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Ocupação dos cargos públicos pelos membros da parentela

3 REDES DE SOCIABILIDADE

3.2 Ocupação dos cargos públicos pelos membros da parentela

Como já vem sendo demonstrado ao longo deste estudo, após consolidar seu poder econômico, logo os membros da parentela percebem a importância da ocupação dos espaços políticos dentro da Capitania. Se por um lado buscavam casar as filhas com funcionários régios, por outro, os chefes de família percebiam a importância de educar seus filhos para ocuparem os cargos da administração local, mecanismos que iriam garantir a hegemonia do grupo.

Um ramo familiar empenhado na educação de seus filhos foi o encabeçado por José Félix Pereira de Burgos e Ana Teresa de Jesus, quarta filha do irlandês Belfort. Este ramo da família deu origem a uma prole numerosa, dez filhos, seis deles homens; dos quais três foram mandados a Portugal para estudar: “Peregrino, Honório e José Félix, os dois primeiros formados em letras no Colégio dos Nobres e o mais velho, José Félix, formado em matemática e filosofia em Coimbra”. Segundo o historiador Milson Coutinho, este teria sido o motivo da ruína das finanças da família, pois o testamento da viúva do tenente-coronel acusava dívidas com a Fazenda Real, resultado do contrato de arrematação dos dízimos das freguesias do Itapecuru e Mearim. Vários dos filhos e netos do ramo Burgos-Belfort seguiram a carreira militar (2005, p. 343-5).

Outro exemplo foi a ramificação ligada ao capitão Felipe Marques da Silva, pai da segunda mulher de Lourenço Belfort, que havia iniciado sua vida em solo maranhense como almoxarife da fazenda real ainda no século XVIII. Como já foi mencionado, Felipe Marques da Silva acabou por se tornar proprietário rural e, através do casamento de uma de suas filhas, ligou-se à família de Antônio Gomes de Sousa. Com o enriquecimento dos membros desta ramificação familiar com a agroexportação, passaram a ocupar posições de prestígio durante todo o século XVIII e boa parte do século XIX.

Um dos descendentes de maior projeção da família Gomes de Sousa foi o homônimo do ex-almoxarife da fazenda, Felipe Marques da Silva. Em 1801, de sua fazenda na ribeira do Itapecuru, o bisneto do almoxarife redigiu suas últimas vontades e nomeou seus testamenteiros: “em primeiro lugar minha muito prezada esposa Inácia Maria Freire; em segundo, meu irmão o coronel José Antônio Gomes de Sousa” (test. 14). Inácia era uma das nove filhas da viúva Maria Madalena Belfort. Este Felipe Marques da Silva era filho de Antônio Gomes de Sousa, padrinho de casamento de Lourenço Belfort. Por ocasião da feitura

qual ele destinou dois contos de réis a mais para cada um dos quatro filhos que estavam na Capitania. Segundo ele, “para de algum modo indenizar do muito que tenho despendido com os três que se acham em Lisboa” (test. 14).

Ao que parece, esta era uma prática das elites, pois os naturalistas Spix e Martius, em 1819, observaram que: “já desde muito é costume no Maranhão mandar educar em Portugal os jovens das famílias opulentas; os rapazes não raro vão também formar-se na Inglaterra e França” (SPIX & MARTIUS, 1981, p. 246). Conforme averiguamos, logo outros filhos de Felipe Marques seguiriam para completar seus estudos no Reino. Entre eles estava Manoel Gomes da Silva Belfort, que nasceu em Kelru, em 1788. Aos dezessete anos, quando estudava em Coimbra, o rapaz fez uma petição para ser reconhecido no posto de cadete. Interessante a leitura dos termos deste pedido:

Manoel Gomes declarou ao Conselho ultramarino que, em virtude de sua viagem para Portugal, não teve tempo de fazer as chamadas provanças de sua nobreza e fidalguia e que disso cuidava na Corte. Relacionou sua ascendência, declarou que sempre fora tratado à lei da Nobreza, que seus antepassados ocuparam cargos na chamada governança da Capitania (vereadores, almotacés, juízes pela lei etc.) e que em face disso detinha o foro das chamadas infanções, conferidas aos maranhenses pela Coroa lusitana, em face da luta heróica para a expulsão dos holandeses em 1644. (COUTINHO, 2005, p. 446).

Tudo indica que os argumentos usados por Manoel Gomes da Silva Belfort não eram inéditos. A historiadora Maria Fernanda Bicalho, em suas referências sobre a nobreza da terra nas conquistas, cita o caso das elites em Pernambuco. Analisa sobretudo o imaginário destas, apoiada em Evaldo Cabral de Mello, que aponta a luta vitoriosa contra os holandeses como um marco. A autora cita as afirmações de Evaldo:

Da Restauração alcançada à custa de nosso sangue, vidas e fazendas, tirava-se o corolário da existência de um pacto entre a Coroa e a ‘nobreza da terra’, o qual teria estabelecido em favor desta um tratamento preferencial, um estatuto jurídico privilegiado, um espaço de franquias, que a pusera ao abrigo das ingerências reinóis, legitimando sua hegemonia sobre os demais estratos sociais da Capitania. (FRAGOSO, BICALHO & GOUVÊA, 2001, p. 219).

Fica claro que a petição do jovem Manoel Gomes Vieira Belfort copiou uma fórmula pronta, uma vez que no Maranhão a luta contra os holandeses não teve as mesmas proporções da efetivada em Pernambuco. Por outro lado, até onde é sabido, nenhum de seus ascendentes estava na região em 1644 para “fazer frente aos holandeses”. Contudo em um ponto o bisneto de Lourenço Belfort tinha razão: ele “sempre fora tratado à lei da nobreza”, pois fazia parte das famílias “principais”.

Como vimos na petição do jovem e nas fontes utilizadas para fundamentar este estudo, existia a intenção de instituir relações. São inúmeros os indícios que demonstram a correlação de forças e a história tomando corpo a partir destas disputas pelo poder local. Isto não era uma novidade, o historiador César Marques mencionou uma querela ocorrida entre pretensos “nobres” maranhenses e as Reformas empreendidas pelo Ministério Pombalino. Ele relatou:

O governador da Capitania do Maranhão Gonçalo Pereira Lobato e Sousa (1753 / 1761) encontrou, nesta capital, anexa ao Corpo de Ordenanças uma Companhia denominada de Nobreza,em que andavam alistados todos os cidadãos da governança, seus descendentes, e mais pessoas de conhecida nobreza, desde 1680 em que ela foi criada. Mandando El-Rei D. José reduzir os corpos de ordenanças a tropas auxiliares, deu Gonçalo Pereira execução a esta ordem extinguindo aqui e em Alcântara as Companhias de Nobreza que havia, incorporando suas praças ao corpo de auxiliares. Calcule-se que celeuma se não levantou, quando Gonçalo Pereira, lançando mão de todos esses improvisados nobres, colocou-os ao nível de todos os plebeus! (1970, p. 340).

Obviamente que esta busca por distinguir-se dos demais não era apenas pelo “status”, ela se justificava por várias razões, sendo que uma das mais fortes era de natureza econômica. Segundo Stuart Schwartz, na Colônia Brasil:

Almejar o status de nobreza aliava-se às inúmeras vantagens econômicas proporcionadas pela obtenção daquele status. A privilegiada isenção de alguns impostos é uma delas. Os membros das ordens militares eram isentos do dízimo, o que muito interessava aos senhores de engenho. Também essa era uma razão para a relutância da Coroa em conceder essa honra a muitos indivíduos na Colônia. (1988, p. 232).

Tomando-se por base o pensamento de Schwartz, torna-se fácil entender a proliferação de requerimentos de membros das famílias de elite enviados à administração reinol com pedidos de carta patente, cargos e monopólios régios. Embora seus argumentos sobre sua origem nobre fossem muito frágeis, estes grupos tinham consciência e clareza dos caminhos que deveriam percorrer para construir seu espaço nestas terras: manter a família unida, encaminhar seus filhos para casamentos vantajosos, não misturar seu sangue com os “impuros”, tornar-se proprietários rurais, não só com a posse, mas com a legitimação destas terras e, a partir daí, contar com os favorecimentos régios para acumular fortuna.

É verdade que junto à Coroa lusitana Manoel Gomes da Silva Belfort pouca coisa conseguiu. Contudo obteve melhores resultados no Brasil Independente. Em sua maturidade tornou-se figura destacada na sociedade maranhense, onde foi deputado e presidente da Assembléia provincial. O bisneto do almoxarife Felipe Marques da Silva, “já adulto, comprou

terras na área chamada dos Barbados”, tornando-se proprietário rural e chegando a ter um título de nobreza: tornou-se o “Barão de Coroatá” (COUTINHO, 2005, p 445).

Outros dos filhos do casal Inácia Maria e Felipe Marques da Silva ocuparam postos dentro da estrutura administrativa no século XIX. Foi o caso de Joaquim Gomes da Silva Belfort, nascido em 1777, que se tornou bacharel em leis em Coimbra e chegou a ser desembargador; ainda, Antônio Gomes da Silva Belfort, também bacharel; também o brigadeiro Sebastião Gomes da Silva Belfort e o Comendador Fábio Gomes da Silva Belfort. Estas figuras citadas eram bisnetos de Lourenço Belfort e netos de Antônio Gomes de Sousa. Esta ramificação familiar constitui um dos muitos exemplos que se poderia citar de descendentes dos “desbravadores” que se tornaram figuras que dominaram o cenário político e econômico do final da Colônia e no Império brasileiro.