• Nenhum resultado encontrado

Ocupações: uma escola no centro e uma na periferia de Campinas

CAPÍTULO 2. O movimento de ocupações secundaristas: contexto e desenvolvimento

2.3. Ocupações de escola em Campinas/SP

2.3.2. Ocupações: uma escola no centro e uma na periferia de Campinas

A escola ocupada do centro foi a que ficou mais conhecida na cidade, tanto por estar localizada na região central e por ser uma escola tradicional, mas também por ter sido a primeira a ocupar e última a desocupar, já às vésperas do natal. Os secundaristas dessa escola mantiveram o movimento com base na reivindicação pela retirada da diretora do cargo. Já a escola ocupada da periferia, localizada na região do Campo Grande há cerca de 20 km do centro da cidade, durou cerca de 20 dias. A escola voltou a ser ocupada em 2016 junto com o movimento de ocupações nacional, e em 2017, na paralisação nacional do dia 28 de abril contra a Reforma da Previdência proposta por Michel Temer (PMDB).

Em síntese, a ocupação do centro durou 37 dias: do dia 17 de novembro até o dia 23 de dezembro. Já a ocupação da periferia teve início no dia 24 de novembro e foi encerrada no dia 14 de dezembro, acompanhando a desocupação das demais escolas da cidade. A escola do centro teria o ensino médio noturno, o EJA e o ensino fundamental I fechados. Os estudantes do ensino fundamental dessa escola seriam transferidos para uma escola que fica a 500 metros de distância e os estudantes do ensino médio noturno iriam para uma escola que fica há mais de 2,4 km de distância da escola do centro. A escola da periferia também teria o ensino médio noturno fechado - único ensino médio da escola, e os estudantes seriam transferidos para uma escola que fica há 1,6 km de distância da escola da periferia.

Nas entrevistas com estudantes que participaram das duas ocupações, captamos relatos do início do movimento em cada uma das escolas, assim como das dificuldades que enfrentaram e das experiências políticas acompanhadas de aprendizados profundos. Carla, da escola do centro, que estava cursando a 2ª série do ensino médio, relata a importância de perceberem como estavam sendo considerados e consideradas, enquanto estudantes, pela política educacional e seus formuladores:

[...] inicialmente eram poucas as pessoas que sabiam o que estava de fato rolando, mas o que foi o estopim para que nós de fato tomássemos a decisão de realizar a ocupação, foi quando nós soubemos quais eram os efeitos que a reorganização ia causar na nossa escola [...] tratando como se as pessoas fossem números, não ia ter uma notificação prévia e nem pergunta. (Carla, escola ocupada do centro)

Bianca, que estava na 1ª série do ensino médio nessa mesma escola, conta que o tema da “reorganização” escolar e do movimento de ocupações chegou através de professores e dos noticiários. Bianca relatou que a articulação para ocupar a escola começou através de conversas entre grupos de amigos, mas também em debate sobre a educação pública em uma aula de Sociologia, o que fez com que os estudantes se informassem sobre o que estava

acontecendo e tivessem a vontade de “ter voz” para combater a falta de informação e canais de participação por parte da Secretaria de Educação.

Após a realização de um ato na escola e uma reunião com o dirigente de ensino da região no dia 13 de novembro, estudantes dessa escola perceberam que a “reorganização” não estava em negociação, o que foi fundamental para decidirem pela ação. Carla argumentou que:

[...] quando nós levamos esse diálogo até a Diretoria de Ensino... primeiro nós levamos até a diretora e nós não vimos coerência na fala, não vimos justificativa, e nem o mínimo grau de tentativa de resolver ou de ilustrar pra nós o porquê que aquilo de fato ia acontecer, e depois quando nós fizemos... no primeiro dia, nós fizemos uma passeata, um protesto, e fomos caminhando até a Diretoria de Ensino Leste [...]. Nós fomos atendidos pelo dirigente e também nós não vimos coerência na fala dele, e disse “bom, se ele diz que não pode fazer nada em relação a isso, nós vamos somar força com a galera que está fazendo alguma coisa em São Paulo e vamos começar aqui” e isso foi o principal ponto. (Carla, escola ocupada do centro)

No caso da escola ocupada da periferia que foi a sétima ocupação de Campinas iniciando durante a semana prevista para a realização do SARESP, Cláudio, que estava na 1ª série do ensino médio, contou que “por incrível que pareça”, ficou sabendo das ocupações através do programa Profissão Repórter da Rede Globo que passou na televisão no dia 17 de novembro. A partir disso, obtiveram algumas poucas informações com funcionárias da escola, e os próprios estudantes passaram a divulgar a notícia para seus pares. Fernanda, que também estava na 1ª série do ensino médio, contou que:

[...] um belo dia eu estava lá naquela sala de vídeo, sabe? [...] O Cláudio e o João começaram a comentar, acho que com a Fátima [nome fictício para a inspetora de alunos] que viram no Globo Repórter que as escolas de São Paulo estavam ocupando [...]. Aí eles falaram assim: “vamos ocupar?” Aí começou aquela onda... Vish! Todo mundo ficou atiçado para fazer isso. Eu mesma não sabia o que estava acontecendo. Acho que fui procurar sobre, fui dar uma lida.... Aí a gente viu. Nisso todo mundo já estava esquentado para fazer isso. (Fernanda, escola ocupada da periferia)

João, que é visto pelos outros estudantes como o principal articulador da ocupação na escola da periferia, fez referência à escola ocupada do centro de Campinas e ressaltou a importância de escolas de outras regiões da cidade fortalecerem o movimento:

Eu vi [a escola do centro] ocupando, aí eu vi na televisão também as escolas de outros locais [...]. Eu nunca tinha visto isso na minha vida! Aí eu “nossa, vou ter que fazer alguma coisa aqui também”, porque não adianta [...] só umas 10 escolas do centro fazer e as periféricas daqui não fazer nada. (João, escola ocupada da periferia)

Os discursos demonstram que a falta de informação e diálogo por parte dos órgãos de educação, somada à indignação frente à uma grande mudança que veio de surpresa, motivaram o início das ocupações, e assim como no caso exposto por Martins et al. (2016, p. 231) que entrevistou secundaristas de Sorocaba/SP, “foram motivados pela experiência em curso em escolas que já estavam ocupadas, particularmente as primeiras delas, que se localizavam na capital paulista”.

Em várias escolas houve o questionamento sobre a dificuldade com o transporte, a falta de disponibilidade de pessoas para acompanhar as crianças mais novas até as escolas, problemas de segurança durante o trajeto até as novas escolas, além de várias denúncias de que a distância da escola de destino era maior do que previsão anunciada de até 1,5 km de distância da escola de origem (JANUÁRIO et al., 2016).

Ademais, Fernanda relatou que o que motivou sua participação foi o apego afetivo com a escola, e que durante a ocupação, sua percepção sobre o descaso e a negligência com a educação pública por parte do governo foi aumentando:

[...] quando a gente soube que a nossa escola ia ficar só o período da manhã e tarde e que a gente teria que mudar a escola... pra onde iam mandar a gente? e a gente não queria aceitar de maneira nenhuma ser mudado de lá... Fora o apego pela escola, tantos anos ali. Todo mundo que ocupou, a maioria, desde a primeira série lá... (Fernanda, escola ocupada da periferia)

Como Fernanda evidenciou, um fator de destaque foi que em muitos casos existe um vínculo afetivo construído com a escola, um sentimento de pertencimento, relações de amizade, conhecimento do espaço, o que inclusive se contrapõe radicalmente à imagem de que os estudantes não criam fortes ligações com a escola. É curioso que no áudio da reunião de Fernando Padula com os dirigentes de ensino, o chefe de gabinete se refere às motivações que deram início ao movimento de ocupações como “drama”89, como se não fossem motivações e argumentos relevantes para as tomadas de decisões referentes às escolas e a qualidade das relações pedagógicas. Esse fato mostra o quanto a educação é tomada como coisa a ser gerida, sem considerar os vínculos sociais presentes.

89 “[...] eu acho que a gente deve ir consolidando a reorganização.... o que eu vi lá em Sorocaba, na mudança

agora que as pessoas vão pedir transferência... eu tô falando de Sorocaba porque tá vivo aqui porque eu tive lá sexta-feira. Mas pediram mudança por proximidade da escola 187, quer dizer, eu acho que a gente tem que juntar essas informações, divulgar um balanço, e ir consolidando a reorganização, alunos tão matriculados, o pedido da mudança já foi feito, contextualizar esse pedido de mudança percentualmente pra mostrar que ela também não está causando um drama assim tão profundo e se em algum lugar tiver causando [...] a gente pode rever caso a caso pontual, né, e não rever a política pública. Rever se tiver consistência obviamente, mas vocês conseguem ter esse termômetro da realidade de vocês. E de repente pegar alguns casos emblemáticos "ah, aqui tem uma panela de pressão", você destampa aqui, dá pra... vocês conseguem ver isso. Quer dizer, sem abrir mão da reorganização…” (JORNALISTAS LIVRES, 2015).

Nesse sentido, a percepção de que a “reorganização” escolar não se tratava de uma medida que visava a melhoria da educação era bastante evidente:

Você não fecha escola, você melhora ela e abre mais. Você não diz que não tem vagas aqui, [...] você dá um jeito de melhorar ela [...]. Eles não querem investir na educação, sabe? (Fernanda, escola ocupada da periferia)

Na escola pública a gente tem contato com a realidade da educação, então a gente sabe que, na prática, o investimento não vem forte na infraestrutura especialmente, e também na própria valorização do professor… [...] aí a gente já tinha uma ideia que o governo quer poupar grana, não quer investir em educação [...], a gente já sabia que era um corte de investimentos. (Felipe, escola ocupada do centro)

A defesa da permanência do ensino noturno nessas escolas, tem relação com a defesa do direito de estudar e trabalhar. Para a ocupação do centro, este foi um argumento central:

Isso [o fechamento do ensino noturno] ia afetar a vida de muita gente porque além de ser uma escola corredor, é uma das mais tradicionais de Campinas, e todo mundo que está lá, principalmente o pessoal que estudava de noite, está lá por conta da localização, por ser no centro, por ser mais fácil... então redirecionar as pessoas para outros locais prejudicaria muito. (Carla, escola ocupada do centro)

Em ambos os casos, por se tratarem de escolas com ensino médio noturno que atendem uma grande parcela de estudantes trabalhadores, o fechamento desse ciclo poderia implicar na evasão de muitos estudantes, que passariam a ter uma maior dificuldade em conciliar trabalho e estudo tendo que se locomover até escolas mais distantes.

Catini e Mello (2016) alegam que só é possível compreender o movimento secundarista, se considerarmos “as condições materiais de vida e de educação de parte da juventude estudantil da rede pública articulada com o imperativo do trabalho” (CATINI; MELLO, 2016, p. 1185). Isso porque esses estudantes tinham consciência de que o acesso ao estudo formal é pressuposto para a venda da sua força de trabalho e, consequentemente, para a própria sobrevivência (CATINI; MELLO, 2016).

Evidenciando o quanto a educação escolar não é tomada desde o ponto de vista de atender às necessidades de formação daquelas e daqueles que usufruem diretamente de seus espaços, as direções das duas escolas atuaram como agentes da Secretaria da Educação. Esse fato escancarou a amplitude das problemáticas com as quais os secundaristas se enfrentavam. Desde o início, a diretora da escola ocupada do centro tentou desmobilizar a ocupação de diversas maneiras, com ligações aos pais e responsáveis antes do início da ocupação, com ameaça de reintegração de posse, tentativa de organizar um ato para “abraçar”

a escola junto a estudantes contrários ao movimento, durante o período em que a escola esteve ocupada. Além desses exemplos, Bianca e Marcelo contaram mais dois episódios:

[No início da ocupação] [...] ela chamou alguns alunos que eram maior de idade na sala, pressionando que eles iriam sofrer consequências jurídica, ser processados se acontecesse alguma coisa na ocupação e etc., e alguns alunos até deixaram a ocupação por causa disso e se manteve apoiando pelo lado de fora… (Bianca, escola ocupada do centro)

A direção tentou até infiltrar um estudante lá para arrumar algum motivo para polícia entrar e acabar com a ocupação. A gente descobriu e de forma coletiva expulsamos o moleque. (Marcelo, escola ocupada do centro)

Por esses e outros motivos relacionados ao autoritarismo e atitudes preconceituosas por parte da diretora, uma das pautas que os estudantes da escola ocupada do centro levantaram como condição para a desocupação foi a retirada da diretora do cargo.

Embora o enfrentamento direto com a direção só tenha se tornado parte da pauta central na escola ocupada do centro, ele também esteve presente na experiência da escola ocupada da periferia. Fernanda contou que no início da ocupação a diretora da escola chamou o João e, com insistência, tentou pressionar para a desocupação:

[...] ficaram horas e horas, tentando convencer ele a convencer a gente a desistir… ficou, ficou, muito, muito tempo. (Fernanda, escola ocupada da periferia)

Ou seja, essas direções atuaram diretamente para que o movimento terminasse. Do lado estatal, outros agentes também atuaram de forma distinta nas duas escolas. Vejamos como essas relações ocorreram em cada uma delas.