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A OBRA LITERÁRIA COMO COMUNICAÇÃO

Neste capítulo apresentaremos as premissas teóricas e meto- dológicas que orientarão a análise que nos propomos fazer do "cor- pus" escolhido.

Consideramos que as obras de ficção narrativa, em particu- lar, e as obras literárias, em geral, participam num processo com- plexo de comunicação .

Trata-se de uma comunicação "sui generis", por muitas ra- zões. Uma delas e o facto de o destinador (o autor) e o destinatá- rio (o leitor) não se encontrarem presentes, nem espacial nem tem- poralmente, alem de os respectivos contextos serem diferentes. Por outro lado, o destinatário é uma dimensão desconhecida na sua indi_ vidualidade por parte do autor. Deste modo, as instâncias emisso- ras e receptoras têm de ser estudadas separadamente, como elemen- tos diferentes no processo comunicativo. E os factores que os con- dicionam são muito diferenciados, sendo tanto de ordem individual como colectiva.

Qualquer texto escrito tem a sua origem directa no autor; mas como tal não é senão um artefacto, uma materialidade linguistic

ca. Ele só se realiza como obra literária uma vez separado do autor pelo acto de publicação, através da leitura. As duas instân- cias (autor/leitor) são assim fundamentais para que o texto se tor ne objecto e factor de comunicação.

Uma tal posição implica que se tenham em conta na análise essas duas instâncias: o nível da produção e o nível da recepção. Enquanto, no lado da produção, se encontra um autor concreto, com um trajecto mais ou menos referenciãvel, marcando o objecto produ-

zido com traços que apontam, directa ou indirectamente, para esse trajecto, no lado da recepção temos um publico anónimo e variável, se exceptuarmos a recepção crítico-valorativa , que fixa em texto a sua reacção ao texto lido.

Na analise que nos propomos fazer da obra de Koeppen, parti_ remos dos textos, deixando de fora do nosso trabalho a dimensão da recepção concreta, que só encontrará eco nas referências as vozes dos críticos e estudiosos dos romances daquele autor. Quanto a in_s tância emissora, ela será abordada, na medida em que os textos são portadores das suas marcas .

Mas torna-se necessário definir mais desenvolvidamente o que entendemos por obra literária. G, como qualquer discurso con- creto, um facto social, tanto a nível da produção como a nível da

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recepção , tendo a sua origem num sujeito ancorado no plano social e no plano histórico. Nesta acepção, a obra literária e sempre, de maneira mais ou menos directa, um discurso social e historicamente marcado.

A obra literária, ainda que ganhe autonomia face ao seu tem po e se apresente como aberta á leitura noutros tempos, está sem- pre ligada a época da sua escrita, embora as marcas temporais se- jam sempre filtradas pela consciência do autor. Como objecto de circulação, a obra literária vai ser concretizada através do acto de leitura. Isto significa que a leitura de uma obra - a atribui- ção de um sentido - vai depender, entre outros factores, da "cons- ciência colectiva" da sociedade do leitor, como já o fora relati- vamente ao autor.

Partindo da vida e da historia como sendo, por natureza, dialogicas , a obra literária funciona como um diálogo a vários ni veis: entre o autor e o seu tempo, o autor e o sistema literário

da, o autor e o leitor, o leitor e a obra, o leitor e o seu tempo, o leitor como receptor de outras obras...

0 texto literário ganha assim um duplo caracter: é simulta neamente não autónomo e autónomo; não autónomo pela sua forte li- gação ao social, autónomo, porque, desligado do seu tempo, entra em novas relações dinâmicas, em permanente mutação, dado que o mo mento de recepção é uma variante histórica a partir de uma cons- tante, que representa o texto na sua materialidade linguística.

Através do seu autor, a obra acolhe vários "textos" so- ciais, que aí ganham uma dimensão outra, em relação aos seus con- textos originais. Citando Bakhtinc, em tradução francesa:

II (o prosador-romancista) accueille le plurilinguisme et la plurivocalité du langage littéraire et non littë raire dans son oeuvre, sans que celle-ci en soit affai blie; elle en devient même plus profonde (car cela con tribue ã sa prise de conscience et à son individualisa tion) .

Desse modo, esses textos exteriores tornam-se elementos

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constitutivos da obra , só que não entram directamente nela, mas sempre mediatizados através de uma consciência individual. 0 au- tor selecciona dados desse mundo, cria novas relações, novos con- textos, construindo, a partir de elementos da realidade, um uni-

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verso de referencias autónomo . Por isso, a realidade textual e simultaneamente autónoma e ligada ao real, sendo possível encon- trar no mesmo texto a autoreferencialidade e a heteroreferenciali_ dade, em graus que divergem de obra para obra.

0 esquema que se segue resume o modo como concebemos o fun cionamento comunicativo do texto literário narrativo, tendo em conta os momentos referidos: o da escrita e o da leitura.

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No lado da produção encontra-sc um autor como sujeito so- cial, inserido num contexto individual c colectivo. Mas importa definir com mais detalhe o que entendemos por produção literária. Toda a criação literária parte de uma ideia e de um projecto que darão origem ao trajecto da escrita. Neste processo, o autor pode rã manter-se proximo ou afastar-se do projecto inicial, por influ ência de vários factores, incluindo os ligados a propria escrita. 0 acto da escrita em si, como jã o têm afirmado muitos autores, é um acto de solidão. Mas o autor é, como jã referimos atras, o cru zamento de muitas vozes, quer exteriores, quer interiores, que in terferem no acto da escrita. Neste sentido, um discurso de um au- tor ë o lugar de inter-relação de varias instâncias discursivas: - de discursos sociais (políticos, religiosos, culturais,

etc.) ao tempo da escrita;

- dos discursos que formam o contexto sõcio-cultural espe- cífico do autor;

- dos textos de outros autores (literários ou não) que, de um modo ou de outro, influenciam o discurso do autor, na

, - 10 sua produção -.11

cal

Poderemos assim dizer, como Bakhtine, que a obra ë plurivo Além da presença, sempre filtrada, destas vozes, a obr; narrativa representa uma determinada reacção ao mundo e ã realida

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de que lhe e contemporânea . Deste modo, ao escrever, o autor não fala so sobre o seu mundo, fala também de si próprio e do mo- do como apreendeu a realidade. Isto não implica que ao conteúdo do romance corresponda necessariamente uma verdade extratextual. A verdade do mundo ficcional reside nele próprio; trata-se, como nota Anderegg, de uma verdade intratextual, em oposição a uma ver

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"heteroreferir", isto é, "apontar" para uma realidade exterior, que esta na origem da realidade ficcional. Assim, as duas realida- des estão ligadas, apesar de serem ontologicamente diferentes. Es- ta questão da "verdade" do texto literário ë um problema complexo - pois à "verdade" do autor e à do texto, acrescenta-se a do lei- tor, que na reconstituição da obra vai re-constrti ir uma "verdade",

14 a partir da que apreendeu no texto

Esta "verdade" tem a ver com muitos factores, não sõ com a situação sõcio-histõrica dos autores e leitores, mas também com os horizontes de expectativa das várias situações receptivas face aos diferentes géneros. A este respeito diz Waldmann:

... die "Wahrheit" eines fiktionaln Textes grílndet so in der "kommunikationstfsthctischen AdHquanz" von inter- dependenter Wirklichkeits- und Kunstdarstellung des Au tors mit interdependenter Wirklichkeits- und Kunster- wartung des Rezipienten und ist damit "dialektisch"

strukturiert .

Temos, portanto, três níveis de "verdade":

l9 - a verdade da realidade extratextual que esta na origem

da actividade de escrita do autor;

29 - a verdade ficcional criada pelo autor;

39 - a verdade ficcional re-criada pelo leitor, a partir do

texto, dependendo esta das expectativas e das diferen- tes condições de recepção, quer dentro do sistema lite_ rário, quer fora dele.

Nos 29 e 39 níveis de "verdade" há uma suspensão da relação

com o l9, o que permite ao leitor percepcionar uma realidade "não

corporal" , contrariamente àquela que ele percepciona na sua vida quotidiana.

tar uma evasão, uma critica, uma antecipação; pode analisá-la, des truí-la, louvã-la, reconstituí-la,mas sempre dentro dos seus pró- prios critérios de verdade, portanto so verificáveis nela própria.

A escrita ê uma certa reacção individual ao mundo. 0 mesmo se passa com a leitura, só que aqui se trata de uma reacção a uma

- 17 reacção, ou, como diz Krusche, uma "Fremderfahrung" . 0 processo

de leitura tem, como se vê no esquema I, muitas semelhanças com o processo de escrita. Em ambos os processos temos uma atribuição de sentido, a constituição de um determinado inundo. Mas os pontos de partida são diversos. Enquanto que o escritor produz um texto ate ai inexistente (apesar do seu relacionamento com textos pré-exis- tentes), o leitor parte de um texto já produzido. 0 autor "consti-

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tui", o leitor "reconstitui" - ha "TransfermUglichkeiten" de uma percepção de um para a de um outro, na concretização do texto na leitura. Concretização essa que implica, por um lado, a re-constru ção do texto, uma apropriação do artefacto, mas também, por outro lado, a projecção dos horizontes do próprio leitor, na atribuição de um sentido ao texto. Isto implica que a leitura de uma obra de- pende da época histórica em que ó feita: a atribuição de sentido implica uma relação dialógica do leitor com o texto, mas também com o seu próprio tempo. Utilizando os termos de Zimmermann, pode- mos dizer que a obra é sempre "immcrgleich" (na sua materialidade linguística) e "immerneu" (nas suas várias leituras, ao longo dos

,19 tempos)

Depois destas considerações gerais sobre a obra literária, nomeadamente sobre a produção e a leitura como momentos integrados numa relação comunicativa, importa agora definir em que medida se pode falar da comunicação entre o autor e o leitor.

2.2. A COMUNICAÇÃO ENTRE O AUTOR li O LEITOR

Neste parágrafo, discutiremos se ha comunicação entre autor e leitor ou so entre o texto e o leitor.

No que respeita à literatura narrativa escrita, não ha comu nicação directa entre o autor c o leitor. Este contacta so com o texto, sem possibilidade de interpelar o autor sobre o "comunica- do", no momento da leitura.

A comunicação literária entre o autor e o leitor realiza-se em dois tempos autónomos um do outro:

l9 tempo: o da escrita

AUTOR >TEXTO 29 tempo: o da leitura

LEITOR > TEXTO

Entre os dois tempos não há, geralmente, coincidência espa- cial e/ou temporal. A comunicação 5, portanto, indirecta, mas ela existe no sentido em que há um elemento comum que transporta o dis curso do autor para o leitor: o texto. A escrita pressupõe a leitu_

- 20 ra, portanto, a comunicação

Johannes Anderegg recusa a possibilidade de uma comunicação entre autor e leitor CA—>L), porque o receptor não pode atingir o "campo referencial"("Bezugsfeld") do autor,

die jeweilige TotalitHt aller íiusseren, "objektiven" und aller inneren, "subjektiven" Faktoren - sie seien nun reflektiert oder unreflektiert - welche die Wirkung einer Wahrnehmung, speziell die Wirkung einer Mitteilung bestimmen

Segundo este estudioso, para haver comunicação é necessário uma coincidência maior ou menor dos "campos referenciais".

Havendo descontinuidade temporal e de "campos referenciais", o locutor/autor so chega através da obra. 0 texto substitui-se ao autor na apresentação do discurso, ganhando uma função de emissão.

De facto, o "campo referencial" do autor não esta ao alcan- ce do leitor, a não ser pelas marcas deixadas no texto e por even- tuais conhecimentos extra-textuais. 0 leitor vai procurar recons- truir não o "campo referencial" do autor, mas o do texto, com os seus vários níveis de referências (explícitas e implícitas).

Esquematizando:

CR - AUTOR > CR - TEXTO <- CR - LEITOR

Assim como o CR-TEXTO não é idêntico ao CR-AUTOR, também não pode ser idêntico ao CR-LEITOR. A leitura ê um encontro entre o CR-TEX- TO e o CR-LEITOR. 0 CR-TEXTO é apresentado através de uma materia- lidade linguística que servirá de base ao leitor para o pôr em dia logo com o seu próprio CR, isto ê, através do CR do texto, o lei- tor entra em dialogo consigo próprio.

A perspectiva de Andcregg c, a nosso ver, limitativa, redu- zindo o processo da leitura ao contacto entre o CR do leitor e o do texto, mas chegando mesmo a sugerir a impossibilidade de se atingir o CR do texto. Ha uma recusa da possibilidade de o leitor ter determinados conhecimentos "objectivos" acerca das condições de produção textual. Ora, se se puderem analisar as relações entre o autor e o texto, conscgue-se estabelecer parte do CR textual.

0 que pretendemos defender é que os três CR - o do autor, o do texto e o do leitor - participam no mesmo processo comunicativo e deverão ser tomados em conta numa perspectiva que queira estudar o texto literário como uma comunicação. Na nossa análise, daremos, portanto, mais importância ao CR do autor do que o esquema de An- deregg propõe, justamente por concebermos a comunicação nos seus dois tempos, a produção e a recepção, enquanto aquele estudioso

privilegia apenas o segundo.

0 seguinte esquema, baseado no de Zimmermann, é, por isso, mais completo do que o de Anderegg, precisamente por ter em conta os três CR22:

ESQUEMA 2

Neste esquema torna-se claro que os três CR se encontram re lacionados, havendo mesmo uma coincidência de CR, marcada pelas in tersecções. Torna-se também claro que não há uma coincidência to- tal. Este facto não invalida a necessidade metodológica de se pro- curar os CR respectivos, sabendo de antemão que não ê possível a sua apreensão total. Em muitos casos, torna-se difícil chegar ao CR do autor: mas através de estudos biográficos, de trabalhos de historia literária e outros, alem de próprias afirmações do autor em textos não ficcionais, podemo-nos aproximar do CR do autor.

0 texto acaba por, na sua actualização pelo leitor, ser "completado" na leitura pela inclusão do terceiro CR.

A nosso ver, portanto, pode-se falar de comunicação entre 23

autor e leitor , mas tendo em conta que se trata de um processo em dois tempos, sem relação directa, através da mediatização pelo texto.

Qualquer texto pode ser encarado como algo simultaneamente fechado e aberto. 0 lado "fechado" é uma constante histórica, está fixado linguisticamente, e como tal c passível de ser estudado no seu sentido "objectivo", as suas estruturas, as suas eventuais pre visões de leitura, as suas instruções de leitura: ê o lado "verifi cavei", analisãvel do texto. 0 lado "aberto" é uma dimensão histo-

ricamente variável, só preen.chível a nível das leituras indivi- duais, onde ha um investimento subjectivo do leitor na atribuição de um sentido . Nesse sentido,este lado do texto pode ser estuda- do sobretudo através da história das leituras e da sociologia da leitura.

A leitura torna-se, como variante, uma "co-produção", a par 7 Ç -

tir de um texto previamente produzido . Mas há diferentes graus de cooperação, de envolvimento do leitor. Segundo Mukarovsky, quan to mais o leitor se deixa absorver pela obra, mais se projecta ne- la, "mais ampla ê depois a esfera das realidades correntes e impor tantes na sua vida, realidades com as quais a obra adquire uma re-

7 A laçao autêntica"

Ë neste sentido que consideramos a leitura como um momento no processo comunicativo, que tem a sua origem no autor e que se

transmite pelo texto* O texto ê autónomo, na medida em que o autor deixa de exercer controle sobre ele; mas o texto continua, apesar

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disso, a ser um enunciado de um sujeito real . E este enunciado que servira de base para a constituição de sentido no acto da lei- tura. Nesse enunciado encontraremos, como veremos, várias instân- cias comunicativas intratextuais, mas todas elas têm a sua origem na instância comunicativa primeira e extratextual, que ê o autor.

As virias instâncias comunicativas nos textos narrativos ficcionais serão analisadas no parágrafo seguinte.

2.3. O TEXTO NARRATIVO COMO OBJECTO DE COMUNICAÇÃO E OS VÁ-

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