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OUTROS VALORES ASSUMIDOS POR AQUI, AÍ, ALI, CÁ e LÁ

3.2. Descrição de valores modais

3.2.1.1. Ocorrências em frases do tipo imperativo

- Situação de comunicação: Na rua, um larápio encosta uma arma às costas de um transeunte e diz:

(1) Passa para cá a carteira!

Embora o cá não funcione aqui como advérbio de lugar, há porventura alguns traços de localização espacial que parecem, à primeira vista, manter-se, sobretudo a ideia de direccionalidade no sentido do falante - referência que aponta para uma evidência díctica e que se verifica nos enunciados seguintes. No entanto, não é essa a interpretação que o locutor e o alocutário lhe atribuem no acto comunicativo, mas sim a de uma ordem, ou melhor, uma ameaça em que o cá se modaliza e do sentido do lugar deriva para o sentido de posse (=Passa a carteira para a minha posse), facto que se confirma na situação seguinte. Por outro lado, a partícula modal cá explicita o reforço da ordem, já que ela pode existir sem cá, e, consequentemente, a autoridade (atitude autoritária) do larápio, revelando a intenção de intimidar e subjugar a vítima para que esta lhe ceda a carteira. Note-se que este reforço da ordem é comum às duas situações seguintes.

Associado à força ilocutória da forma verbal, ao factor prosódico (a entoação) e a recursos extralinguísticos, como sendo os gestos, o cá pode ainda ajudar a expressar a atitude de violência gerada no decorrer do acto discursivo.

- Situação de comunicação: Em plena aula, o professor, ao aperceber-se que um aluno manuseava um telemóvel, dirige-se a ele e diz:

(2) Passa para cá o telemóvel

Naturalmente que não é intenção do professor apossar-se do telemóvel nas mesmas circunstâncias em que o larápio se apoderou da carteira. Todavia, o professor exige que o telemóvel passe para a sua posse, mas possivelmente só até ao final da aula. Também não passa pela cabeça do aluno que o professor lhe quer surripiar o telemóvel. Na verdade, evidencia-se aqui a pressuposição pragmática que explicitávamos no ponto 3.1.: ambos sabem que o uso de telemóveis não é permitido na sala de aula, daí que o aluno não interprete a intenção do professor como um assalto, mas sim como uma admoestação, o mesmo estando nas intenções do professor. Refira-se que o uso de cá, para além de configurar a ideia de ordem e de posse, poderá simultaneamente traduzir a impaciência do professor, face a uma regra não cumprida.

- Situação de comunicação: Dois amigos estão sentados à mesa de um restaurante e A diz para B: (3) Passa para cá o sal!

Tratando-se de uma frase imperativa como as anteriores, neste contexto o valor de cá não é coincidente com o que aí aparece. Com efeito, não se trata aqui de um acto violento nem de uma ameaça e, provavelmente, nem mesmo de uma ordem, mas sim de um pedido, com a finalidade implícita de utilização do produto. É óbvio que esta não é uma forma muito delicada de fazer um pedido, porém, tratando-se de dois amigos, este modo de exprimir o pedido acaba por ser bem tolerado já que envolve familiaridade e até intimidade80; seria completamente diferente se se tratasse de pessoas estranhas. Mesmo assim, esta frase poderia eventualmente ser seguida da fórmula de delicadeza “se fazes o favor”, o que imprimiria ao acto comunicativo mais cortesia e suavidade.

80

- Situação de comunicação: Dois estudantes (A e B) estão a trabalhar numa mesa da biblioteca, quando A descobre que há um livro interessante nas proximidades de B. Aí ele diz:

(4) Se não te importas, chega-me cá esse livro.

Apesar de se tratar de uma frase imperativa, tendencialmente vocacionada para a ordem, o cá parece atenuar essa ordem e levar o enunciado a ser interpretado por B, não como uma imposição da vontade de A mas como um pedido; aliás, a expressão “se não te importas” contribui para reforçar essa atenuação. Por outro lado, dada a proximidade entre os dois interlocutores (estão em presença), a tarefa a realizar por B pressupõe um esforço mínimo, sem grande perda de tempo, o que ajuda a compreender a sua aceitação, sendo o emprego de cá justificativo de tal atitude; este enunciado perderia o sentido se, por exemplo, se tratasse de uma conversa telefónica.

Depois de ter o livro nas mãos, A diz:

(5) Ora vamos cá ver se encontro o que quero.

Se omitíssemos o cá, a boa formação sintáctica do enunciado não seria prejudicada e o sentido da frase seria basicamente o mesmo, mas o efeito comunicativo era diferente. É que o cá parece marcar aqui a proposta de consecução imediata da observação que A pretende fazer daquilo que lhe interessa.

- Situação de comunicação: Dois amigos (A e B), que já não se viam há bastante tempo, encontram-se finalmente, dizendo A para B no momento do reencontro:

(6) Dá cá um abraço!

Nesta situação, o cá assume um valor gramatical idêntico ao do pronome pessoal oblíquo na primeira pessoa (=Dá-me um abraço!). No entanto, do ponto de vista comunicativo, a sua função é a de sublinhar a intensidade emotiva de A, ao procurar trazer junto de si o seu interlocutor através do pedido que lhe faz.

Na sequência do diálogo, A pergunta a B: (7) Diz-me cá como está a tua família.

Mais uma vez poderíamos prescindir da partícula cá sem que houvesse alterações significativas na estrutura frásica, todavia, ao introduzir o elemento modal,

salienta-se o interesse e a ansiedade do locutor em chamar o alocutário ao diálogo para saber notícias da sua família e assim satisfazer a sua curiosidade. Paralelamente, o cá, associado à interrogativa indirecta, parece estabelecer aqui um valor fático.

- Situação de comunicação: Duas vizinhas (A e B) desentenderam-se e A grita para B: (8) Ouça cá, não pense que tenho medo de si.

Para além de o cá ser a forma usada pelo falante para estabelecer ou manter o contacto com o seu interlocutor e tentar prender a sua atenção para aquilo que vai dizer, convidando à comunicação e ao diálogo, expressa simultaneamente a indignação do loquente e a advertência que pretende fazer.