoy, é preciso mergulhar em seu conteúdo e nas circunstâncias de sua produção. É necessário ir além do exposto pela imagem, é preciso fazer com que as fotografias “falem”. Nesta lógica, adentrar no conteúdo produzido pela fotografia para decifrar o invisível, é um desafio metodológico que os cientistas que trabalham com expressões visuais devem assumir. Para Martins (2008), é preciso abandonar definitivamente a ideia de que a fotografia, de fato seja um documento objetivo e realista, pois há nela tensões que compelem as imagens para além do retratado, o que provoca significados ocultos e não intencionais, posto que toda imagem fotográfica possui algo além do explícito, um “ver a mais”, já que nenhum fotógrafo, mesmo sendo um amador, se constitui como um sujeito passivo, diante do que está fotografando.

Ao se observar uma fotografia, é possível afirmar que várias outras imagens são estimuladas e despertadas em nossa memória, para além daquela imagem inicial. De acordo com Leite (1988, p. 85), uma das condições necessárias para a leitura de uma

fotografia, seria “conhecer, compreender ou ter vivido a situação ou condições fotografadas”. Desta maneira, ao olhar para uma foto, não olhamos somente para ela, mas sim para a relação estabelecida entre a fotografia e nós. A autora ainda ressalta que, tanto o fotógrafo e o fotografado, quanto aquele que a contempla posteriormente e aquele que faz uso da imagem como fonte de informação, terão visões distintas da mesma fotografia, pois, analisam o mesmo objeto através de ângulos diferentes. Assim, “o ato de olhar demonstrou ser uma interação entre características do objeto e a natureza de quem o observa” (LEITE, 1988, p.85).

Nestas circunstâncias, podemos comparar as imagens fotográficas a imagens que armazenamos, em virtude de nossas experiências, em nossa memória. Boris Kossoy (1998, p. 42), afirma: “fotografia é memória e com ela se confunde”, assim, todo processo de reconstituição histórica originará uma “criação de realidades”, já que esse processo será todo fundamentado nas imagens recordadas pelo indivíduo. É essa associação, entre a fotografia e a memória, que tem possibilitado a vários pesquisadores analisar os mais diversos aspectos da sociedade através das imagens fotográficas.

O uso de imagens fotográficas, a partir de adequadas metodologias, tem se constituído em fontes inesgotáveis para a reconstituição histórica, principalmente se conjugadas a outras fontes de dados. Uma de suas potencialidades é a de agir como um mecanismo motivador de reconstrução e veiculação da nossa memória, seja como indivíduos ou como participantes de diferentes grupos sociais (SIMSON, 1998). Dentro dessa perspectiva, diversos pesquisadores têm feito uso de metodologias variadas para a obtenção de informações essenciais para o andamento de suas pesquisas. Há nesse sentido, uma íntima relação entre a fotografia, a História Oral e a memória. Ainda de acordo com Von Simson, a fotografia cumpre uma importante função na transmissão de estórias e memórias no seio familiar. Segundo a destacada pesquisadora,

as fotografias de antanho também exercem função importantíssima na transmissão para as gerações mais jovens de informações sobre o passado familiar. Através das imagens que nos restaram e das estórias que nos chegam pelas tramas da rede familiar, construímos uma interpretação da figura e da atuação de nossos antepassados no tecido social e a transmitimos para as novas gerações (1998, p. 22).

Em nossa pesquisa, adotamos a utilização das imagens fotográficas como meio de alcançar as memórias dos indivíduos que vivenciaram os festejos carnavalescos

em seus vários momentos, além de procurar reconstituir, a partir de suas análises, diversos aspectos do carnaval. Assim, concomitantemente, ao lado das perguntas arroladas em nosso roteiro, procuramos fundamentar as questões levantadas por nós, tanto em documentos de época (como recortes de jornais selecionados), como também nas antigas fotografias (cedidas pelos próprios depoentes) como também através de imagens já coletadas anteriormente, em uma fase preliminar de pesquisa. É interessante ressaltar que as fotografias ordenadas por nós, se constituem, em sua grande maioria, em fotos produzidas pelos próprios ex-moradores da Fazenda Cresciumal, de modo amador e em um período bem anterior à realização da pesquisa. Outro ponto a ser destacado diz respeito à autoria da imagem: a grande parte dessas fotografias foram sendo passadas e repassadas para diversas pessoas, o que inviabiliza a identificação dos autores destas imagens, ainda mais em um contexto em que a popularização dos instrumentos fotográficos e da divulgação das imagens, via mídias sociais, se tornou cada vez mais comum. Das fotografias expostas no trabalho, várias foram cedidas pelos entrevistados e outras são de autoria do próprio pesquisador e foram produzidas em diversos momentos da pesquisa, desde a participação no processo de fabricação de máscaras, como nos desfiles carnaval.

O acervo fotográfico foi organizado de duas maneiras distintas e complementares:

1- Ficha técnica, onde foi realizado o levantamento de dados referentes ao material

específico (autoria, ano, estado de conservação, foto impressa ou digital);

2- Ficha temática, na qual um detalhamento da cena retratada é produzido tentando

evidenciar os principais aspectos expostos pela fotografia como encenação, caracterização de cenário, identificação dos presentes ou mascarados, quando possível, e impressões do pesquisador a respeito do conteúdo da imagem embasado nas informações já acumuladas pela pesquisa.

Na etapa de organização e análise das fotografias coletadas16, dois grupos de imagens se formaram. De acordo com Von Simson (2015), o conjunto de fotografias pode ser dividido em “fotos frias” e “fotos quentes”. Assim, segundo a autora, as fotos frias

seriam aquelas que só explicitam as informações visuais, enquanto que as fotos quentes possibilitam ao pesquisador uma análise complementar.

Para as primeiras se tornava muito difícil ‘fazê-las falar’, no sentido de extrair do registro visual dados significativos de caráter histórico sociológico, enquanto o segundo tipo, que anexava uma informação oral ao registro visual, permitia estabelecer uma série de relações e interpretações que enriqueciam a reconstrução do fenômeno estudado (Von Simson, 2015, no prelo).

Tendo como norte essa técnica, foi possível, a partir do conjunto fotográfico reunido, extrair uma série de informações:

• A simplicidade das antigas máscaras produzidas pelos carnavalescos da Fazenda Cresciumal; o processo evolutivo na criação das

máscaras, ao longo dos anos;

• O uso de materiais alternativos para a confecção das fantasias; • A preponderância de adultos dentro do conjunto de mascarados; • A exclusão de mulheres do agrupamento dos fantasiados nos antigos

carnavais da Fazenda – anteriores a década de 1990;

• O amplo espaço que os foliões tinham para se divertirem na Fazenda, enquanto ocorria o desfile de carnaval;

• A variação no número de participantes do desfile de máscaras e também de visitantes;

• O envolvimento e aceitação dos membros da comunidade, no caso os moradores da Fazenda, com os festejos carnavalescos;

• A inexistência da cobertura desse carnaval pelos meios de comunicação anteriormente ao final da década de 1980;

• As modificações trazidas pela mudança do local do desfile, a partir da venda da usina;

• A delimitação do espaço festivo entre os fantasiados e os espectadores;

• A crescente participação de crianças e mulheres nos desfiles de máscara realizados no espaço urbano, entre outros aspectos.

Entendemos que o uso das fotografias conjugadas com outros tipos de dados e fontes históricas têm contribuído de maneira efetiva para a reconstituição histórica de nosso tema de pesquisa. Desta forma, a complementariedade das diversas fontes históricas possibilitou uma visão de conjunto, o que dificilmente conseguiríamos se fosse adotado somente um tipo de fonte. Para Von Simson (2015, no prelo)

[...] uma foto sozinha não permite fazer muitas inferências de caráter histórico- sociológico. Ela deve necessariamente ser associada a outras fontes de pesquisa (depoimentos orais, documentos, mapas, dados bibliográficos, além de outras fotos) para que as informações que contém possam ser visualizadas pelo pesquisador dentro de um contexto mais amplo, que permitirá a ele explorar ao máximo os dados registrados naquele suporte fotográfico.

Compreendemos que qualquer tipo de documento, seja oral, escrito ou mesmo fotográfico, é passível de inúmeras interpretações pelos pesquisadores de diversas áreas das ciências sociais, assim a análise feita por nosso trabalho não encerra a discussão e o aprofundamento da pesquisa em outros aspectos certamente poderá ainda ser feito por outros investigadores.

Concluímos nesse sentido que a utilização dos recursos imagéticos em nossa pesquisa possibilitou uma sensível interpretação de diversas particularidades presentes no carnaval de máscaras da Fazenda Cresciumal, além de exercer um importante papel no momento da tomada dos relatos orais estimulando e reativando as memórias dos entrevistados e fornecendo subsídios para a elaboração de questões a serem comentadas pelos ex-moradores da Fazenda.

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