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3 A MEDIDA DE SEMILIBERDADE E AS EXPERIÊNCIAS VIVIDAS PELOS JOVENS

3.4 O S DESAFIOS DA EXPERIÊNCIA DE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE

3.4.3 A “Oficina da Lili”

A “Oficina da Lili” era a atividade de artesanato constante na rotina semanal da Casa, ministrada pela auxiliar educacional e assim denominada pelos jovens. De acordo com as diretrizes metodológicas da medida de semiliberdade, a rotina da Unidade deveria contemplar momentos de lazer, jogos, artesanato, entre outras atividades acompanhadas, que possuíssem uma proposta educativa. A participação na oficina não era obrigatória. Porém, contribuía para

uma avaliação institucional positiva do comportamento do jovem, durante a medida. Quanto mais os jovens participavam, registrando sua presença, mais positivamente eram avaliados. Uma prática que explicitava e reforçava essa lógica de recompensa era o ranking mensal de participação da oficina, no qual eram ranqueados o primeiro, segundo e terceiro lugar em número de frequência. De certa forma, essa prática gerava um incentivo, mesmo que competitivo, entre os jovens. Em alguns momentos, alguns deles ficavam disputando quem seria o próximo a ficar em primeiro lugar e/ou faziam questão de mostrar e “tirar vantagem” quando estavam em alguma posição do ranking.

Eram realizados três momentos de oficina de artesanato todos os dias, sendo duas na parte da manhã e uma à tarde, com duração de uma hora cada um. Os jovens eram organizados em três grupos, para possibilitar a participação de todos eles, bem como respeitar a sua rotina individual. Conforme mencionado anteriormente, a divisão dos grupos era realizada pelos agentes socioeducativos, a partir de alguns critérios, especialmente aqueles relacionados aos atritos existentes entre os jovens. No caso dessa atividade, havia uma abertura para a auxiliar educacional opinar e sugerir uma organização dos jovens, agregando outros critérios voltados para o comportamento manifestado por eles durante as oficinas, por exemplo, evitar incluir em um mesmo grupo aqueles que, se ficassem juntos, poderiam dispersar o grupo todo. Buscava-se mesclar aqueles que se envolviam mais com as atividades com os que se envolviam menos.

Para os jovens, a “Oficina da Lili” era uma das melhores “coisas” da experiência da medida. Quando perguntava se havia coisas boas na medida, ou sobre o que eles mais gostavam e/ou ainda sobre o que eles levariam como uma boa lembrança dessa experiência, as respostas dos jovens sempre eram compostas pelo elemento da “Oficina da Lili”.

Durante as oficinas, os jovens teciam tapetes, chaveiros de miçangas, panos de prato, mas, teciam também, e principalmente, histórias, sentimentos de alegria e também de tensão, apreensão, tristeza, afetos e desafetos, dilemas e desafios das experiências de dentro e fora da medida. Eram tecidos também outros vínculos, apontados significativamente pelos jovens, com a Lili e também com as agentes socioeducativas que acompanhavam as atividades. Foi possível perceber que havia ainda um certo pano de fundo na ação da oficina de artesanato, de cunho religioso. Durante todo o tempo da oficina ouvia-se música, esse som tratava-se de um repertório de hinos religiosos organizados pela auxiliar educacional. Não havia uma relação direta com a ação educativa da oficina de artesanato propriamente dita. No entanto, o discurso religioso se estendia ao momento espiritual, também coordenado pela auxiliar educacional,

para o momento de oficina. Assim, é pertinente inferir que nessas ações havia uma espécie de um currículo de conversão, endossado pela gestão da Casa de Semiliberdade e, em muitos momentos, reproduzidos nos discursos dos jovens, especialmente quando retratavam sobre o desejo de “sair dessa vida”.

O espaço-tempo da oficina de artesanato era vivido pelos jovens como espaço de relaxar, distrair a mente, no qual vivenciavam a sociabilidade sem tanto formalismo, conseguiam “trocar ideia” mais à vontade. Todos – mais, outros menos ‒ contavam casos, experiências vividas, falavam das paixões, das desilusões amorosas, das histórias de família, entre outros assuntos, como música, futebol, tatuagem. “É um momento livre, que você tá de boa, você pode relaxar. Que você tá de boa, é isso aí ...” (Edson, 18 anos). Também falavam sobre dilemas e desafios que enfrentavam na sua “quebrada”, de forma mais restrita e impessoal. Como quem não dá todas as cartas de uma vez, contavam sobre as notícias que ficavam sabendo sobre o “mundão” como conflitos, confrontos e outros. Ora conversavam sobre assuntos relacionados ao cotidiano da Casa, de maneira mais reservada, utilizando muitas vezes uma linguagem codificada, para garantirem que a informação ficasse somente entre eles, ou que não fosse totalmente revelada. Essas conversas tratavam tanto de algum combinado ou trato entre eles, ou sobre “armar” alguma coisa contra outro jovem, ou ainda compartilhar alguma informação que poderia ser importante no contexto das articulações que faziam entre eles. Nesses momentos, sempre havia uma interferência punitiva vinda da agente socioeducativa que estivesse acompanhando a atividade e, às vezes, da auxiliar educacional, que “cortava” a conversa, como se os jovens estivessem fazendo algo proibido no âmbito da medida, infringindo uma certa regra implícita.

O momento da “Oficina da Lili” era significado também pelos jovens como lugar de aprendizagem. Para eles, era um momento em que estavam aprendendo alguma coisa útil. Alguns deles chegaram a considerar como uma atividade que pudesse ser exercida após cumprirem a medida como meio de gerar renda.

Tipo assim, passa o tempo e a gente vai ouvindo aqueles hinos ali também, vai entrando na nossa mente. A Lili vai ajudando a gente, a gente vai trabalhando, fazendo os tapetes e aquilo é um trabalho que mais tarde a gente pode fabricar uns tapetes pra vender. Ela tá tipo ensinando a gente (Fernando, 17 anos).

Ao mesmo tempo, a oficina era um momento de passar o tempo da medida e de ocupar a mente. “A gente aprende artesanato, ocupa a mente ali na oficina da Lili [...]” (Heitor, 13 anos). A expressão “ocupar a mente” se revelou para análise como um aspecto imbricado de

um sentido mais moralizante, o qual se refere à ideia de que havia sempre a necessidade de ocupar a mente com alguma coisa, porém não qualquer coisa. Era necessário se ocupar da coisa certa e não errada, de pensamentos certos e não desviantes. Desse modo, na concepção dos próprios jovens, o tempo da oficina possibilitava que eles não estivessem voltados para os “pensamentos e ações tortuosos”. Desse modo, a forma como a política de atendimento socioeducativo de semiliberdade era colocada em prática, através da oficina de artesanato, reforçava, mesmo que não intencionalmente, a noção estigmatizante pela qual os jovens eram vistos, representados e materializado nas instituições.

Além desse aspecto, sobressaiu-se no cotidiano observado e nas falas dos jovens a dimensão da relação com a auxiliar educacional, estabelecida de forma especial, se comparada com a relação deles com as demais pessoas que compunham a equipe técnica e de segurança, em geral mais distante, ou talvez mais formal, institucionalizada, um vínculo mais superficial, embora sempre respeitosa, com poucos atritos e tensões. Em algumas falas, os jovens deixam claro que não se abriam com a equipe técnica para contar sobre as coisas da vida deles, os conflitos internos e externos, os planos, os desafios de viver em constante prova, condição de violência e vulnerabilidade.

Segundo Carmem Craidy (2012), existe um fator que pode ser determinante no estabelecimento de relação entre equipe técnica e de segurança, no cotidiano da medida. Trata-se da responsabilidade e do papel que eles têm de fundamentar a decisão do juiz, através das avaliações registradas a cada seis meses de cumprimento de medida, podendo interferir diretamente no curso de vida dos jovens. “O adolescente sabe que será julgado de acordo com o relatório do técnico, e isso pode significar obstáculo a uma relação de confiança” (CRAIDY, 2012, p. 52). Sendo assim, o jovem tende a manter a distância necessária nessa relação, já que uma aproximação acima do limite pode acarretar para eles problemas e prolongamento da sua condição de privação de liberdade.

Diferentemente, a relação estabelecida com a Lili se tornou um vínculo de confiança e de referência para os jovens, que se constituiu em uma marca, contribuindo com o processo da experiência da medida de semiliberdade. Embora a oficina de artesanato não tivesse o objetivo de trabalhar a formação humana e espiritual, a Lili acabou se tornando uma referência humana e espiritual para os jovens, pois além de ministrar e acompanhar as atividades da oficina, ela também se propôs a realizar momentos de espiritualidade.

[...] Tem a Lili… Ainda mais com a Lili. Ninguém consegue esquecer da Lili, não. Lili é gente boa! (Heitor, 13 anos).

Conversando com a Lili, no dia eu fiquei deprimidão, só nas “jegas” lá pensando na vida, pensando no meu moleque. Aí eu subo para oficina, fico conversando com a Lili esses trem. Aí ela falando que tenho vontade de mudar, que não sei o que… Falei com ela que eu tinha vontade de mudar aí ela fez uma oração (Ronan, 17 anos).

Nesse sentido, é possível inferir que o momento da oficina, como também os momentos espirituais, eram espaços-tempos que possibilitavam uma participação mais direta dos jovens na construção de algo, bem como reflexão. A relação estabelecida com a Lili estava mais pautada na aproximação, na abertura, na escuta do jovem, e menos nas representações destinadas a eles, tendo em vista os contextos ilícitos que os levaram a estarem cumprindo medida socioeducativa. Apesar de essa relação estar pautada em um repertório religioso voltado para a ideia de conversão espiritual como possibilidade de mudança de vida, havia um sentimento de aposta nos jovens, demonstrado pela auxiliar educacional; uma espécie de confiança e crença nas possibilidades de mudanças e de expectativas futuras para a vida deles.

A relação entre a Lili e os jovens, por mais institucional, hierarquizada que fosse, era uma relação mais humana, que reconhecida e de alguma forma devolvia a humanidade dos jovens. E assim, a oficina de artesanato se tornou espaço-tempo da rotina da Casa à qual os jovens atribuíam mais sentido, demonstravam estar mais interessados e se sentindo mais pertencentes. Portanto, o momento da oficina de artesanato foi ressignificado pelos jovens e se revelou como rico espaço de construção de sentidos sobre a experiência.

4 OS SENTIDOS E SIGNIFICADOS DOS JOVENS SOBRE A EXPERIÊNCIA DA