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APÊNDICE U – LISTA DE ESCOLAS (L1+L2) 209 APÊNDICE V – LISTA DE ESCOLAS (L3+L4)

2. ANÁLISE DA JUSTIÇA DAS AÇÕES AFIRMATIVAS DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR

2.3. O utilitarismo clássico

2.5.1. O véu da ignorância e o consenso deliberativo

Imagine que um razoável número de doces seja colocado no chão, bem ao centro de uma sala onde estão 10 crianças. Há uma certa variedade de guloseimas que deverão ser divididas por elas próprias sem qualquer interferência externa. Para tanto, essas crianças ficarão paradas a certa distância enquanto um adulto as informará que caberá a elas decidir o que fazer com os doces e depois sairá da sala.

É possível imaginar que tais crianças deliberarão e ao fim dividirão tudo de forma equânime. Entretanto, certamente é mais provável que ao bater da porta, indicando a saída da sala do adulto responsável, elas saltarão sobre os doces enchendo seus bolsos com aquilo que conseguirem. Provavelmente as crianças mais ágeis e fortes partirão na frente, acumulando rapidamente guloseimas enquanto as mais franzinas dificilmente conseguirão algo.

Também é possível que a criança mais forte (uma espécie de valentão da turma) ou seu grupo tomem conta dos doces, não permitindo a aproximação das demais. A criança mais rica poderia sugerir que os doces fossem comprados. Seria possível, ainda, que a criança mais esperta usasse de sua sagacidade para convencer os demais da utilização de um procedimento que certamente o favoreceria na distribuição dos doces.

Na vida real todas as divisões sofrerão algum tipo de influência das condições pessoais dos indivíduos. É provável que cada um utilize suas características individuais para justificar critérios de divisão de bens que mais lhes convenha. O exemplo simplista das crianças na divisão dos doces denuncia a tendência humana de proteger seus interesses. No mundo dos adultos, da mesma forma se luta por dinheiro, poder ou prestígio.

Como então imaginar que as pessoas serão justas no estabelecimento dos princípios que definirão a distribuição dos bens mais fundamentais da sociedade se estas invariavelmente terão a tendência de proteger seus próprios interesses? Essa é a inquietação

26 Idem. Uma Teoria da Justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

que leva Rawls a imaginar uma posição original na qual seja possível o estabelecimento de um critério racional de justiça que não leve em consideração as contingências sociais.

Veja que o raciocínio de Rawls é sagaz: sabendo-se as consequências fáticas da tomada de uma decisão, de que forma garantir que estas não sejam motivadas por interesses meramente pessoais? É por isso que para ser justo é necessário abstrair as consequências fáticas de uma decisão sobre a sua própria vida e pensar nas mais diversas individualidades.

Para o estabelecimento de um critério racional de justiça, Rawls propõe uma teoria contratualista levada a um elevado nível de abstração, na qual a sociedade deliberará acerca dos princípios que regularão a distribuição dos bens que compõem a estrutura básica da sociedade27. Tais bens são aqueles que presumivelmente todo homem racional quer, por exemplo: os direitos, as liberdades, as oportunidades, a renda e a riqueza28.

Para tanto, cada um dos indivíduos é colocado em uma posição original, na qual é encoberto por um véu da ignorância29, que não lhe permite saber qual posição ocupará na sociedade, bem como de que forma será naturalmente dotado. A posição original é o status segundo o qual é possível assegurar que os consensos básicos sejam equitativos. Uma concepção de justiça como equidade é justificável quando pessoas racionais na situação inicial escolhem os princípios de justiça que regerão a sociedade. Entendida dessa forma, a questão da justiça se resolve com um problema de deliberação: É preciso determinar quais princípios seriam racionalmente adotados dada a situação contratual30.

No exemplo das crianças, é como se o adulto que estava inicialmente na sala informasse que elas teriam que deliberar sobre qual seria o critério de distribuição dos doces (sorte, força, inteligência...). Entretanto, também informasse que, após a escolha, aleatoriamente seriam escolhidas crianças que teriam os olhos vendados, outras que teriam pesos presos ao corpo para dificultar os movimentos e outras que usariam um fone de ouvido que emitiriam ruídos que prejudicariam a concentração. Dessa forma, sem saber de que forma seriam beneficiados ou prejudicados pelas decisões tomadas, provavelmente seriam tomadas decisões que beneficiassem a todos igualmente e compensassem a deficiência que possivelmente lhes seria atribuída. Por isso, a questão da justiça se torna uma questão de deliberação, onde os indivíduos, em posição de igualdade, devem cooperativamente eleger os

27 Ibidem. P.12.

Ibidem. P.66.

29 No original: “Veil of ignorance”.

30 RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins

princípios norteadores de justiça a serem aplicados nas relações subsequentes31.

São esses princípios de justiça acordados na relação original que servirão de baliza para a organização da sociedade. Note que Rawls, em sua teoria da justiça como equidade, estabelece um procedimento dialogal e pautado na cooperação, capaz de determinar os critérios avaliativos da justiça política. Trata-se, dessa forma, de uma filosofia deontológica, de inspiração kantiana, onde o estabelecimento dos critérios de bondade são definidos de forma dialogal.

Na prática, as situações são muito mais complexas. Para que uma escolha seja considerada racional é necessário conhecer as diversas crenças e interesses das partes e suas relações entre si. Como os contextos de todas as pessoas diferem, são aceitos diferentes princípios que lhes correspondem. Na busca de eliminar esses contextos, o conceito de posição original, do ponto de vista filosófico, é a interpretação mais adequada dessa situação de escolha inicial para o propósito de uma teoria da justiça.

Como decidir qual a decisão mais apropriada? Rawls afirma que há um amplo consenso de que os princípios da justiça devem ser escolhidos em condições determinadas. Para demonstrar uma descrição particular da situação inicial mostra-se que ela incorpora os elementos aceitos. Argumenta-se partindo de premissas genéricas de ampla aceitação para chegar a conclusões específicas. Cada um dos pressupostos é, em si, natural ou trivial, mas em conjunto esses estabelecem parâmetros adequados para os princípios de justiça aceitáveis.

Parece razoável e geralmente aceitável que ninguém seja favorecido ou desfavorecido pela sorte natural ou por circunstâncias sociais em decorrência da escolha de princípios. Mas ainda é necessário assegurar que convicções pessoais sobre o bem não afetem os princípios utilizados. Também parece razoável que as pessoas nessa situação sejam iguais, tendo os mesmos direitos no processo de escolha dos princípios. São todas consideradas pessoas éticas, que têm sua própria concepção de bem e que são capazes de ter um senso de justiça.

No estabelecimento das circunstâncias do estado original é necessário definir condições geralmente partilhadas e preferivelmente genéricas, verificando se este é suficiente para gerar um número significativo de princípios. Se não for, tais condições deverão ser reavaliadas. Uma vez que estas condições sejam avaliadas positivamente, tem-se o estado de equilíbrio reflexivo. Este, entretanto, não é necessariamente estável, pois está sujeito a ser perturbado por outro exame de condições que se pode impor a situação contratual.

31 Ibidem. P.12-13.

Não se propõe que os princípios de justiça sejam verdades necessárias ou que sejam derivados desse tipo de verdade, uma vez que uma concepção de justiça não pode ser deduzida de premissas axiomáticas ou de pressupostos impostos aos princípios. Seu pressuposto é um problema de corroboração mútua de muitas considerações, do ajuste de todas as partes em uma visão coerente32.