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UMA LEITURA DO SILÊNCIO NO OLHAR

No documento A polifonia do olhar (páginas 50-55)

3 OLHARES CRUZADOS E O RESTO É SILÊNCIO

3.3 UMA LEITURA DO SILÊNCIO NO OLHAR

A orientação dialógica é um fenômeno próprio a todo discurso: ele é sempre orientado para a resposta. Assim, é possível afirmar-se que

todo discurso situa-se na fronteira de seu próprio contexto e no contex- to de outro.

No caso do romance, a representação artística se estrutura através de vozes diversas, que entabulam diálogos com as coordenadas sócio- históricas que as regem. O romance de Erico entabula diálogo direto en- tre dois universos epistemológicos distintos: a História e a ficção.

O resto é silêncio tem como ponto-base de sua estrutura um fato real. “ E m m a i o d e 1 9 4 1 , n u m a n o i t e c e r d e c é u l í m p i d o c o m t o n s d e v e r d e c r i s t a l i n o n o h o r i z o n t e , c o n v e r s a v a c o m m e u i r m ã o n u m a d a s c a l ç a d a s d a P r a ç a d a A l f â n d e g a , [ . . . ] q u a n d o v i p r e c i p i t a r - s e d o a l t o d e u m d o s e d i f í c i o s v i z i - n h o s u m v u l t o h u m a n o , u m c o r p o d e m u l h e r , q u e , a o b a - t e r n a s p e d r a s d o c a l ç a m e n t o d a r u a , p r o d u z i u u m s o m h o r r e n d o q u e j a m a i s p u d e e s q u e c e r . C r i m e ? S u i c í d i o ? N u n c a f i q u e i s a b e n d o a o c e r t o . M a s e s s e f a t o , q u e m e i m - p r e s s i o n o u f u n d a m e n t e , u m a n o m a i s t a r d e s e r v i u - m e c o - m o p o n t o d e p a r t i d a p a r a o r o m a n c e O r e s t o é s i l ê n c i o ( 1 9 4 3 ) ” . (S o l o d e C l a r i n e t a I 17, p . 2 7 9 ) .

O acontecimento da Rua da Praia permaneceu, durante algum tempo, fato histórico apenas. Depois adentrou o espaço da representa- ção artística e passou a tramitar em duas esferas.

Como já afirmamos, o primeiro elo entre a História e a ficção é a narrativa. O ato de narrar, por parte do sujeito, contém a tentativa de descobrir-se e ao mundo. O retomar de um fato passado, ao mesmo tempo em que o reatualiza, revela-se como possibilidade para constru- ção e ampliação do sentido. Colocada no plano da linguagem, a referên- cia real é sempre incompleta. E a incompletude da referência aponta pa- ra a polissemia e para a polifonia que estão nos múltiplos sentidos e

17 A na rra ti va S o l o d e Cla r in et a inte gra o campo da literatura biográfi ca. N ela, o au -

tor Eri c o V eríssi mo res ga ta aspectos da sua vi da pess oal e, em alg uns trechos , como o aqui ci ta do, tece come ntários sobr e a própria pr oduçã o li te rária.

nas múltiplas vozes que participam do diálogo da vida e da História. A reurdidura de um fato passado delineia-se como um ato de re- velação pautado pela eficiência contratualista entre autor e leitor. Para Paul Ricoeur18, é através da leitura, principalmente, que se concretiza

“a referência metafórica, resultante da inevitável fusão de horizontes, o do texto e o do leitor, e, portanto, a intersecção do mundo do texto com o mundo do leitor” (p. 121).

O ato da leitura adquire, portanto, dimensão efetiva de presentifi- cação de sentido e significação, tanto na narrativa ficcional como na histórica. A utilização de um acontecimento histórico oferece elemento sedutor ao jogo de significação a ser percorrido. E que pode bem ser sintetizado pelas palavras do escritor português José Saramago, ao refe- rir a questão das relações entre História e ficção “o que importa é que tenhamos, de ambas, uma compreensão duplicada – a do homem pelo Fato e a do Fato pelo Homem”19.

Observada a inserção histórica no romance de Erico, é prerrogati- va, para a condução da análise e os rumos que ela pretende cercear, perscrutar a recepção de O resto é silêncio. O processo comunicacional entabulado pela representação de sete formas de ver uma sociedade a- vança para o âmbito da crítica literária. A publicação do romance origi- na uma polêmica que abrange a esfera intelectual e política de Porto Alegre. A questão se instaura após a publicação de um artigo que “acu- sa” a imoralidade presente no romance.

O autor do texto é o Padre Leonardo Fritzen, professor de Litera- tura de um sólido estabelecimento de ensino de Porto Alegre - o Colé- gio Anchieta. Com o intento de honrar o recém-falecido Getulinho Var-

gas, ex-aluno seu, o professor redige um artigo que dialoga com O resto

18 R I COEUR , Paul. T empo e n ar r at iv a . Ca mpi nas: Pa pi rus, 1994, Tomo I. 19 S ARAMAGO, J os é. Hi s tória e fi cçã o. J orn al d e Let ra s, Lisboa , nº 400, 1990.

é silêncio e oferece, para análise, aqui, o ângulo da recepção especiali- zada, que despreza “o pacto” proposto após o título: “romance”.

A quebra do pacto instaura uma mudança de foco, relativiza con- ceitos absolutos de verdade e de totalidade, além de deslocar a idéia de verdade dos fatos para a idéia de verdade do discurso.

3.3.1 O romance de Erico

A narrativa de O resto é silêncio estrutura-se em quatro seqüências de ações, que irão compor o enredo: tudo o que precede a queda da mo- ça, o relato das histórias de vida das personagens que volveram o olhar para um mesmo fato, as reflexões sobre o ocorrido e a reunião das per- sonagens em um concerto.

Através das personagens, efetiva-se a reflexão sobre a ação poéti- ca, uma contemplação da perspectiva literária, a manifestação de diver- sas vozes e o lugar de onde elas fluem. De certa forma, são discutidas balizas e núcleos teóricos de teórico-romancista: nessa perspectiva, a obra é uma reação ao mundo e se elabora na tensão e no drama entre o sujeito e o mundo.

Não é discurso de salvação ou de harmonia, e, sim, processo ver- bal por meio do qual se enfrenta a existência e a precariedade desta: o homem, tomando consciência de sua condição mortal, procura a própria sobrevivência, que está, acima de tudo, na relação com o outro.

Aspecto relevante é a inserção, como linguagem de liberdade, de confrontos entre versões de mundo sob o ângulo do olhar de sujeitos múltiplos. A pluralidade é o resultado das ebulições geradas pela me- mória de um momento captado pelo olhar. A narrativa é mediadora de espaços, tempos e mundos. Reúne as oposições ou diferenças, estabele- cendo-se como mecanismo cognitivo que permite o reconhecimento e as

transformações que o leitor efetua.

Nessa direção, o discurso de O resto é silêncio se revela como o re- sultado de um processo de interação de linguagens, contextos e sujei- tos; uma espécie de desterritorialização para se chegar a uma re- territorialização no domínio da linguagem-arte.

Joana Karewska é o fio que tensiona as demais seqüências narrati- vas. O foco narrativo flui de uma personagem a outra, mostrando o mundo e os habitantes do mundo de cada uma delas. Em cada núcleo assomam questões sociais, políticas e morais distintas, que, somadas, esboçam a sociedade em seus extratos intranqüilos.

A pedra estrutural da trama (Joana) é ponto que erige o contra- ponto de tipos humanos e suas vidas, em nuances que demarcam cultu- ra e ignorância, anonimato e posição social, individualismo e solidarie- dade. Cada núcleo diegético é mostrado fragmentado e isolado na pri- meira parte da trama, porém a leitura, logo a seguir, revela que os seres são também fragmentos maiores ou menores de suas próprias vidas.

A ficção, através da personagem Tônio, também se fragmenta para entabular a discussão sobre a sua própria elaboração. É pela ótica do escritor a germinar um romance, que são preenchidas todas as lacunas até então construídas, e que os sete elos adquirem existência isolada.

Ao término da leitura, está esboçado cada um dos perfis que vi- nham sendo dosados, concluindo-se o traçado de um corte transversal na sociedade representada. E o leitor, chamado à cena no início, obser- va o que a ruptura engendrou.

A análise do romance de Erico permite situar a “polifonia do o- lhar” tanto no nível interno do texto quanto no externo. O resto é silên-

cio deixa visual o seu processo de elaboração, e nesse delineia-se, tam- bém, o princípio “polifônico do olhar” que vem sendo distendido nessa tese.

No documento A polifonia do olhar (páginas 50-55)