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OLHARES E VOZES: DIALÉTICAS MULTIVE TORIAIS

No documento A polifonia do olhar (páginas 31-39)

2.2.1 Os elos interativos do “eu”

As discussões teóricas percebem mais acentuada a dilui- ção de fronteiras entre os discursos histórico e literário quan- do a narrativa adentra pelo romance histórico e pelas varieda- des da Literatura biográfica, em função do caráter de referen- cialidade e pela forma com que os caracteriza.

12 E nte nd e-se por Li tera tu ra bi ográ fi ca : bi og rafia , au tobiograf ia, me mó-

r ia s, ca r ta s, diá ri o, a u t o- re t ra to, e nsai o e o u tra s f orma s q ue da í pos- sa m deri var.

Segundo Bakthin,13 não há demarcação nítida entre auto-

biografia e biografia. Tanto em uma como na outra uma histó- ria de vida pode ser objetivada em plano artístico. Na biogra- fia, o autor se situa muito próximo de seu herói. O autor da biografia é um outro possível que, de certa forma, exerce do- mínio sobre o “eu” representado.

A autobiografia, atualmente, é reconhecida pela comuni- dade literária como uma tarefa premeditada. Philippe Lejeu- ne14 define autobiografia como “relato retrospectivo em prosa

que uma pessoa faz de sua própria existência, enfatizando sua vida individual e, em particular, a história de sua personali- dade” (p. 13) e, no que concerne ao conteúdo, alerta que se pode confundir autobiografia e romance autobiográfico.

O gênero autobiográfico supõe uma identidade assumida no nível da enunciação entre autor, narrador e personagem. Essa identidade é essencial e pode ser percebida de duas ma- neiras: implicitamente, por ocasião do pacto autobiográfico, e de maneira patente, na narrativa, pela igualdade entre os no- mes do narrador-personagem e do autor.

Para Georges Gusdorf15, a autobiografia responde à in-

quietude mais ou menos angustiada do homem que envelhece. O ”retrato” da história da vida pessoal envolve as fraquezas da memória, que precisam ser superadas para propiciar o res- tabelecimento das verdades dos fatos. Para o teórico, “a evoca- ção histórica estabelece uma relação muito complexa entre passado e presente, uma reatualização que nos impede de des-

13 BA KH T IN, Mi kha il M . A au tobi og rafia e a bio grafia. In: Est ét i ca d a cr i -

a ç ão v e r ba l. Sã o Paul o: Marti ns Fontes, 1992.

14 LEJEUNE, Philippe. L e p ac t e a ut o b iog rap h iqu e en Fr an ce . Pa ris : S eui l,

1975.

15 GUS DOR F, Georges. Condiciones y l imi tes de la au tobi ografia. S up le -

cobrir o passado em si, tal como foi: o passado sem nós”.

A autobiografia é um documento sobre uma vida, mas é também uma obra-de-arte. Como documento, o historiador tem direito a comprovar o testemunho, verificar sua exatidão. No entanto, o valor artístico do gênero supera a historicidade comprovada e oferece o testemunho de uma verdade singular: do sujeito com seus sonhos, suas representações de si, do seu mundo e do mundo dos outros. A projeção do domínio interior sobre o exterior realiza, nas entrelinhas do texto autobiográfi- co, a projeção de uma consciência em busca de sua verdade pessoal.

As fontes de que parte Carlo Ginsburg, para sua recupe- ração histórica, são os arquivos da Inquisição, nos quais se en- contram, basicamente, registros escritos de produções orais. Isso oferece outro aspecto da obra, o limiar entre a oralidade e a escrita. Mais ainda, a tentativa de recuperação de uma orali- dade já deturpada pela escrita.

A personagem de Ginsburg apresenta características que a distinguem dos seus conterrâneos. Não representa a comuni- dade, é um ex-cêntrico em seu universo espacial e temporal, o que ressalta outra liminaridade, entre a oralidade e a escrita. Diferente dos camponeses de sua aldeia, alfabetizado, desliza- va pela cultura oral e escrita.

O texto de Ginsburg estrutura-se em processos de media- ção. O historiador constrói uma segunda forma à memória de um Outro. Menocchio “é”; “existe” uma primeira vez pelo re- gistro do escrivão da Inquisição e, uma segunda vez, pelo en- saio que chega até nós.

A memória da personagem em relação a si e sobre os ou- tros é mediada pela diferença cultural, que acarreta registro do

relato oral, e pelo resgate desse relato. O leitor “conhece” a vida do moleiro através da memória de dois outros sobre o “Outro” que a leitura lhe entrega.

Ao mesmo tempo em que a oralidade, só recuperada pelo registro escrito, ajuda a resgatar a figura de Menocchio, já que são os interrogatórios orais as fontes existentes, também ela relativiza o registro de Ginsburg. Em O queijo e os vermes, fica evidente que o acesso à escrita passa a ser uma fonte de poder no século XVI.

Os camponeses detêm, apenas, a cultura popular, ou seja, a oralidade, enquanto Menocchio já tem acesso a algo que per- tenceria à classe superior, uma vez que é capaz de ler, e lê muito. O olhar dele para a sua aldeia é distinto dos que convi- vem com ele; da mesma forma que ele é observado como dife- rente “ f o i o c h o q u e e n t r e a p á g i n a i m p r e s s a e a c u l t u - r a o r a l , d a q u a l e r a d e p o s i t á r i o , q u e i n d u z i u M e n o c c h i o a f o r m u l a r – p a r a s i e m p r i m e i r o l u - g a r , d e p o i s a o s s e u s c o n c i d a d ã o s e , p o r f i m , a o s j u í z e s – a s “ o p i n i õ e s [ . . . ] q u e s a í r a m d a s u a p r ó p r i a c a b e ç a ” ( G I N S B U R G , p . 8 9 ) .

A voz de Menocchio, registrada no julgamento, seria a mesma conhecida dos moradores de Montereale? Entre os seus, ele partilhava códigos comuns. E não tinha medo.

“ M a s n a s d i s c u s s õ e s c o m s e u s c o n t e r r â n e o s M e n o c c h i o f a z i a a f i r m a ç õ e s m u i t o i m p e t u o s a s : “ Q u e m é e s s e t a l d e D e u s ? É u m a i n v e n ç ã o d a e s c r i t u r a , q u e o i n v e n t o u p a r a n o s e n g a n a r ; s e f o s s e D e u s s e m o s t r a r i a ( . . . ) O q u e é o E s p í r i t o S a n t o ? [ . . . ] N ã o s e v ê e s s e t a l d e E s p í r i t o S a n t o ( G I N S B U R G , p . 1 2 1 ) .

de suas palavras sobre Deus e o Espírito Santo, durante o pro- cesso, Menocchio fala:

“ N u n c a s e e n c o n t r a r á q u e m a f i r m e q u e e u t e n h a d i t o q u e o E s p í r i t o s a n t o n ã o e x i s t e ; p e l o c o n - t r á r i o , m i n h a m a i o r f é n e s t e m u n d o e s t á j u s t a - m e n t e n o E s p í r i t o S a n t o e n a p a l a v r a d o a l t í s - s i m o D e u s q u e i l u m i n a o m u n d o t o d o “ ( G I N S - B U R G , p . 1 2 1 ) .

Ele é dúbio em suas falas. A memória dos outros sobre a personagem poderia ser una, considerando a situação de jul- gamento e as diferenças culturais entre camponeses e clérigos? Os depoimentos dos camponeses permitem perceber a admiração que sentem pelo moleiro, concordem ou não com ele. E ele não encontrava terreno para discutir. As vozes dos clérigos deixam perceber outra realidade. Ao ser inquirido, durante um dos interrogatórios, Menocchio cala, pensa e, de- pois, retoma: “ O v i g á r i o , i n s i s t i n d o : “ O E s p í r i t o d e D e u s e D e u s s ã o a m e s m a c o i s a ? E o E s p í r i t o d e D e u s e s t á i n c o r p o r a d o n o s q u a t r o e l e m e n t o s ? “ E u n ã o s e i ” – r e s p o n d e u M e n o c c h i o . P e r m a n e c e u c a l a d o p o r a l g u m t e m p o . [ . . . ] “ C o n f e s s e a v e r d a d e . . . ” ( G I N S B U R G , p . 1 2 8 ) .

A identidade de Menocchio se reconstrói com fontes ma- leáveis. Os depoimentos dos moradores de Montereale ofere- cem uma voz de Menocchio, os escritos dos julgadores, outra. E, ao historiador, a tarefa de selecionar a verdade dos fatos a- través das vozes escritas.

A escrita de Menocchio aparece através de uma carta que entrega aos juízes, após ter recusado o advogado que lhe fora oferecido. E Ginsburg a comenta:

“ O p r ó p r i o a s p e c t o d a s p á g i n a s e s c r i t a s p o r M e n o c c h i o , c o m a s l e t r a s c o l a d a s u m a s à s o u - t r a s , m a l l i g a d a s e n t r e s i [ . . . ] m o s t r a c l a r a m e n - t e q u e o a u t o r n ã o t i n h a m u i t a f a m i l i a r i d a d e c o m a e s c r i t a . [ . . . ] C o m c e r t e z a n ã o f r e q ü e n t a r a e s c o l a a l g u m a d e n í v e l s u p e r i o r , e a p r e n d e r a e s c r e v e r d e v e t e r l h e c u s t a d o m u i t o , m e s m o f i s i - c a m e n t e , o q u e s e p e r c e b e p o r a l g u n s s i n a i s q u e m a i s p a r e c e m t a l h a d o s n a m a d e i r a d o q u e t r a ç a - d o s s o b r e o p a p e l . J á c o m a l e i t u r a d e v i a t e r f a - m i l i a r i d a d e b e m m a i o r . E m b o r a f e c h a d o “ n a p r i - s ã o e s c u r a d u r a n t e 1 0 4 d i a s ” , e v i d e n t e m e n t e s e m l i v r o s à d i s p o s i ç ã o , c o n s e g u i r a d e s c o b r i r n a m e m ó r i a f r a s e s q u e f o r a m l e n t a m e n t e e d u r a n t e m u i t o t e m p o a s s i m i l a d a s d a h i s t ó r i a d e J o s é , l i - d a n a B í b l i a e n o F i o r e t t o ” ( p . 1 5 2 ) .

E conclui, após examinar a carta:

“ A n t e s d e s e t o r n a r e m s i n a i s n u m a p á g i n a , a - q u e l a s p a l a v r a s d e v e m t e r s i d o r u m i n a d a s p o r m u i t o t e m p o . T o d a v i a , d e s d e o i n í c i o h a v i a m s i - d o p e n s a d a s c o m o p a l a v r a s e s c r i t a s . A “ f a l a ” d e M e n o c c h i o – d o q u e p o d e m o s c o n j e t u r a r d a s t r a n s c r i ç õ e s f e i t a s p e l o s e s c r i v ã e s d o S a n t o O f í - c i o - e r a d i f e r e n t e , s e n ã o p o r o u t r a r a z ã o , p o r - q u e i n t r i n c a d a d e m e t á f o r a s , a b s o l u t a m e n t e a u - s e n t e n a c a r t a e n v i a d a a o s j u í z e s ” ( G I N S B U R G , p . 1 5 3 ) .

Os juízes, após o exame da carta, promulgam a sentença; “non modo formalem hereticum[...] sed etiam heresiarcam” (não só um herético formal [...] mas também um heresiarca (GINS- BURG, p. 155). Era o dia 17 de maio. E o tamanho da sentença, muito longa, denotava “o profundo fosso, evidente em todo o processo, que separava a cultura de Menocchio da dos inquisi- dores” (GINSBURG, p. 158).

O réu permaneceu no Cárcere de Concórdia quase dois anos. Em 18 de janeiro de 1584 seu filho entrega uma súplica

ao bispo Matteo Sanudo e ao Inquisidor de Aquiléia e Concór- dia. A súplica, escrita pelo próprio Menocchio, deixava perce- ber a intervenção de um advogado. Considerando o “bom comportamento” do encarcerado como sinal de conversão, o Santo Ofício comutou a sentença.

“ C o m o c á r c e r e p e r p é t u o p a r a M e n o c c h i o f o i d e - t e r m i n a d a a a l d e i a d e M o n t e r e a l e , f i c a n d o - l h e p r o i b i d o a f a s t a r - s e d a l i . F i c a v a - l h e e x p r e s s a - m e n t e p r o i b i d o t a m b é m f a l a r o u m e n c i o n a r s u a s i d é i a s p e r i g o s a s . D e v e r i a c o n f e s s a r c o m r e g u l a - r i d a d e e u s a r s o b r e a r o u p a o h á b i t o c o m a c r u z , s i n a l d e s u a i n f â m i a ” ( G I N S B U R G , p . 1 6 1 ) .

O moleiro voltou e tomou seu lugar na comunidade. A- pesar da condenação e da prisão, pouco a pouco se readaptou e, em 1590, foi novamente nomeado administrador da igreja de Santa Maria de Montereale.

Quinze anos após ter sido interrogado pela primeira vez, foi novamente chamado para interrogatório. Várias novas de- núncias contra ele haviam surgido. Tinha 67 anos e continuava a relativizar crenças e instituições. “Em 12 de julho de 1599 compareceu diante do Inquisidor, frade Gerolamo Asteo, do vigário de Concórdia, Valério Trapola, e do magistrado do lu- gar, Pietro Zane” (GINSBURG, p. 170).

Em 2 de agosto do mesmo ano, o Santo Ofício o julgou “... por unanimidade, um relapso, um reincidente. O processo terminara. Decidiu-se, no entanto, submeter o réu à tortura, para arrancar-lhe o nome dos cúmplices. Isso aconteceu em 5 de agosto” (GINSBURG, p. 179-180).

No dia 4, a casa em Montereale havia sido revistada e todos os livros de Domenico confiscados. Mesmo sob tortura, o moleiro não falou com quem costumava discutir suas idéias.

O leitor de O queijo e os vermes defronta-se com uma mul- tiplicidade de vozes, ideologias e consciências independentes. A tessitura textual desdobra-se em híbridos, particulariza-se, assume uma estética que joga com elementos novos e antigos, dessacraliza formas e inova em associações ambivalentes. O olhar do leitor, a cada palavra, encontra mais que História, mais que Literatura.

O texto de Ginsburg dialoga diretamente com a posição do historiador sugerida por Peter Burke. Preocupado com toda a abrangência da atividade humana, esse historiador dimensi- ona um deslocamento “do ideal da Voz da História para aquele da heteroglossia16, definida como vozes variadas e opostas”

(BURKE, 1992, p. 22).

O relativismo cultural que, de acordo com Burke, está implícito no paradigma da Nova História, acentua a interdis- ciplinaridade que pode ser percebida no texto de Ginsburg. O passado, reescrito, dialoga abertamente com o presente: Me- nocchio - “Conceda-me a graça de me ouvir, senhor ”- conti- nua falando. E a sua voz, captada pela “polifonia do olhar”, é plural em ecos.

16 O termo “heterogl ossia” i nte gra os e s tudos de Mikhail Bak htin, q ue o

d efi ne c omo u m c onjunto d e cir cu ns tâ nc ias s ocioid eol óg icas que cara c- teriza m a fala de um dete rmi nado grupo socia l em determi na da época . Segund o o teórico russo, o significado de um enunciado se dá a partir da c onverg ê ncia d e f or ças inter nas e exte rnas, que determi nam as c o nd i ç õe s d e c on t r ol e d e s u a s i g nif ica ção. Di ss o d e cor re a conc e pção d e qu e ca da g ru po soc ial a pr es en ta u ma visã o d e mun d o di fe ren te , a qual se manife s ta na li ngua ge m, da d o que ne la ac onte ce m os c onfli tos s o cia i s .

No documento A polifonia do olhar (páginas 31-39)