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ESTRATÉGIAS DE ATUAÇÃO

6.4 PROFISSIONAIS DE PSICOLOGIA NO CRAS DIANTE DAS DEMANDAS ESCOLARES: CONCEPÇÕES

6.4.2 OLHARES PARA A ESCOLA PÚBLICA

A primeira questão a ser ressaltada é que a principal instituição a produzir demandas ao CRAS é a escola pública. Embora o foco da atuação das profissionais seja a família, de modo que elas pouco se ocupam do universo escolar, foi possível alcançar que tipo de concepções as profissionais possuem acerca das escolas públicas que encaminham, bem como que tipo de relação se torna possível estabelecer com tais instituições, a partir de suas atuações no CRAS.

Como primeiro aspecto, algumas profissionais de psicologia questionam por que as escolas encaminham tantos alunos para os CRAS. Nesse contexto, parecem compreender que as dificuldades de escolarização podem ser resultantes da própria dinâmica das instituições educativas, revelando mesmo a compreensão de que o enfrentamento de tais situações envolve o ambiente escolar:

Basicamente, o que eu tenho percebido é que a escola tem dificuldade de lidar com a criança, né. E aí, acaba encaminhando para o psicólogo para dar um suporte para eles. (PARTICIPANTE 8)

[...] eu estou querendo fazer uma reunião na escola para eles entenderem qual é o papel do psicólogo no CRAS. A coordenadora do CRAS diz que isso já foi feito algumas vezes. Eu não sei se foi a pessoa que fez ou se eles não entenderam direito.

Eu acho que os professores não entendem bem qual é o papel do psicólogo. Em relação às questões acadêmicas, eu acho que tem que ser resolvido na escola o problema. Se a criança não tem atenção, a escola tem que pensar nesse contexto. Como vai ensinar a criança a ter atenção.

Como eles podem mudar a metodologia para essa criança diferenciada. Se é um ambiente outro, não é a família que é responsável. A família não tem como dar conta disso. A escola seria um ambiente para dar outra condição, outro tipo de circunstância para ela aprender alguma coisa diferente. Eu lembro uma vez que a professora de metodologia falava muito que o que acontece na escola tem que ser resolvido na escola. Não importa o que seja. Se algum pai chega, “meu pai separou, estou triste”. Tem que ser resolvido na escola porque é na escola que ela falou, então a escola tem que dar conta de alguma forma desse sofrimento, porque se foi ali, teria que ter um preparo enorme desses profissionais. E de repente nós estamos psicologia entrevistadas oscilam entre reforçar a ideia de problemas individuais/familiares e tensionar tal ideia a partir das especificidades da vida escolar:

Há essa naturalização que a criança que tem problema escolar tem um problema cognitivo, psicológico. E a gente sabe que são desempenhos completamente diferentes. Uma coisa é você saber escrever, outras coisas são os problemas que você vivencia na sua casa, que não tem uma relação totalmente direta. Pode impactar na atenção se a criança não tiver psicologicamente bem. Se em casa ela também não tem padrões de seguir regras. Enfim, uma coisa não tem a ver com a outra, não é direto. Influencia, só que não é relação direta. (PARTICIPANTE 2)

Estão banalizando, vai introjetando que a criança é burra etc. Esse bairro é muito perigoso, há rixas, a história desse bairro, o contexto é a negligência, é difícil o aluno não trazer alguma coisa. A escola não vê isso.

(PARTICIPANTE 4)

A compreensão de que as dificuldades escolares podem ser uma produção da própria experiência escolar por vezes vem embaçada pela culpabilização de professoras ou da equipe da escola, deixando as questões estruturais e complexas fora de foco. Nesse cenário, a ideia de que falta à escola formação para lidar com determinados perfis de estudantes contribui ainda para a estigmatização de todos:

Aqui eu já identifiquei que a escola tem profissionais despreparados, só fica no discurso da queixa. Eu percebo que as professoras não sabem o que são dificuldades de aprendizagem. Aí, fiz uma capacitação na escola. Por exemplo, na escola tem autismo, Síndrome de Down. Eu dei uma capacitação e atividades para fazer com a criança. Aí, comecei a capacitação com pequenas mudanças: diminuir o texto e aumentar a letra, porque o Síndrome de Down afeta a visão. Então, quando fiz essas pequenas mudanças, todas as crianças conseguiram ler, o texto de 5 linhas.

Porque não dava para ter tanta informação no texto. Aí, foi de 3 linhas depois de 5. Com essas capacitações melhorou muito, e os professores não sabiam como lidar, não faziam atividades adaptadas. Dois encontros. Eles vieram aqui e eu visitei a escola. Em outras já fiz palestras. Estou fazendo um trabalho de formiguinha. Faço capacitações, encontro para orientar. Fico em contato. (PARTICIPANTE 4)

A escola não sabe nem o que cobrar, não tem tempo. É muito complicado e aí as professoras acham que a gente vai conseguir fazer um milagre como psicólogas. Enfim é bem difícil essa demanda escolar.

A educação é bem ruim. Quando eu cheguei, logo fui apresentada na escola. A escola é péssima, da prefeitura. A estrutura é ruim, é desorganizada, muita criança, muita criança. Muita demanda para as duas escolas. A outra escola, tem uma escola nova da prefeitura, é organizadinha. Mas a escola principal onde o bairro funciona mais é bem complicadinha. (PARTICIPANTE 2)

A Participante 8 destaca-se por reconhecer os desafios envolvidos na construção da escola pública em um país em que a educação é politicamente desvalorizada:

A educação não é uma área fácil. O modo de educar hoje está difícil. Ao menos os ataques que as escolas tão sofrendo, eu via na faculdade, salas superlotadas, salários baixos, imagine isso na escola do ensino fundamental mesmo. (PARTICIPANTE 8)

No entanto, predominou, nas entrevistas, uma compreensão de que se algum estudante apresenta algum tipo de dificuldade no processo de escolarização, isso tende a ser um problema individual ou familiar, a ser resolvido fora da escola, em serviços de assistência social ou saúde, para onde encaminhamentos de demandas escolares têm acontecido sistematicamente. Tal concepção, vale frisar, é partilhada entre escola e profissionais do CRAS, apontando, assim, a tendência à psicologização e patologização da educação, reforçada em todos os territórios por onde passam a criança ou adolescente e sua família, mais especificamente sua mãe. A partir das entrevistas, arriscamos afirmar que tal concepção segue sendo reforçada na formação básica de profissionais da psicologia; as poucas críticas feitas à escola (e as poucas referências a contextos da própria formação onde tais críticas foram anunciadas) não alcançaram questões históricas mais profundas, recorrendo

à culpabilização de professoras, vistas como despreparadas para ensinar “esse público”.

***

Em tempo, embora a força dominante venha na direção da manutenção do instituído, foi possível capturar algumas críticas, bem como tentativas de resistência das profissionais de psicologia frente a situação concreta dos CRAS.

De fato, desde a abordagem das participantes sobre a formação básica em psicologia, vimos o desconforto entre a bagagem de conhecimento e a atuação no espaço social. Tal desconforto persistiu com a indignação das participantes quanto à condição de contrato temporário, o dito Regime Especial de Contratação Temporária- REDA, que as coloca em uma difícil situação pois precisam trabalhar e, por outro é importante se posicionar politicamente frente às contradições da política socioassistencial concreta gerenciada nos CRAS no município de Salvador. A Participante 2 explicita um fato referente a uma reunião geral das trabalhadoras dos CRAS com a instituição, no qual chamou sua atenção a forma crítica que uma Coordenadora fez suas colocações, questionando os representantes da SEMPRE que conduziam o encontro. De modo que no intuito de entender a situação, a Participante 2 perguntou a outra profissional do CRAS quem era a pessoa que fazia aquela interlocução crítica. A profissional respondeu a ela que a referida Coordenadora era concursada. Ou seja, o regime trabalhista de estatutária da Coordenadora possibilita-a adotar um posicionamento incisivo sobre o funcionamento da política pública de Assistência Social. Assim, fica posta a condição frágil que se encontram a maioria das trabalhadoras dos CRAS que tem Regime Especial de Contratação Administrativa- REDA, onde criticar a instituição pode significar a perda do emprego. Diante disso, o questionamento das condições de precariedade do trabalho que estão submetidas e, ou mesmo, tecer opiniões com relação a própria funcionalidade da política socioassistencial em curso nos CRAS é evitada a fim de não confrontar os dirigentes da instituição.

Porém, mesmo que de forma pouco organizada, existe a contestação ao instituído, visível em colocações e ações das participantes. Por exemplo, a Participante 8 estava em contato com o Sindicato das Profissionais de Psicologia da Assistência Social, por compreender que a melhoria da profissão no espaço social

depende de mobilização política. Além disso, como forma de superação da precariedade estrutural e material nos CRAS, as profissionais buscam alternativas de cotizar entre os funcionários para realizar atividades com o grupo de mães que participam das atividades de acompanhamento. No caminho de tomar iniciativas para compensar os furos da Rede, a Participante 4 buscou construir contatos com outros serviços para favorecer a contrarreferência; a Participante 5 questiona os critérios oficial, ao comparar a concessão de benefício aluguel para uma usuária do serviço pelo CREAS, sendo que o mesmo pedido feito por ela no CRAS fora negado. Também foi possível reconhecer a compreensão crítica da maioria das participantes em relação a vários aspectos no país: contexto político, que trabalho não está fácil, que a escola sofre ataques, que é preciso buscar outras alternativas para assistir as usuárias diante dos furos da Rede intersetorial.

Todas essas situações servem para ressaltar que as profissionais tentam romper com as limitações e o esvaziamento da política socioassistencial no município de Salvador. Assim diante do turbilhão de acontecimentos e, apesar, de toda vigilância às quais as participantes são submetidas enquanto técnicas da equipe no CRAS, existe resistência, mesmo que ainda difusa. É justamente nas brechas que as participantes vêm tentando construir suas práticas nos CRAS.

Tendo apresentado uma síntese analítica das entrevistas das profissionais de psicologia, participantes da pesquisa, cumpre tecermos alguns apontamentos teóricos inspirados pela leitura crítica dos depoimentos.

7. APONTAMENTOS ÉTICO-POLÍTICOS: POR UMA PSICOLOGIA