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A VIDA EM PRISMAS: O ROMANCE

No documento A polifonia do olhar (páginas 39-43)

3 OLHARES CRUZADOS E O RESTO É SILÊNCIO

3.1 A VIDA EM PRISMAS: O ROMANCE

Na evolução das formas literárias, avulta o desenvolvimento e a crescente importância do romance, contrariando o pressuposto teórico clássico, como bem atestam as palavras com que Jonathan Cüller (1999) inicia o capítulo seis, dedicado à narrativa, do livro Teoria Literária

uma introdução: “Era uma vez um tempo em que literatura significava,

sobretudo, poesia” (p. 84). Alargando continuamente o domínio de sua temática, interessando-se pela psicologia, pelos conflitos sociais e polí- ticos, ensaiando constantemente novas técnicas narrativas e estilísticas, o romance transformou-se, a partir do século XIX, na mais importante e mais complexa forma de expressão literária dos tempos modernos.

É significativo verificar que o romance moderno se constitui não só sobre a dissolução da narrativa puramente imaginosa do Barroco, mas também sobre a desagregação da estética clássica. Até o século de- zoito, era um gênero desprestigiado. Embora de há muito se reconhe- cesse o singular poder da arte de narrar, ela era conceituada como obra frívola, cultivada por leitores pouco exigentes em matéria de cultura. Nesse espírito, o romance medieval, o renascentista e o barroco diri- gem-se fundamentalmente a um público feminino, ao qual oferecem mo- tivos de evasão e entretenimento.

O texto Questões de literatura e de estética, a teoria do romance, de Mikhail Bakhtin, desvela o interesse do teórico soviético pelo gênero romanesco, considerado pela estilística tradicional como extra-literário. Seus estudos acentuam a importância do gênero que, segundo ele, não é como qualquer outro, uma vez que tem em sua base a noção de dialo- gismo. Para Bakhtin, em cada texto, em cada enunciado, em cada pala- vra ressoam duas vozes: a do eu e a do outro em processo comunicativo. O romance, para Bakhtin, caracteriza-se pela consciência do dia- logismo, pelo trabalho sistemático com o jogo de vozes simultâneas em um mesmo enunciado. O teórico situa as origens do gênero e suas raízes históricas na sátira menipéia e na paródia popular da Antigüidade e da Idade Média, salientando que, além da noção de dialogismo, importam as de polifonia e de carnavalização no seu processo de constituição.

O aspecto dialógico refere-se à possibilidade, ou abertura, do dis- curso para admitir a presença de uma multiplicidade de vozes e consci- ências independentes, o que caracteriza a polifonia. Esta apresenta-se não só na diversidade de pontos de vista apresentados pelas persona- gens, as quais assumem independência, mas na própria heterogeneida- de de formas do discurso presentes na narrativa.

Esse caráter polifônico do discurso é importante para o conceito de carnavalização. Para Bakhtin, o carnaval “aproxima, reúne, celebra os esponsais e combina o sagrado com o profano, o elevado com o bai- xo, o grande com o insignificante, o sábio com o tolo...” (1981, p. 106). Na introdução de A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o

contexto de François Rabelais, ele focaliza o carnaval e a importância da cultura cômica na Idade Média e no Renascimento, mostrando a impor- tância do carnaval e do riso para uma dualidade do mundo. Também a- firma que uma literatura paródica era escrita tanto em latim quanto em língua vulgar, possibilitando paródias sacras, de orações e de leituras

evangélicas, o que aumentava o interesse e a quantidade do público. Considerando os estudos bakhtinianos, é possível “ver” a trans- mutação das vozes diversas das festas populares encontrando terreno fértil no gênero romanesco, que permite uma narrativa em que o outro é uma constante. O romance aglutina a realidade e o discurso da e sobre esta. Se o processo de realização do objeto estético é “um processo de transformação sistemática de um conjunto verbal, compreendido lin- güística e composicionalmente, no todo arquitetônico de um evento es- teticamente acabado” (BAKHTIN, 1998, p. 51), no romance, o todo está vinculado a sujeitos e realidades histórico-sociais.

O pícaro é o sujeito-origem da personagem romanesca. Pela sua natureza, pelo seu comportamento, é um anti-herói, um inversor dos mitos heróicos e épicos, que anuncia uma nova época e uma nova men- talidade. Através da sua rebeldia, do seu conflito radical com a socie- dade, o pícaro afirma-se como um indivíduo que tem consciência da le- gitimidade da sua oposição ao mundo e ousa considerar, em desafio aos cânones dominantes, a sua vida mesquinha e reles como digna de ser narrada. E é o romance moderno indissociável dessa confrontação do indivíduo, bem consciente do caráter legítimo da sua autonomia, com o mundo que o rodeia.

A voz de quem fala no romance é aspecto fulcral da teoria bakhti- niana: “O plurilingüismo, dessa forma, penetra no romance, por assim dizer, em pessoa, e se materializa nele nas figuras das pessoas que fa- lam, ou então, servindo como um fundo ao diálogo, determina a resso- nância especial do discurso direto do romance” (BAKHTIN, p. 134). E disso nasce uma característica importante do gênero: “o homem no ro- mance é essencialmente o homem que fala; o romance necessita de fa- lantes que lhe tragam seu discurso original, sua linguagem” (BAKTHIN, p. 134).

O principal objeto do gênero romanesco, que o caracteriza e lhe confere originalidade estilística é “o homem que fala e sua palavra” (p. 135). Disso se depreendem três aspectos: a) o homem que fala e sua pa- lavra são objeto tanto de representação verbal como literária; b) o sujei- to que fala no romance é essencialmente social; c) o sujeito que fala no romance é, sempre, em certo grau, um ideólogo.

Esses fatores levam à teoria de que uma linguagem particular no romance representa sempre um ponto de vista particular sobre o mundo, que aspira a uma significação social. Além disso, graças à representação dialogizada de um discurso ideologicamente convincente, o romance favorece o reconhecimento do narrado e entabula o processo comunica- tivo e, nesse, não é a imagem do homem em si que importa, e, sim, “a imagem de sua linguagem” (p. 137).

O romantismo é o período que estabelece as normas e formas para o “novo” gênero e singulariza a personagem como elemento de funda- mental importância à narrativa romanesca. Porém o estatuto da perso- nagem solidamente definida pelos seus predicados e suas circunstâncias − características, traços fisionômicos, meio social, ocupação profissional − entrou em crise ainda na segunda metade do século XIX, com os ro- mances de Dostoievski. À leitura destes, dificilmente se rememoram os rostos, a cor dos olhos a decoração das casas de suas personagens.

Segundo Mikhail Bakhtin, o herói interessa a Dostoievski não en- quanto fenômeno na realidade, possuindo traços caracterológicos e so- ciológicos definidos, nem enquanto imagem determinada, mas, sim, como ponto de vista particular sobre o mundo e ele próprio, como a po- sição do homem que busca a sua razão de ser e o valor da realidade cir- cundante e da sua própria pessoa.

O romance dos últimos anos do século XIX e das primeiras déca- das do século XX herdou e desenvolveu a lição dostoievskiana. Torna-se

mais que dialógico, caracteriza-se como polifônico por excelência. O discurso romanesco assimila elementos da enunciação histórico-social, que é comunicada de forma harmônica por vozes plurais: a ação roma- nesca dessas obras representa a vida no seu fluir vasto, lento e denso.

No documento A polifonia do olhar (páginas 39-43)