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6.2 O uso do neutro „lo‟: erros e acertos

6.2.1 Ocorrência do neutro diante de adjetivo

Um dos usos do artigo neutro em língua espanhola é acompanhar o adjetivo, com a função de substantivá-lo ou intensificar o valor que ele tem, independentemente de esse adjetivo estar no masculino ou no feminino, no singular ou no plural. Numa análise dos erros cometidos com o uso do neutro diante de adjetivos, percebe-se que os maiores percentuais ocorreram em situações como a sequência a seguir, retirada do instrumento 01: [...] haciéndose, paulatinamente, la distinción entre lo real, lo imaginario, lo natural, lo artificial, lo verdadero y lo falso.

Especificamente no exemplo acima, em torno da metade dos estudantes utilizou o artigo masculino „el‟ no lugar do „lo‟, o que pode evidenciar um problema de interpretação durante a leitura do texto, uma vez que, em outras situações da língua espanhola, admite-se o artigo masculino „el‟ diante dos adjetivos, real, imaginario, natural, artificial, verdadero e falso, desde que antes tenha aparecido no texto um substantivo masculino no singular que sirva de referência para que os artigos e adjetivos concordem com ele em gênero e número. Como o texto não apresenta esse substantivo de referência, o correto teria sido o uso do artigo neutro „lo‟ em todas as situações.

É possível que os aprendizes tenham feito o seguinte raciocínio para o uso do artigo masculino em detrimento do neutro: como em português o artigo que acompanha os mesmos adjetivos é o artigo „o‟, consequentemente em espanhol a forma do artigo masculino singular é „el‟. No entanto, para que houvesse sucesso na resposta, o raciocínio deveria ter sido um pouco mais complexo: os aprendizes deveriam ter realizado um processo de inferência durante a leitura, pensando que no lugar do artigo caberia a expressão aquello que es, na qual aparece claramente o demonstrativo neutro, e não o masculino.

Ainda quanto ao uso do neutro diante de adjetivos, há outras situações que merecem reflexão e aprofundamento. Uma delas é o baixo percentual de erros diante dos adjetivos comparativos de superioridade mejor e peor (herdados diretamente da língua latina), que ficou em 9,09% e 22,73%, respectivamente. Uma das explicações para o sucesso do uso do neutro diante dessas formas pode ser encontrada na estrutura cristalizada que as sequências lo mejor e lo peor possuem para os aprendizes de ELE, uma vez que eles devem estar acostumados a encontrá-las nos textos que leem muito mais do que as formas el mejor e el peor (no CREA63, a proporção de ocorrências do neutro diante de mejor e peor é mais expressiva que a ocorrência do artigo masculino diante das mesmas palavras). Além disso, no uso do masculino „el‟ diante da palavra mejor, a média do percentual de erros ficou em 27,27%, bem maior que o percentual de erros cometidos quando o adjetivo foi usado com o artigo neutro.

Ao analisar os pares de frases do instrumento 03, em que aparecem as formas lo mejor e el mejor, cujo índice de erros ficou em 9,09% e 22,73%, respectivamente, os percentuais indicam, novamente, uma dificuldade no uso do masculino, e não no do neutro. A razão para isso acontecer, conforme já discutido no item 6.1, é que a forma do adjetivo combinado com o neutro está cristalizada na memória dos aprendizes, pois é mais comum na língua espanhola a sequência lo mejor que el mejor. As justificativas dadas pelos aprendizes para a escolha do masculino ou do neutro parecem revelar que, neste caso, há mais clareza em favor do neutro que do masculino, uma vez que houve 10 e 7 justificativas, respectivamente. Em relação ao conteúdo das respostas, quem conseguiu justificar apresenta bastante clareza na sua escolha, pois as justificativas estão coerentes com a escolha do „el‟ ou do „lo‟: no caso do masculino, o argumento gira em torno do fato de o artigo acompanhar um adjetivo que, por sua vez, tem um referente masculino no texto; no caso do neutro, os informantes utilizam a ideia de o „lo‟ servir como intensificador do adjetivo ou que substitui a expressão la mejor cosa.

Outra situação que merece ser analisada é o uso do neutro diante da palavra mismo, a qual apareceu nos seguintes contextos: lo justo y lo bueno no sea lo mismo en todos los sitios y para todos (instrumento 01); lo que no es naturalmente justo sino establecido por los hombres no es lo mismo en todas partes (instrumento 01); no es lo mismo leer bien y hablar bien en español (instrumento 02); aquí me pagan lo mismo que en mi anterior trabajo anterior (frase 1.a instrumento 03). Os índices de erros das situações acima ficaram em 22,73%, 22,73%,

63 De todos os textos publicados em língua espanhola entre os anos 2000 e 2008, disponíveis na base de dados do CREA, a combinação dos artigos com as formas mejor e peor ficou assim constituída: lo mejor (2.164 ocorrências) e el mejor (1.960 ocorrências); lo peor (540 ocorrências) e el peor (319 ocorrências).

54,55% e 13,64%, respectivamente. O que se questiona a partir dos percentuais acima é por que houve muito mais erros na frase do instrumento 02 que nas demais situações, se em todos os quatro casos a tradução de lo mismo fica “a mesma coisa”?

A resposta pode estar na própria estrutura do instrumento 02, que apresentava como tarefa a versão de frases do português para o espanhol. A frase original era “Não é a mesma coisa ler bem e falar bem em espanhol”, cuja tradução mais acertada seria No es lo mismo leer bien y hablar bien en español. O que aconteceu, numa análise de todas as respostas vertidas para o espanhol, é a constatação de um erro por evitamento (Durão, 2004), pois todos os informantes que evitaram o uso de „lo‟ diante da palavra mismo, utilizaram a forma la misma cosa, que se aproxima muito mais da língua materna e, por consequência, não contém o artigo neutro „lo‟.

Durão (2004) argumenta que, em casos como o descrito acima, os estudantes se sentem inseguros diante de determinadas formas do espanhol frente ao português, e por isso preferem a forma mais próxima da sua língua materna; portanto, o que se constata é que o erro acima não está no campo da leitura em língua estrangeira, e sim no campo do conhecimento da estrutura gramatical da língua espanhola. O que se questiona, a partir disso, é a gramaticalidade da frase No es la misma cosa leer bien y hablar bien en español, embora ela possa ser admitida em espanhol. A frase parece soar como uma típica transposição de uma sequência de palavras da língua portuguesa para a espanhola, sem uma devida preocupação com as estruturas desta última. Pode-se, então, afirmar que ela seria quase uma frase redigida em “portunhol”, ou então como uma marca de interlíngua dos aprendizes lusófonos de ELE. Ainda, para comprovar que No es la misma cosa leer bien y hablar bien en español, não soa tão bem quanto No es lo mismo leer bien y hablar bien en español, numa busca de ocorrências no CREA, em todos os textos publicados em língua espanhola entre 2000 e 2008, a sequência lo mismo foi localizada em 3.699 situações, enquanto la misma cosa apareceu somente 46 vezes.

A partir da análise do uso de la misma cosa no lugar de lo mismo, pode-se concluir que os informantes desta pesquisa, especificamente nesta questão, apesar de já terem cursado mais da metade da carga horária de língua espanhola do curso de Letras, ainda se encontram muito próximos das estruturas da sua língua materna quando têm de se expressar na língua espanhola. O que se quer dizer não deve soar como uma crítica negativa, é apenas uma constatação de que o uso de la misma cosa é uma marca da interlíngua em que esses

estudantes se encontram, pois as palavras estão em língua espanhola, mas a estrutura sintagmática é típica da língua portuguesa.

Por outro lado, se forem analisadas as justificativas dadas pelos informantes acerca do uso do masculino e do neutro nas frases 1.a (instrumento 03) Aquí me pagan lo mismo que en mi anterior trabajo, [...] e 1.b pero no es el mismo ambiente, aquí se trabaja mejor, evidencia-se uma clareza acerca de diferença de sentido que as duas ocorrências possuem. Dos 22 informantes, 11 justificaram o uso do artigo masculino em el mismo ambiente, afirmando que o artigo concorda em gênero e número com o adjetivo e substantivo que o acompanham; logo, a justificativa está em consonância com a resposta dada. Já na justificativa para o uso de lo mismo, apenas 07 dos 22 aprendizes conseguiram desenvolver um argumento, o qual se baseia na ideia de que lo mismo significa a mesma coisa. Parece haver mais facilidade para justificar o uso do artigo masculino que o uso do neutro, embora o percentual de erros nas duas situações acima tenha ficado em 13,64%, equivalente a 03 erros de cada tipo. O que se pode inferir a partir desses dados é que a experiência de leitura em língua estrangeira pode ter permitido que os aprendizes acertassem o artigo, ainda que não tenham conseguido justificar conscientemente o porquê da sua resposta.

Finalmente, uma última consideração sobre os erros cometidos diante da palavra mismo tem a ver não com o uso do artigo neutro, mas do artigo masculino. No excerto a seguir (extraído do instrumento 01), lo que no es naturalmente justo sino establecido por los hombres no es lo mismo en todas partes, como en todas partes no es el mismo el castigo que se impone al robo, percebe-se que a palavra mismo aparece em duas situações: uma combinada com o artigo neutro e outra com o masculino. Na primeira situação, o percentual de erros ficou em 22,73%, enquanto, na segunda, ele ficou em 72,73%. Novamente, parece ter ocorrido, na situação em que deveria ter sido usado o artigo masculino, um problema de hipergeneralização de material linguístico da língua estrangeira, conforme indicava Selinker (1992), já que os aprendizes, ao terem conseguido utilizar o neutro diante do primeiro mismo, também o utilizaram diante do segundo, quando deveria ter sido usado o masculino „el‟. Nesse caso, pensa-se que o problema pode estar, novamente, numa falha do processo de leitura, uma vez que a forma el mismo tem um referente masculino que aparece logo depois, que é el castigo. Se a inferência durante a leitura tivesse sido feita, os informantes teriam percebido a necessidade da concordância com a forma el castigo.

Chega-se, assim, àquilo que já havia sido concluído anteriormente: o uso do artigo neutro „lo‟ pode ser explicado pelas estruturas gramaticais em que ele ocorre; não obstante, para evitar os erros, a leitura deve ser uma aliada para o uso correto dos artigos, especialmente o „lo‟. Para dar seguimento às discussões, passa-se, então, à análise do neutro diante de formas pronominais, tais como os possessivos e os relativos.