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O VÍDEO E AS ESFERAS DO EXPERIMENTAL E DO INSTITUCIONAL

Além das noções de gênero (ficção e documentário), para este estudo, devem ser definidos outros dois conceitos: o experimental e o institucional que, seguindo o pensamento do que se convencionou chamar “o Círculo de Bakhtin” serão denominados como “esferas” (GRILLO, 2006), por serem concebidos como locais de produção ideológica.

A esfera do experimental é definida aqui como um espaço de relativa liberdade criativa, em que não se percebem claramente as injunções e interferências do contexto, enquanto que esfera do institucional se mostra como uma zona delimitada de forma mais evidente por normas coercitivas que demandam e determinam modos de agir, seja na criação artística ou no comportamento social.

Entende-se que o experimental se liga ao imprevisível, à mobilidade; enquanto que o institucional se associa à idéia de sistema arbitrariamente construído, à fixidez; porém, ambos partícipes da construção ideológica do cotidiano e que, se não são esferas antagônicas, são instâncias distintivas da fala, gestos e atos humanos que se interpenetram, dialogam.

Diga-se assim, é pela repetição da experiência e tomada de consciência que se pode chegar à institucionalização. E, ainda, o que é institucionalizado acabará por influenciar as novas experiências, retirando delas um pouco de sua originalidade, coagindo-a com seus limites, que para serem superados deverão ser re-

experimentados, tendo que atingir certo grau de crítica libertária, de ato revolucionário, para que possa provocar alguma ruptura na sua fixidez institucional.

Há inúmeras formas de fazê-lo. Para o caso da linguagem, algumas dessas formas podem ser representadas por “subgêneros”. No caso da ficção, uma dessas formas é representada pela paródia, em que o riso parodístico se mostra como um elemento crítico com poder corrosivo, e conseqüentemente, de ruptura.

O riso, segundo Rabelais,

tem um profundo significado filosófico; é um ponto de vista particular sobre a experiência, não menos profundo que a seriedade. É uma vitória sobre o medo que torna comicamente grotesco tudo o que aterroriza. O riso popular festivo triunfa sobre o pânico sobrenatural, sobre o sagrado, sobre a morte; provoca a queda simbólica de reis, de nobrezas opressoras, de tudo o que sufoca e restringe. (apud STAM, 2000, p.44).

De acordo com Aumont e Marie, a paródia é uma “imitação burlesca ou cômica de uma obra séria” e “teve, no cinema, uma produção constante, desde os primeiros tempos (...)” (2003, p. 222). No Brasil ocupou lugar de destaque quando da tentativa de se criar uma “indústria cinematográfica nacional”. Grandes atores se notabilizaram neste estilo: Oscarito, Grande Otelo, Anquito, Dercy Gonçalves, Zezé Macedo e, muitos outros. (BERNARDET, 2007).

Bakhtin, em suas teorias sobre o romance, associa plurilingüísmo e riso, como formas de dessacralizar e relativizar os discursos, reafirmando seu caráter ideológico, cuja principal característica é romper o instituído. Segundo ele,

rir dos discursos deixa clara a sua unilateralidade e os seus limites,

descentrando-os, portanto. A consciência sócio-ideológica passa a percebê- los como apenas um entre muitos e em suas relações tensas e

contraditórias. O riso destrói, assim, as grossas paredes que aprisionaram a consciência no seu próprio discurso, na sua própria linguagem. (apud FARACO, 2003, p. 79).

Como já foi dito, esta pesquisa trata da prática de fazer vídeos numa escola pública, da diferenciação entre o que se pode perceber a partir do ponto de vista da ficção, do experimental e do risível, em contrapartida ao documental, ao institucionalmente construído, ao sério e objetivo; ou seja, trata-se de analisar e compreender de que forma são construídas tais maneiras de interpretar e representar o mundo. Assim, concorda-se com Bakhtin, quando ele diz que o “ponto de vista é mais do que uma questão técnica; é também uma questão social, política

e ética, uma concretização das diversas potencialidades das relações eu - outro” (apud STAM, 2000, p. 99).

Tratam-se, portanto, de esferas intercomunicantes, dialógicas. O vídeo em seu papel de mediador é, também, porta voz de anseios e demandas em permanente negociação, ou seja, o ato de fazer um vídeo é em si, uma ação dialógica, transformadora de comportamentos e atitudes diante da realidade.

Falando da linguagem cinematográfica, aqui extensiva ao vídeo, Aumont e Marie assim a definem:

Ver um filme é, antes de tudo, compreendê-lo, independentemente de seu grau de narratividade. É, portanto, que, em certo sentido, ele “diz” alguma coisa, e foi a partir dessa constatação que nasceu, na década de 1920, a idéia de que, se um filme comunica um sentido, o cinema é um meio de comunicação, uma linguagem. (2003, p. 177).

Antes disso já haviam surgido teorias, tais como: “cine-olho”, de Vertov (1922); “cine-língua” ou “cine-linguagem”, de Kulechov e Eisenstein (1929); “docu- ficção”, de Flaherty (1934); entre outros; procurando através de uma metáfora delimitar uma linguagem específica do cinema. Eisenstein, mais que todos os outros, funda um “cinema intelectual”, cuja principal implicação consistia no fato de poder articular seqüências de planos em razão de um sentido a ser produzido. Assim, como relatam Aumont e Marie, “[...] de maneira geral, a idéia de linguagem, a fortiori a de língua, têm, sobretudo, acompanhado as estéticas fundadas na montagem e sobre a marcação forte dos meios expressivos” (2003, p.178).

Apesar de reconhecer que a montagem é apenas um dos recursos de que se pode utilizar para compor o enunciado fílmico, entende-se que o seu papel na construção do sentido é fundamental, principalmente pela possibilidade que a montagem apresenta de re-construir o enunciado fílmico segundo um determinado ponto de vista.

A definição técnica de montagem é simples: trata-se de colar uns após os outros, em uma ordem determinada, fragmentos de filme, os planos, cujo comprimento foi igualmente determinado de antemão. Essa operação é efetuada por um especialista, o montador, sob a responsabilidade do diretor (ou do produtor, conforme o caso). [...] Todo filme, ou quase todo, é

montado, mesmo se alguns comportam poucos planos. [...] Entretanto, o papel da montagem não é o mesmo em todos os filmes. A maior parte do tempo, ela tem, a princípio, uma função narrativa: a mudança de planos, correspondendo a uma mudança de ponto de vista, tem por objetivo guiar o

espectador, permitir-lhe seguir a narrativa facilmente (correndo o risco de inverter essa possibilidade e fazer uma montagem que obscureça nossa compreensão, como ocorre freqüentemente com o filme policial, até hoje). (AUMONT e MARIE, 2003, p. 196).

É justamente este papel de “guia do espectador” que faz da montagem um dos elementos de que se apropria o realizador para “dizer” aquilo que pretende de uma forma tal que possibilite a percepção imediata (ou não) do enunciado fílmico. Diga-se, uma montagem linear pode ser acompanhada sem muito esforço intelectual, enquanto que uma montagem truncada, não-linear, pode exigir certo exercício mental que tornará a compreensão um pouco mais complexa para um determinado tipo de público.

Para o caso específico deste estudo em que estão definidos como objeto de estudo: para o vídeo-ficção experimental, a montagem se constitui num campo de experimentações e negociações bastante aberto, o que não se depreende como totalmente livre de interferências de contexto; para o vídeo-documentário institucional este exercício de liberdade se orienta tanto pela intencionalidade de uma narrativa mais direta, quanto pela demanda da instituição, cujo interesse seja o de produzir um discurso ideologicamente evidenciado por seus objetivos.

De toda forma, a montagem acaba por se constituir num campo de negociação de sentido e significados, e estará de algum modo atrelado à questão de gênero, que infere uma determinada pontuação, relações de metáfora, efeitos rítmicos e plásticos diferenciados para um vídeo-ficção ou um documentário, por exemplo. E ainda, esta montagem estará sujeita a injunções da esfera na qual se insere, e sendo experimental ou institucional comportará intencionalidades distintivas e, portanto, resultados distintos.

Em síntese, nesta pesquisa, a prática de fazer vídeos numa escola pública é descrita como uma ação coletiva que se dá num determinado contexto, ou seja, como uma prática cultural situada, dependente tanto dos sujeitos envolvidos quanto de sua localização histórica e geográfica. Seus resultados, denominados como objetos audiovisuais, ou simplesmente vídeos, por serem provenientes de um ato lingüístico podem ser classificados de acordo um conjunto de características que os definem, oportunamente, como gêneros, ficção e documentário, sujeitos a injunções e interferências provenientes de espaços de produção ideológica distinguidas por

esferas do experimental e institucional. Destas interpenetrações se constrói um campo, uma situação, no interior do campo se dá o processo da pesquisa. O próximo passo é delimitar as unidades de análise a partir das quais serão destacadas as evidências que possibilitem atingir o objetivo proposto: documentar e interpretar algumas das motivações que levaram este grupo de pessoas a realizarem, neste contexto, a prática de fazer vídeos.

4 CASO ÚNICO: MÚLTIPLAS EVIDÊNCIAS

Tendo sido definido, metodologicamente, este trabalho como “um caso único incorporado” (YIN, 2005), tendendo a “um contínuo auto-biográfico etnográfico” (JOHNSON et ALL, 2006) e etnológico (GEERTZ, 1989); ele está orientado pela idéia de que há uma situação única de pesquisa, na qual podem ser identificados múltiplas evidências que representam unidades de análise, inscritas em três momentos e condições distintas que podem ser delimitados cronologicamente em um antes, um durante e um depois.

De início, considere-se que, a conjunção de fatores, condições e atores- agentes, se deu graças ao Programa de Pós Graduação em Tecnologia (PPGTE), da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), onde ocorreu o encontro com o professor Paulo Renato Araújo Dias, também mestrando do programa, participante fundamental na articulação deste trabalho e também uma das personagens a que me refiro. Funcionário docente do Colégio Estadual Professora Ottília Homero da Silva, local e contexto da pesquisa, que chamarei doravante de Colégio Ottília, ou apenas Colégio, mostrou-se, a princípio, interessado no projeto de cineclubismo “Cinevídeo na UTFPR”33, desenvolvido como atividade dos grupos: “DArc”34 e “dmi”35, no PPGTE, em que expressou a vontade de estendê-lo (o projeto de cineclubismo) aos alunos do referido Colégio, em função das proposições do “Grupo Camélia”, um grupo de estudos que formara com seus alunos no ano de 2006.

Como dito no capítulo 2, neste trabalho optou-se por identificar os sujeitos (e unidades de análise) com seus nomes, endereços e características particulares. Vale reiterar que as razões se encontram em função da defesa de uma postura engajada, bem como pelo fato de os participantes da pesquisa já estarem identificados no vídeo-documentário institucional realizado durante o processo.

33

Mostra de filmes temáticos acompanhados de debate exibidos na última sexta-feira de cada mês.

34

Grupo de Pesquisa: “Design, Arte e Cultura”, coordenado pelo Prof. Luiz Ernesto Merkle, no PPGTE, UTFPR.

35

Grupo de Estudos: “Design de Mídias Interativas”, coordenado pela Prof.ª Maristela Ono, no PPGTE, UTFPR.

Desta forma, descrevem-se lugares e pessoas, com a intenção de reafirmar a idéia de que a ciência se faz coletivamente, sempre eivada de referências e injunções de outrem e do contexto. Entrementes, mesmo que as palavras (e enunciados) sejam reflexos e refrações da situação e circunstâncias em que se viva, defende-se aqui, como nos Estudos Culturais, que a denominação explícita dos sujeitos da pesquisa não é uma questão de individuação autoral, mas da compreensão de particularidades.

Procede-se, assim, à contextualização e situação da pesquisa, partindo de sua localização geográfica, identificando o local onde este grupo de pessoas realizou sua prática, no interior de uma escola pública, descritas aqui de forma reconhecidamente sumária.

A apresentação destes dados iniciais tem a intenção de, apenas, situar os locais onde se desenrola o caso em estudo: O Colégio Estadual Professora Ottília Homero da Silva, no bairro Jardim Amélia, cidade de Pinhais, região metropolitana de Curitiba. A maioria dos envolvidos reside na comunidade, alguns a mais, outros há menos tempo. Seus familiares foram, em grande parte, ativos participantes do movimento reivindicatório da construção, e depois, da denominação oficial do Colégio.