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Projetos de educação para um capitalismo em crise

CAPÍTULO 1. Educação escolar, trabalho e políticas neoliberais

1.3. Projetos de educação para um capitalismo em crise

As políticas neoliberais para a educação utilizam o discurso de liberdade de escolha, mas empreendem o controle do processo pedagógico. Uma série de medidas que objetivam esvaziar a formação escolar de conteúdo crítico foram implementadas. Freitas (2018) argumenta que a insistência dessas reformas para que as escolas se restrinjam cada vez mais à “aprendizagem das disciplinas básicas” mostra o temor com a possibilidade de que os níveis de conscientização estudantil se elevem e passem a questionar o status quo. Sendo assim,

50 Em 2016 o governo de Michel Temer (PSDB) apresentou uma proposta de Reforma da Previdência. Em

linhas gerais, essa proposta previa o aumento da idade mínima para que trabalhadores e trabalhadoras terem direito à aposentadoria, aumento do tempo de contribuição, diminuição do valor recebido e outros detalhes no que se refere à aposentadoria de trabalhadores da iniciativa privada, pública, categoria docente e de militares. Com várias manifestações contrárias à reforma, a medida não foi aprovada. Porém, em 2019, sob governo de Jair Bolsonaro (PSL) um projeto de Reforma da Previdência foi aprovado. Sala (2019) argumentou que além do impacto que a alteração da aposentadoria da categoria docente gera na educação escolar, com docentes trabalhando mais tempo sob condições cada vez mais precárias sobretudo na educação pública, o fato da Reforma da Previdência impor que trabalhadores e trabalhadoras permaneçam mais tempo trabalhando, acarretará numa desvalorização do valor da força de trabalho de todos, aumentando a precarização da vida e da educação escolar.

Do ponto de vista ideológico, a privatização também propicia um maior controle político do aparato escolar, agora visto como “empresa”, aliado à padronização promovida pelas bases nacionais comuns curriculares e pela ação do movimento “escola sem partido”, este último, um braço político da ‘nova’ direita na escola. (FREITAS, 2018, p. 29)

Embora o movimento Escola sem Partido seja reconhecidamente contra ideias que defendem a liberdade, diferente do que é cunhado pelo discurso empresarial, Freitas (2018, p. 28) argumenta que esses projetos não são contraditórios, tendo em vista que “nenhuma perspectiva de humanização ou transformação social” é agregada aos processos educativos pautados pelo mercado, assim como ocorre com o Escola sem Partido.

Esse postulado faz sentido quando pensamos a própria origem do movimento Escola sem Partido, que foi fundado em 2003 por Miguel Nagib e tinha um teor “antimarxista”, “anti esquerda” e “anticomunista” (MIGUEL, 2016).

Luis Felipe Miguel (2016) identifica que a partir de 2010 existe um avanço de vozes abertamente conservadoras no debate público brasileiro, sendo elas: o ultraliberalismo, o anticomunismo e o fundamentalismo religioso. Não há uma divisão estanque e o próprio movimento Escola sem Partido cresce com a confluência entre elas. Quando conflui com a “ideologia de gênero” o movimento cresce e consegue novos apoiadores e o discurso abertamente mais conservador ganha visibilidade51. O termo pejorativo é utilizado para dar a entender que o debate sobre as relações de gênero nas escolas serviria para ensinar crianças e adolescentes princípios que não estão na suposta “natureza” do homem e da mulher.

Com isso, o movimento que defende que existe uma doutrinação política e ideológica de esquerda, conflui com o que defende a primazia da família sobre a escola, sob o prisma de que o que é ensinado não pode entrar em conflito com as convicções religiosas ou morais da família. Para Fernando Penna (2016), essa proposta pretende reduzir a escolarização à mera instrução, com o reforço de representações únicas, contribuindo para as desigualdades já existentes, e com uma concepção em que o professor é visto como um

51 Desde 2011 vinha a polêmica do kit anti-homofobia, material didático para combater a homofobia nas

escolas. Através da atuação do atual presidente da República, Jair Bolsonaro, como deputado federal, o kit não foi distribuído com a argumentação da “ideologia de gênero”. Em 2014 o debate sobre igualdade de gênero foi retirado do Plano Nacional de Educação, com figuras como Marco Feliciano (PSC) e Eduardo Cunha (MDB) a frente da campanha. Desde então, o projeto Escola sem Partido vem sendo pautado no Congresso Nacional, e outros projetos similares em Câmaras estaduais e municipais, bem como o termo “gênero” retirado de Planos de Educação#. Cf. SEMIS, L. “Gênero” e “orientação sexual” têm saído dos documentos sobre Educação no Brasil. Nova Escola. 11 abr. 2017. Disponível em: <https://novaescola.org.br/conteudo/4900/os-termos-genero- e-orientacao-sexual-tem-sido-retirados-dos-documentos-oficiais-sobre-educacao-no-brasil-por-que-isso-e- ruim>. Acesso em: 28 jan. 2019.

prestador de serviço. Em suas palavras, “significa a efetiva destruição da escola como espaço de debate (PENNA, 2016, p. 53).

Em 2014, Flávio Bolsonaro, então deputado estadual do Rio de Janeiro pelo Partido Progressista (PP) solicitou para que Nagib formulasse um projeto para que ele e Carlos Bolsonaro (então vereador do município pelo mesmo partido) apresentassem em plenário (PENNA, 2016). Mesmo não sendo aprovado haja vista a inconstitucionalidade definida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2017, as movimentações e os pareceres contrários ao projeto, que demonstram as profundas implicações nocivas ao processo de ensino-aprendizagem, o Escola sem Partido se tornou um “movimento” para coagir professores e a juventude (SALA, 2018a). Ou seja, mesmo sem ser lei, ele vem impactando nas escolas, com professores expostos em redes sociais e sendo tachados de criminosos, além de querer proibir diretamente o termo “gênero” em qualquer material pedagógico.

A ideia de neutralidade política presente no projeto é, na verdade, um “instrumento retórico” para um projeto que é justamente engajado politicamente, impedindo e atacando as divergências52. Nas palavras de Miguel (2016, p. 615) “a pretensa neutralidade projeta uma educação que é incapaz de intervir no mundo e, por isso, torna-se cúmplice das injustiças e das violências que nele ocorrem”. Desse modo, existe uma ideologia totalitária presente, que quer criar um clima de “suposta doutrinação nas escolas” e de criminalização dos professores atacando justamente a dimensão educativa e de debates livres que pudessem ser criados (SALA, 2018a).

À medida que o Escola sem Partido representa um esvaziamento completo de debates críticos, censurando, criminalizando e acusando docentes de doutrinação, e impedindo que questões tão caras presentes no cotidiano discente como as questões de gênero e sexualidade façam parte dos debates escolares, as reformas empresariais também interferem no conteúdo do currículo escolar sob o prisma do empreendedorismo, além do controle exercido através das avaliações externas e outras medidas de gestão.

Com o empreendedorismo e o conservadorismo, temos projetos para um capitalismo em crise. Visto a tendência de agressiva exploração em escala cada vez mais

52 O Parecer Técnico emitido pela Faculdade de Educação (FE) da Unicamp em 2017 demonstra que o projeto

viola princípios constitucionais e princípios e direitos previstos na LDB e no Estatuto da Criança e do Adolescente, que garantem que a educação oferecida deva se dar com base no pluralismo de ideias, ao contrário da ideia de “neutralidade”, encarada pelo Parecer, como um falseamento que não se realiza na prática. Cf. Parecer sobre PLO 213/2017 – “Programa Escola sem Partido” deliberado em reunião de Congregação da Faculdade de Educação da Unicamp em agosto de 2017. Disponível em: <https://www.fe.unicamp.br/institucional/noticias/professores-da-fe-elaboram-parecer-tecnico-sobre-escola- sem-partido-em>. Acesso em: 15 jan. 2019.

ampliada, de um lado temos o incentivo à responsabilização de si, a meritocracia e a incorporação de concepções próprias do tipo de regime de exploração que vivemos, ou “a construção de um futuro ancorado na ideia do esforço individual, num mundo “dado como dado”, no qual não entra a compreensão crítica capaz de transformá-lo” (KRAWCZYK, 2014, p. 33). De outro lado, a censura, o impedimento da diversidade de gênero e cultural e a criminalização direta. Evidentemente não cabe nesses projetos a compreensão crítica capaz de transformar a sociedade.

Estas medidas aumentam a desigualdade social e a precarização da formação escolar dos filhos da classe trabalhadora, aprofundando o abismo entre uma educação voltada para as pessoas que possuem condições socioeconômicas mais favoráveis, e para aqueles e aquelas que estão entre os mais pobres e em situações de vida de maior vulnerabilidade.

Freitas (2018) argumenta que uma das maneiras de aumentar a exclusão e as desigualdades já presentes no Brasil são as escolas públicas sob gestão da Polícia Militar. Sem entrarmos no debate sobre o contrassenso que significa tratar a educação como assunto de polícia, segundo Freitas (2018, p. 120), essas escolas que tem a finalidade de “restabelecer a disciplina em áreas de pobreza e violência”, tem aumentado a segregação social já que, em escolas praticamente transformadas em quartéis, quem não se adapta às regras é transferido, ou seja, excluído53.

O autor traz a experiência dos Estados Unidos com escolas em que a garantia da disciplina e o consequente aumento do autoritarismo dão base para eliminar os “tomates podres” ou “aqueles que não querem aprender” (FREITAS, 2018, p. 117). Além disso, nesse mesmo país, as escolas que são terceirizadas e operam através dos vouchers também incorporam a prática de exclusão daqueles que não se adaptam, já que são vistos como prejudiciais aos índices. Os que sofrem com a segregação e exclusão são estudantes de origem pobre e negros.

Georges Snyders (1977) escreveu que em alguns casos, as classes dominantes diminuem a influência da escola sobre os jovens filhos da classe trabalhadora para submetê- los à sua ação. É nas zonas mais pobres das cidades que as escolas são mais precárias e onde é maior a possibilidade de abandono escolar, por exemplo. Por isso a precarização da educação escolar para os mais pobres também é considerada uma forma de ação.

53 “Em 2015 já tínhamos 93 escolas terceirizadas para a Polícia Militar, com liberdade inclusive para pedir

pagamento voluntário aos pais dos estudantes que havia planejamento para entregar outras 24 para a administração da corporação. Goiás e Minas são campeões na iniciativa” (FREITAS, 2018, p. 120).

No entanto, o próprio autor argumentou que não é possível atribuir aos filhos da classe trabalhadora uma “consciência inteiramente mistificada”, como se eles não enxergassem em nada as contradições do sistema escolar e sua condição de explorados (SNYDERS, 1977). Isto é, as contradições se expressam no ambiente escolar e muitas vezes são percebidas.

Voltando às palavras de ordem que citamos no início do capítulo, elas demonstram que as ocupações secundaristas se posicionaram contra a lógica presente nestes projetos dominantes de escola e de educação. Ao contrário do postulado, as ocupações reivindicaram um processo educativo crítico como uma força para se contrapor às medidas governamentais que ocorrem em detrimento das condições de vida da população.