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CAPITULO 2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA DO REFERENCIAL DO DIREITO À

2.2 DIREITO A SAÚDE: CONSOLIDAÇAO HISTORICA INTERNACIONAL

2.2.2 O direito à saúde no Comentário n.14 de 2000

2.2.2.3 Obrigações dos Estados Parte

Tal como referido no começo deste Capítulo, o Comentário Geral n. 14 de 2000 enfatiza obrigações estatais classificadas em; gerais, específicas, internacionais e essenciais. A seguir, discorrer-se-á sobre cada uma.

Nas obrigações gerais se explicita a realização progressiva do direito à saúde; isto é, a legislação em direitos humanos reconhece o fato de que a efetivação imediata deste tipo de direito nem sempre é possível, especialmente, para os países de baixa renda17. No entanto, os governos têm o dever de apresentar

17 Conforme os indicadores de desenvolvimento mundial proferidos em 2016 pelo Banco Mundial, a caracterização das economias dos países por meio do termo “em desenvolvimento” e “desenvolvidos”, não reflete a sua heterogeneidade; sendo assim, este órgão propôs a agrupação de países baseado nos seus níveis de ingressos e sua cobertura geográfica. Portanto, o Banco Mundial não estabelece a distinção entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, passando a

um plano ao longo prazo que defina passos concretos, compromissos políticos e medidas financeiras que atinjam à sua materialização. Neste sentido, se impõe aos Estados algumas obrigações de caráter imediato, por exemplo, garantir que o direito à saúde será exercido sem descriminação alguma e o dever de iniciar gestões concretas orientadas à completa proteção e realização do Artigo 12. Note-se que os Estados têm uma obrigação permanente de progredir de forma rápida e efetiva até alcançar o desfrute do mais alto nível possível de saúde da sua população, sendo assim, medidas que impliquem retrocessos no campo da saúde, não são permitidas pelo CDESC (6).

No tocante às obrigações específicas, cabe salientar que o direito à saúde, como todos os direitos humanos impõem três tipos de obrigações aos Estados; respeitar, proteger e realizar.

O respeito, no campo do direito à saúde, se refere à obrigação negativa dos Estados de não interferir direta ou indiretamente, com o seu desfrute, por exemplo, evitar a imposição de restrições à acessibilidade aos serviços, bens e instalações de saúde, os quais, devem ser providos de forma igualitária às pessoas, incluindo pessoas privadas da liberdade, minorias, e imigrantes ilegais; bem como abster-se de impor práticas, tratamentos e políticas discriminatórias relacionadas com a saúde destes grupos. Do mesmo modo, o dever de respeitar exige aos Estados abster-se de reter informações sobre saúde e de impedir a utilização dos métodos tradicionais na prevenção, tratamento de doenças (6).

A obrigação de proteger exige a adoção de mecanismos que impeçam que terceiros ou instâncias privadas, violem o direito à saúde, logo, é imperativa a promulgação de leis e regulamentos que supervisem a privatização dos serviços de saúde, com vistas a que não sejam indisponíveis ou inacessíveis. Acrescente-se que o dever de proteger torna indispensável o controle estatal na comercialização de medicamentos por parte de terceiros e também requer que os profissionais da

adotar as denominações; países de alta renda, países de mediana renda e países de baixa renda (78).

saúde disponham de standards apropriados de educação que garantam suas habilidades e o seguimento dos códigos de ética profissionais (6).

Finalmente, o dever de realizar refere-se à promulgação de normativas, medidas administrativas, orçamentárias e judiciais que visem à efetivação do direito à saúde. Nessa linha, a realização compreende ações dirigidas a facilitar, proporcionar e promover este direito. A obrigação de facilitar é entendida como a criação e a implementação de medidas para que indivíduos e comunidades possam usufruir o direito à saúde; o dever de proporcionar considera casos nos quais, pessoas ou grupos são incapazes por si mesmos de atingir a satisfação do direito à saúde; e, por fim, a obrigação de promover, compreende a execução de ações estatais para criar, manter e restaurar a saúde da população, por exemplo, desenvolvimento de pesquisas e divulgação das informações sobre saúde, assegurar que os serviços de saúde sejam culturalmente apropriados e que os profissionais estejam suficientemente qualificados para responder às necessidades dos grupos marginalizados e orientar às pessoas para que possam tomar decisões informadas sobre sua saúde. Um exemplo da realização se verifica na adoção das políticas nacionais de saúde que garantam a provisão dos cuidados em saúde e o acesso equitativo aos determinantes, tais como água potável, nutrição e condições sanitárias adequadas (6).

Verifica-se que, as obrigações específicas atribuem aos Estados o dever de reconhecer a interdependência da saúde com outros direitos humanos, assim, com base nesta característica, da materialização de respeitar, proteger e realizar o direito à saúde, decorre a diminuição do impacto da vulnerabilidade de determinados grupos (79).

Em relação às obrigações internacionais, o CDESC cita o Comentário Geral n.3, o Artigo 56 da Carta das Nações Unidas e a Declaração Alma-Ata sobre cuidados primários em saúde, instrumentos normativos que reconhecem o papel fundamental da cooperação internacional e o compromisso dos Estados para alcançar a completa realização do direito de toda pessoa desfrutar o mais alto nível de saúde física e mental. Tal como demarcado no começo deste Capítulo, a

Declaração Alma-Ata, proclamou a existência das inequidades em saúde, especialmente entre pessoas nos países de alta e baixa renda, situação que reclama a preocupação comum de todos os países (80).

Neste sentido, o Comentário Geral n.14 salienta que o respeito do direito à saúde incorpora a cooperação internacional, quer dizer, por um lado, a responsabilidade dos Estados Parte na assistência humanitária em casos emergenciais, incluindo ajuda a pessoas refugiadas ou vítimas do deslocamento interno; por outro lado, a cooperação internacional também abrange a adoção de medidas preventivas para evitar que terceiros violem este direito em outros países. Ditas medidas são estabelecidas por vias legais ou políticas e em consonância com a Carta das Nações Unidas (6).

Destaca ainda, que dependendo da disponibilidade de recursos, os Estados têm a obrigação de facilitar o acesso às instalações, bens e serviços de saúde em outros países; em virtude da constatação de que algumas doenças podem ser transmitidas além das fronteiras dos países, a comunidade internacional tem a responsabilidade coletiva de enfrentar esta problemática. Desse modo, os Estados de alta renda têm o dever de assistir aos países de baixa renda. Adicionalmente, a cooperação internacional implica a atenção ao direito à saúde no desenvolvimento de instrumentos normativos internacionais (6).

O último grupo de obrigações são as denominadas essenciais, compreendidas como o “conteúdo tangível de dignidade humana (...)” (p.97) (10), em razão de que a não satisfação dos bens contidos nestas obrigações, impede a existência humana digna. De acordo com Albuquerque, as obrigações essenciais são úteis para o enfrentamento do fenômeno da judicialização da saúde, porque estas se constituem em instrumentos insubstituíveis para orientar o debate sobre a alocação de recursos escassos, serviços e instalações, que o Estado deveria priorizar para garantir o direito à saúde em forma imediata (10).

Dessas obrigações estão conformadas por seis pontos: primeiro, a garantia do direito ao acesso de bens, instalações e serviços de saúde sem discriminação alguma; segundo, assegurar o acesso a uma nutrição adequada e segura; terceiro,

garantir o acesso à habitação, condições sanitárias e água potável; quarto, fornecer medicamentos essenciais de acordo com o disposto pela OMS; quinto, fiscalizar a distribuição equitativa de bens, instalações e serviços de saúde e por fim, aplicar um plano de ação em saúde pública, em concordância com estudos epidemiológicos que facilitem o monitoramento dos avanços atingidos (6).

Além destas obrigações, o CDESC estabelece outras considerações essenciais, tais como, assegurar cuidados em saúde reprodutivos, maternos e infantis; proporcionar programas de imunização contra doenças infecciosas que afetem à comunidade; adotar medidas para prevenir, tratar e controlar enfermidades endêmicas e epidêmicas; proporcionar acesso às informações e educação relacionada às principais problemáticas de saúde que atingem a comunidade, englobando métodos para preveni-las e controla-las e finalmente, proporcionar adequado treinamento para os profissionais da saúde, incluindo educação em saúde e direitos humanos (6).

Como visto, o conteúdo do direito à saúde, previsto No Comentário Geral n.14 se fundamenta na proteção da dignidade humana, a través do enfoque baseado nos direitos humanos que postula responsabilidades governamentais para a promoção da saúde da população, formula um amplo leque de determinantes sociais, econômicos, legais, ambientais e culturais e enfatiza a importância de estabelecer metas especificas para alcançar este direito. No entanto, constatam-se críticas sobre a carência de fundamento filosófico do direito à saúde, em razão de que o Comentário referido, não desenvolve argumentos sobre a forma como a saúde se associa à dignidade humana, igualmente, não estabelece a importância moral da saúde no seu conteúdo (58).

Norman Daniels (81), elaborou um marco filosófico para o direito à saúde, fundamentado na teoria da justiça, no qual, deve-se enraizar a reivindicação deste direito. O autor determina a interconexão entre a importância moral da saúde e seu impacto nas oportunidades de vida, deste modo, a proteção da saúde, contribui com a salvaguarda de oportunidades justas e equânimes. Por sua vez, afirma que os serviços médicos e os determinantes sociais implicam relevância moral, em razão

de seu impacto na saúde da população; assim, a sua distribuição deve se orientar pelo princípio da justiça.

Neste sentido, a consecução da equidade em saúde implica intervenções sobre os determinantes sociais; estas ações envolvem a efetivação do princípio da justiça, mas também o princípio da autonomia, na medida em que, a liberdade de escolha de determinados estilos de vida18 é desigualmente distribuída e nem sempre é possível a livre eleição de hábitos saudáveis; isto é, existem condicionantes socioeconômicos que interferem na liberdade de escolha (82). Esta afirmação se exemplifica no campo da saúde bucal, onde pesquisa demonstrou que crianças de famílias com baixa renda, sofrem mais cáries e utilizam mais os serviços para alivio da dor, do que aquelas, cujas famílias dispõem de maior renda (83).

Verifica-se que os princípios da autonomia e da justiça legitimam o direito à saúde como um tópico da Bioética, especialmente da Bioética concebida na América Latina, e ademais, abarcam a relação indivíduo-Estado, o qual, tem a obrigação de criar condições para que as pessoas possam exercer liberdade e responsabilidade respeito seus estilos de vida.

Considerando a inserção do direito à saúde como área de trabalho da Bioética, foi possível identificar vínculos entre as prescrições do Comentário Geral n.14 e a DUBDH, diretriz que orienta a formulação de respostas a problemáticas bioéticas sobre a saúde. Apenas com o intuito de ilustrar, serão apresentadas estas interfaces em forma sintética.

Constatou-se que as obrigações estatais específicas relacionadas ao direito à saúde, explicitas no Comentário Geral n.14, se coadunam com o princípio da igualdade, justiça e equidade, da não discriminação e não estigmatização e da responsabilidade social e saúde, previstos na DUBDH, nos Artigos 10, 11 e 14 respectivamente (4). Esta interface se verifica especificamente no ponto relativo à obrigação de respeitar o direito à saúde, que prescreve o dever do Estado de refrear-se de negar ou limitar o acesso equitativo aos cuidados e serviços de saúde

e de impor práticas discriminatórias; do mesmo modo, a obrigação estatal de proteger o direito à saúde, evoca o princípio do respeito pela vulnerabilidade humana, explicito no Artigo 8 da DUBDH.

Por sua vez, as obrigações internacionais sobre o direito à saúde, enunciadas no Comentário Geral n.14, estão ineludivelmente relacionadas aos Artigos 24 e 13 da DUBDH, que versam sobre cooperação internacional e solidariedade e cooperação, respectivamente. Esta relação se centra na prescrição do respeito e promoção da solidariedade entre Estados e indivíduos, focando particularmente naqueles fragilizados pela doença ou outra condição econômica, social ou ambiental, traçada no parágrafo c do Artigo 24. Assim, é possível assentar que este dever engloba o respeito do direito à saúde para além das fronteiras nacionais, tal como previsto pelo CDESC. Por sua vez, o sentido de solidariedade e cooperação internacional entre Estados exposto por este órgão, se conjuga com o referido no Artigo 13 da DUBDH, particularmente, no chamado a respeitar o desfrute do direito à saúde em outros países, impedir que terceiros violem este direito, proporcionar acesso a instalações, bens e serviços de saúde, caso seja necessário e destacar a responsabilidade de profissionais da saúde, famílias, comunidades locais, organizações intergovernamentais, organizações da sociedade civil e setor privado na realização do direito à saúde.

Por último, as obrigações essenciais que visam à garantia do direito à saúde, também envolvem princípios bioéticos no seu conteúdo, nomeadamente, o princípio da não discriminação e não estigmatização, respeito pela vulnerabilidade humana e integridade individual, a igualdade, justiça e equidade e responsabilidade social e saúde, que convergem com os preceitos referidos nas obrigações específicas; a interface com estes princípios previstos na DUBDH, se manifesta nos deveres estatais de assegurar o direito a acesso a bens, instalações e serviços de saúde sem discriminação alguma e na sua distribuição equitativa, bem como na garantia à alimentação mínima essencial e para todos e ás condições sanitárias e de moradia seguras, acepções que também estão contidas nos princípios em menção.

De forma geral, os enunciados normativos sobre o direito à saúde previstos no Comentário Geral n.14, convergem com alguns princípios adotados na DUBDH, sendo assim, é imprescindível aproximar-nos a este instrumento normativo bioético.

A seguir, serão expostas breves acepções sobre a origem da DUBDH, as interfaces entre a Bioética e os direitos humanos, associadas ao direito à saúde, plasmadas nesta diretriz e finalmente, referência ao princípio da responsabilidade social e saúde, estabelecido no Artigo 14. Insta esclarecer que não pretende-se executar exame sucinto deste dispositivo da Bioética, mas sim, cotejar suas prescrições com o Comentário Geral n.14 e constatar pontos de conexão entre estas diretrizes.

2.3 O DIREITO À SAÚDE E A DECLARAÇÃO UNIVERSAL SOBRE BIOÉTICA E