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CAPÍTULO II ESTUDO DE CASO

6 OBSTÁCULOS À APLICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO

Baseando-se nessa recuperação da dinâmica do conflito, os seguintes desdobramentos corroboraram com as hipóteses de trabalho desta dissertação, aqui reinseridas:

(i) O restrito potencial de auto-organização e de barganha do terceiro setor nos espaços de planejamento e controle social pode ser visto como um dos principais fatores explicativos dos impasses que têm marcado o processo de enforcement da legislação em vigor.

(ii) Um cenário de transição rumo a um novo sistema de gestão integrada e compartilhada de ecossistemas costeiros no Estado pode ser considerado atualmente improvável, levando-se em conta a força de inércia da cultura política dominante, os padrões de relacionamento entre os stakeholders e os retrocessos verificados nos arranjos institucionais que norteiam a busca de enfrentamento da crise socioambiental.

A análise das ações de resistência ao processo de ocupação irregular do Banhado da Palhocinha revelou várias incoerências em cada fase do processo, envolvendo o jogo-de-atores em situação (ou seja, o sistema de ação) e a busca de aplicação consistente dos arranjos institucionais em vigor (ou seja, a problemática do enforcement). Tais incoerências podem ser vistas como reflexo dos inúmeros obstáculos que cercam a dinâmica de implantação de um sistema de gestão ao mesmo tempo integrado e compartilhado de ecossistemas costeiros no estado de Santa Catarina.

No rol dos principais pontos de estrangulamento podem ser incluídas não só as representações dos stakeholders relativamente ao que determina a legislação ambiental em vigor. Mas, também, as dificuldades crônicas de se assegurar a integração interinstitucional e o interrelacionamento efetivo das várias escalas de planejamento e gestão – do local ao nacional. Trata-se de uma síndrome recorrente na área, que tem sido percebida desde 1999, por ocasião dos primeiros embates deflagrados pelas intervenções do Ministério Público Federal(BRASIL, 1999) diante das limitações em termos de vontade política efetiva para fazer valer as determinações judiciais.

Todavia, no caso analisado, constata-se que a linha de atuação do MPF foi modificada, revelando aqui uma tendência de descaracterização da sua função maculando a tradicional imagem pública de um aliado da

população na contenção dos processos de degradação do patrimônio natural e cultural existente na zona costeira (NASCIMENTO; BURSZTYN, 2010; GERI, 2007; QUINTAS, 2006; FABIANO, 2004). O acordo proposto pelo MPE na ausência de um posicionamento de representantes da sociedade civil organizada contribuiu para despolitizar o litígio, alimentando um cenário de dissensos (ASCELRAD, 1992) decorrentes da valorização do papel da FATMA – uma agência cujo funcionamento ficou marcado por uma credibilidade duvidosa junto à opinião pública esclarecida.

O conflito tornou-se assim cada vez mais acirrado. Ao contrário das ações conduzidas com êxito em 1999 e 2007 (quando contava-se com a participação de apenas uma única ONG), foi possível no caso em pauta constatar um retrocesso, não obstante a presença de cinco instituições civis, além do apoio, ainda que tardio, do IBAMA (BRASIL, 2011a; 2011b) e do apoio técnico e jurídico na ACP (NEO- HUMANISTA, 2010). As ações desenvolvidas pela Procuradoria do MPF, do TJSC e do TRF4 permaneceram nitidamente aquém do que teria sido necessário para gerar uma reversão do processo nas instâncias superiores em conformidade com a o Artigo 225 da Constituição Federal de 1988, segundo o qual “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo para as presentes e futuras gerações”.

Em síntese, percebe-se como resultado da análise que o MPF em 1999, e o MPE até o início do conflito no âmbito judicial em agosto de 2009, passaram da condição de entidades dotadas de perfil preventivo- proativo face à crise socioambiental à condição indireta de apoiadores da obra.

Até mesmo o reconhecimento do fato do Município estar integrado ao SISNAMA, por intermédio do COMDEMA local – uma entidade dotada de competência normativa - pouco acrescenta a este cenário. Os dados coletados indicam que ele não teve voz ativa na dinâmica de enforcement.

A visão do COMDEMA apresenta-se equivocada, pois a competência para licenciar não se confunde com a competência para fiscalizar, uma vez que se verificaram incongruências de natureza gravíssima entre manifestações do IBAMA e FATMA, e sem dirimir tais incongruências optam pela legalidade do licenciamento, incorrem em responsabilidade por omissão (...), já que

subtraíram da sociedade o direito ao controle social do licenciamento do Condomínio Pomares de Garopaba (ADVOCACIA NEO- HUMANISTA, 2010, p.28).

Dessa forma, a ambição de tornar o SISNAMA o eixo-diretor de uma transformação paradigmática no tecido da cultura política dominante, visando sintonizá-lo com a urgência de uma internalização efetiva da variável ambiental nas estratégias de desenvolvimento, parece colidir frontalmente com o padrão de funcionamento da maior parte das nossas administrações municipais (ANAMMA49 apud VIEIRA, 2005). Foi possível constatar que os órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, bem como as Fundações instituídas pelo Poder Público, todos responsáveis pela proteção e melhoria da qualidade ambiental, não estão estruturados para atender aos novos requisitos de descentralização e promoção da cidadania ambiental expressos no Programa Brasileiro de Agendas 21 (VIEIRA, 2009). Eles permanecem defasados

tanto em termos de dados atualizados sobre a dinâmica de apropriação dos recursos naturais de uso comum, quanto de recursos financeiros e humanos indispensáveis a um esforço conseqüente de gestão integrada, descentralizada e comensurada à dimensão do longo prazo. Parece assim compreensível que, dezessete anos após o término da Cúpula da Terra, o programa de criação de Planos Diretores Municipais e de Agendas 21 locais permaneça ainda em estágio embrionário (VIEIRA, 2009, p.59).

Por outro lado, e como um agravante do cenário contemporâneo, vem se tornando cada vez mais nítida a reprodução da tendência dos órgãos públicos municipais se apresentarem à opinião pública como

incompetentes para lidar com problemas relacionados à confrontação preventiva e proativa da crise socioambiental, transferindo ao máximo possível a responsabilidade para os níveis

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Criada há mais de uma década, visa congregar as iniciativas de gestão ambiental promovidas no nível local.

superiores de organização política (VIEIRA; RIBEIRO, 2006, p.15).

Em resumo, o processo de descentralização do sistema de gestão ambiental, rumo ao exercício consequente do princípio de subsidiaridade – um dos pilares da nova Constituição – continua a enfrentar os inúmeros obstáculos representados pela força de inércia do viés economicista das políticas de desenvolvimento e pela fragmentação crônica dos sistemas de planejamento e gestão. Certamente devemos incluir aqui a constatação de que a “superposição legislativa faz com que se fixem padrões ambientais divergentes, sem que se tenha uma norma uniforme de conduta administrativa” (ERNANDORENA, 2003, p. 52).

O descompasso criado entre os avanços obtidos na regulação jurídica dos problemas ambientais desde a época da Cúpula da Terra e as limitações do processo de reestruturação administrativa voltada à promoção da governança territorial acabou demonstrando um sério vácuo institucional. “As novas políticas públicas territoriais são oportunidades potenciais para fortalecer ou influenciar novas formas de governança” (CERDAN et al., 2011, p.40).

Como já foi apontado acima, a pesquisa revela que as dificuldades não se limitam às indefinições legais ou à atribuição pouco transparente de competências e responsabilidades políticas, administrativas e legislativas. Os impasses atualmente sentidos decorreram também do pluralismo de representações encontrado entre os agentes do setor público, que permanecem “atrelados a uma cultura política clientelística, conservadora, corrupta e ainda fortemente marcada por resíduos autoritários” (VIEIRA, 2009, p.53).

Nestas condições, uma dinâmica de melhoria do rendimento das medidas de enforcement dos arranjos institucionais já consolidados (e dos novos a serem ainda incorporados) parece depender – fundamentalmente – de uma mudança da postura atual do MPF e do êxito dos esforços voltados para a promoção do empoderamento da sociedade civil organizada – rumo a um cenário de governança territorial. Caso contrário, o movimento socioambiental circunscrito em situações onde um grupo se une, acima de tudo em busca da defesa dos interesses coletivos, correrá o risco de se tornar cada vez mais uma simples peça ornamental de um processo de enfrentamento remedial e ex-post de sintomas isolados de uma crise de escopo civilizatório.