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ESTRATÉGIAS DE ATUAÇÃO

6.4 PROFISSIONAIS DE PSICOLOGIA NO CRAS DIANTE DAS DEMANDAS ESCOLARES: CONCEPÇÕES

6.4.1 OLHARES PARA A FAMÍLIA ASSISTIDA NO CRAS

Durante as entrevistas com as profissionais de psicologia família é a palavra-chave, pois o foco do CRAS está centrado no Serviço de Proteção e Atenção Integral à Família (PAIF). A partir da análise das entrevistas, é possível apreender o olhar que as profissionais de psicologia depositam em tais famílias, marcadas pela

condição de pobreza, em seus atravessamentos com os marcadores raciais e de gênero.

Até mesmo pela estrutura política que contorna a dinâmica de funcionamento dos CRAS, quando chega uma família em busca de atendimento psicológico a seus filhos por encaminhamento das escolas, a primeira atenção despertada nas profissionais envolve buscar se tem alguma questão familiar que justifique sua permanência na unidade a fim de desenvolver o acompanhamento. Assim, o próprio recorte que delimita suas atribuições acaba reforçando a compreensão de que as dificuldades escolares podem ter causação na dinâmica familiar.

A família quando dá entrada no CRAS precisa ser escutada e ouvida. Aí eu pergunto inicialmente: “Como você está”? Porque o que ela veio fazer é secundário. Como ela está. Às vezes, ela escuta e diz: “Ãh?” “Como você está? Você está bem?”. “Não, não porque...”. Aí vem as coisas que a gente quer ouvir. Às vezes você dá uma provocaçãozinha e você ouve a demanda da família e aí entra para perguntar como é essa família: quantas pessoas são, quem mora junto, quantos filhos, quem está estudando, se está em idade escolar, quem trabalha na casa, qual a renda, quais os benefícios socioassistenciais que têm direito, porque tem muitos que podem receber o bolsa família e nem sabem que tem direito a isso. Ou então, às vezes, tem criança..., que o benefício cobre também os deficientes, né? Tem o BPC, que é para deficiente e idoso. Às vezes tem uma pessoa deficiente em casa e não recebe benefício nenhum, e também não consegue trabalhar e vive uma loucura. Então, a gente precisa estar escutando pra estar tentando encaixar nesses benefícios socioassistenciais, também nos benefícios habituais que a gente tem, de moradia e natalidade. Então tem uma série de coisas que também eles não sabem. Se a gente escuta só a primeira demanda do filho, a gente não escuta o resto da demanda da casa, porque esse filho mora nesta casa, mais a constituição familiar. (PARTICIPANTE 1) Nós vamos tentar entender a relação familiar. Na verdade, essa escuta vai um pouco para entender se é demanda de CRAS. Então, a gente vai saber a relação familiar, os vínculos familiares, quando começou apresentar a queixa, como a família está lidando com aquilo, como está lidando com aquele comportamento, quando acontece determinada situação. E se isso já foi dialogado entre a família. A gente permeia em torno da questão do contexto familiar. Depois que os usuários vão trazendo as situações, a gente vê onde é que é a demanda.

Muitos pais pensam que as vezes é desleixo, não entendem que, muitas vezes, pode ter sim um potencial sofrimento psíquico. (PARTICIPANTE 6) São várias questões, por exemplo a criança está com problema de aprendizagem e aí eu vejo que os pais, muitas vezes, se agridem na frente da criança, a criança repete o comportamento na escola, então, não é um problema só da escola. Eu já identifiquei na fala do pai: “se apanha na escola, vai apanhar duas vezes, lá e aqui”. Essa não é a maneira de resolver.

A questão da aprendizagem envolve várias questões: situações familiares, a escola, às vezes vem para uma situação pontual. A gente acredita que não é só aquilo. Vê a demanda, se a família tiver acompanhamento no CRAS, encaminha a criança para um lugar específico de dificuldades de aprendizagem. (PARTICIPANTE 4)

Assim, o foco do olhar diante de famílias que chegam ao CRAS é em busca de possíveis vulnerabilidades que tornem possível assistir a família. Nesses casos, o direcionamento das atividades centra-se em garantir o direito a benefícios sociais e inserir a família em acompanhamento, o que não impede que haja o encaminhamento para outros serviços (prática corrente nos casos de demandas escolares, estejam as famílias ou não em condição de vulnerabilidade social, na leitura das profissionais).

Nesse contexto, não escapa às profissionais de psicologia que, na maior parte dos casos, são as mães que procuram os CRAS. Mais precisamente, mães em situação de pobreza ou pobreza extrema, acessando o CRAS em busca de atendimento para seu filho que está com problemas na escola. Diante dessas mulheres, em busca de suas vulnerabilidades, passaporte de acesso ao serviço, por vezes emergem interpretações como as seguintes:

Geralmente mãe e criança. Pai, geralmente para auxílio moradia. É majoritariamente feminino, monoparental. Tem esse caso de menino que tentei desligar. O pai gerava nele uma expectativa: “Ah, eu vou te buscar no fim de semana”, e não aparecia. Aí, todo o trabalho que a mãe fazia, quando chegava na escola, a professora pontuava: “Oh, voltou o comportamento infantilizado.” Era a mãe, a professora e nós aqui. Quando ele entrou no clube, depois que ele passou a ter essa vivência no clube, foi amadurecendo, melhorou muito com o professor. (PARTICIPANTE 5) A gente inclui ela no PAIF, se a gente vê alguma questão dela. Eu vejo que uma mãe, está difícil para ela lidar com a maternidade e tanto com a maternidade em si, como com a condição de vulnerabilidade que ela vivencia. (PARTICIPANTE 8)

Se o foco do olhar é nas famílias, mormente nas mães, em busca de suas vulnerabilidades, as estratégias para intervir na situação de queixa escolar de crianças em situação de pobreza envolvem mudanças na dinâmica familiar, sobretudo nas mães. Nesse cenário, confundem-se pobreza, relações familiares, educação e comportamento na escola. Valendo-se da abordagem comportamental, a Participante 2 busca orientar a conduta das mães em relação à educação dos filhos:

Como eu sou da análise do comportamento, eu avalio muito o comportamento. As relações, para poder ver de onde é que esses comportamentos da criança vêm. Normalmente são modelos que a crianças seguem. Então, a criança agressiva, a mãe está chateada porque ela bate em todo mundo, não obedece a professora. Só que a mãe grita, bate em casa. Eu tento conversar e orientar. Você tem que mudar o seu comportamento, dar outros modelos porque ele vai repetir o seu. E muitas mães não têm consciência disso porque foram criadas assim. Nos grupos

que tem, a gente tenta discutir algumas questões com relação a modelos parentais, outras alternativas de se educar, enfim.

As mães que ficam trazem outras demandas da vida delas são muito...

poucas foram lá para me falar: “Ah, tão melhor na escola.” Só fala assim:

“eu estou levando no psicólogo, está indo.” Mas eu acho que é muito mais complexo, são vidas muito complexas. Situações de vidas muito difíceis. E aí realmente... (PARTICIPANTE 2)

Assim, ao tentarem abarcar o curso da vida familiar, uma concepção dominante sobre as mães pobres vai se materializando. Nela, se reforça a responsabilização das famílias por supostamente não entenderem a relevância da escola:

Eles vêm mais condicionado ao benefício. Infelizmente, eles não sabem a importância da escola e vem em função do benefício. (PARTICIPANTE 3)

Saraiva (2016) chama a atenção para a tendência da Psicologia praticada no território da assistência social tornar problemas humanos em individuais, o que pode culminar na medicalização da vida, inclusive em sua verve patologizante, moralizando e naturalizando comportamentos, com a consequente despolitização das problemáticas sociais. No caso específico do foco da nossa Tese, é possível afirmar que, pela própria formatação do CRAS, a concepção sobre a origem e a solução das queixas escolares permanece centrada no aluno e em sua família, por vezes julgados pelas profissionais: “também a vida que levam”.

Tais dificuldades também foram analisadas por Santos (2013), em pesquisa desenvolvida com CRAS do município de Salvador-BA, onde desenvolvemos nossa Tese. Tal pesquisadora buscou compreender os desafios envolvidos na atuação de profissionais da psicologia nas políticas de assistência à população pobre, no CRAS/SUAS, as quais materializam o contato direto com as desigualdades sociais:

[...] esta vivência é uma construção cotidiana, complexa, para qual confluem muitas experiências, referidas tanto às histórias singulares das técnicas, trajetórias familiares, formação e atuação profissional, quanto de momentos em que o suposto da igualdade tende a ser confrontado com a concretude da desigualdade, apresentada pelas comunidades e usuários. Foi possível observar nas conversações que o contato com populações pobres e vulneráveis socialmente no CRAS/SUAS, expõe as profissionais à concretude da desigualdade social, em geral relegada às margens e aos campos de invisibilidade. Desse modo, acompanhar a precariedade das condições de vida de ampla gama da população, evidenciada principalmente nas visitas domiciliares, reportam as profissionais a desigualdade social entre técnico e usuário, afetando as participantes, em muitos níveis. (SANTOS, 2013, p.175 e 176)

Nos resultados de sua pesquisa, o contato das profissionais de psicologia com os usuários aproxima-as, de fato, da concretude da desigualdade social no

cotidiano do trabalho e, por outro, as situa na dinâmica estabelecida pela instituição.

Conforme analisa, as profissionais de psicologia que atuam nos CRAS, diante das situações de pobreza e pobreza extrema:

[...] vivenciam posições subjetivas referentes à condição de oprimidas e opressoras, construindo práticas atravessadas por sentidos subjetivos que culpabilizam os usuários por sua condição social e naturalizam o fenômeno da desigualdade social. As participantes apresentaram sentimentos de frustração, impotência, angústia e sofrimento, numa dinâmica que alia compaixão e conformação frente às hipóteses explicativas de uma realidade social com forte estratificação. A visão dicotômica, em que demandas sociais não são vistas em relação com as demandas psicológicas, leva a uma atuação fragmentada, influenciada pelos modos de enfrentamento da desigualdade social. Os resultados indicam a necessidade de reposicionar as práticas para atuar na dimensão subjetiva dos problemas sociais, produzindo [...] novas tecnologias e reflexões sobre o lugar social das técnicas, aliado a um trabalho que oportunize espaços de expressão para os usuários, visualizando potências sem perder de vista os limites impostos pelos determinantes sociais e compreendendo a transformação da realidade social como responsabilidade coletiva e cotidiana. (SANTOS, 2013, p. 176)

Se esse é o olhar que permeia a atuação das profissionais diante das famílias que as acessam por encaminhamento das escolas, cumpre agora nos aproximarmos da maneira como as profissionais pensam a própria escola que encaminha, tarefa realizada a seguir.