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C OM O ACONTECIMENTO NAS MÃOS PENSAS : EPIFANIA E OLHAR POÉTICO

No documento Apagando o quadro negro: literatura e ensino (páginas 154-158)

a crônica “Uma simples epifania”, de affonso romano de Sant’Anna (1994), recupera um conceito não exclusivo da Literatura, mas presente em muitas de suas representações: a epifania. ao contrá- rio de “simples”, como ironicamente propõe o título de seu texto, esse acontecimento encenado pela escrita sugere múltiplos sentidos e mo- tivações para a reflexão crítica acerca do poético, adquirindo uma den- sidade que assombra também o leitor, não apenas o sujeito narrativo.

A experiência epifânica está associada, na crônica de Sant’Anna, à escrita de um texto a ser apresentado pela personagem-narrador a uma universidade americana como parte de um programa inter- nacional de escritores, situação pragmática que impulsiona o ato de contar. Mas a práxis vai se impregnando de reflexões em torno da literatura, à medida que se dá a citação de outros autores, em es- pecial o Drummond de “a máquina do mundo”, poema dos mais emblemáticos de sua poética.1 ou seja, o narrativo marcado pelo

factual se tinge de uma metalinguagem graças à intertextualidade, e, assim, outro motivo literário arquetípico (res)surge na crônica: a metáfora da “máquina do mundo”.

estamos, desse modo, enredados em uma malha de caminhos que se cruzam: o poético, o narrativo, a fala múltipla em diálogo,

motivos e conceitos literários, enfim, é essa senda que deve ser pal- milhada por nosso olhar; não a estrada pedregosa de Minas ou a neve de Iowa, mas o poema drummondiano e a crônica de Sant’Anna.

“a máquina do mundo”, o poema de Drummond, oferece-se como intertexto não pela citação direta das fontes que alimentam sua engrenagem poética (como em “Uma simples epifania”), mas por trazê-las corporificadas na estrutura textual: os tercetos decas- silábicos, a sintaxe elevada, o tom sublime, a fala da “máquina do mundo” tal como a fala de tétis no épico Os Lusíadas etc.

em ambos os textos, o poema drummondiano e a narrativa de Sant’Anna, o factual é apenas o ponto de partida para a construção do que suga nossa atenção para o seu núcleo – a máquina-texto en- genhada pelo eu (lírico e narrativo) como uma espécie de força cen- trípeta que nos atrai para sua operação singular. o intuito comum às duas linguagens parece ser, portanto, mostrar a relação inusitada entre o sujeito e esse objeto mágico dotado de funcionamento pró- prio, enigmático, só desvendável por uma escuta e olhar atentos à sua engenharia. essa máquina, sejam quais forem os mecanismos acionados por sua linguagem, parece chamar nossa atenção menos por seu conteúdo ou materiais constitutivos do que pela dinâmica íntima que a movimenta no contato com o observador.

no caso da crônica, os passos narrados pela personagem para poder vencer os obstáculos e impasses da confecção de seu texto vão captando nossa atenção para o inevitável “e agora, o que acon- tecerá?”, próprio do contar. esse artifício narrativo, pertencente a uma longa e antiga tradição dos contos em sua morfologia estru- tural, conforme já assinalaram vários estudiosos, entre eles Vladi- mir Propp,2 está ausente do poema de Drummond. nesse caso, é

curioso como o viés narrativo é justamente o que abre o texto poéti- co (“e como eu palmilhasse vagamente/ uma estrada de Minas, pe- dregosa”), porém, um contar que não se estende por muito tempo e cujo alvo logo é destacado pelo eu lírico: a máquina do mundo a se entreabrir majestosa. Portanto, o percurso do narrar é um pretexto

2 em seu clássico Morfologia do conto popular. o texto original, Morfologija skazky, foi publicado em 1928.

(e pré-texto) para esse outro texto que se abre movido pela fala da máquina dirigida ao poeta, oferecendo-lhe sua constituição essen- cial. eis uma das diferenças entre o poema e a crônica. nesta, não há abertura para uma fala vinda do outro, a exibir seu conteúdo misterioso; o narrador não nos revela o que lhe teria sido assopra- do pela “luz imponderável”, capaz de fazê-lo dar continuidade ao texto empacado. ao contrário do longo discurso direto da máquina que figura no poema, na crônica, o que transparece para o narra- dor é uma “dádiva” ou “a esmagadora revelação” que fica suspensa como referência, mas que ele absorve intensamente. esse “gozo da verdade”, ao mesmo tempo (inter)dito, constitui o momento epifâ- nico vivido pelo narrador como algo maravilhoso e terrível, instante único em que grandiosidade e pequenez se confundem.

no entanto, em Drummond, a epifania não se dá como instante repentino ou fulgor, propriamente, mas como abertura prolonga- da de um texto descritivo em torno das maravilhas ofertadas pela máquina ao poeta. ou seja, o objeto desnuda sua engenharia e a faz desfilar diante do olhar poético que, entretanto, não se mostra acolhedor ou aberto para sua compreensão. Muito ao contrário, o que marca o eu lírico é o cansaço e o desencanto de suas “pupilas gastas”, próprios do sujeito moderno em face de um mundo que não vale a pena conhecer, pois não atende aos impulsos legítimos da subjetividade. trata-se da não sintonia entre eu e mundo, cara à poesia drummondiana, que faz o poeta não rimar com o mundo, a não ser sob a perspectiva irônica do significante Raimundo, uma so- lução apenas formal e não existencial.3 o estado disfórico é a marca

desse sujeito lírico que, desde o início do poema e de seu percurso pelo espaço físico, se mostra descrente e como que despejado de si, esvaziamento de natureza tanto ontológica quanto epistemológica que reaparecerá, na expressão final modalizadora do eu, a seguir “vagaroso, de mãos pensas”. Já a mão da personagem-narrador da crônica de Sant’Anna retomou o fio em que havia parado e conse-

3 trata-se do famoso “Poema de sete faces”, presente em sua obra Alguma poesia (1930), espécie de “poema de batismo”, como alguns críticos costumam dizer, entre os quais alcides Villaça, conhecedor profundo da poética drummondiana.

guiu terminar seu texto, fechando o novelo das ideias como preten- dia. O momento passou, mas a criação ou “algo ficou”, não apenas para o eu-narrador, mas também para o leitor da crônica.

acontece que ele, assim como o eu lírico drummondiano, sentiu cansaço; porém, diferentemente deste, teve medo, mais ainda, pâ- nico, um esgotamento quase mortal que o faria sucumbir não fosse a parada para molhar os pulsos e a cabeça, gesto que devolve o sujei- to à realidade. em ambos os textos, o que desponta como “verdade” é o contraste terrível entre a infinitude de uma revelação e a finitude do ser humano para captá-la: “eu não suportei minha modesta epi- fania mais que uns simples e infinitos segundos”, confessa o narra- dor da crônica. e o eu lírico do poema: “Mas, como eu relutasse em responder/ a tal apelo assim maravilhoso,/ [...] baixei os olhos in- curioso, lasso,”. reações distintas, mas convergentes para um mes- mo efeito: o da consciência, que sabe impossível não conviver com a perda, principalmente diante da intensidade de uma experiência. aproveitando o que octavio Paz pondera sobre a revelação poética, “toda aparição implica uma ruptura do tempo ou do espaço: a terra se abre, o tempo se parte; pela ferida ou abertura vemos ‘o outro lado’ do ser” (1982, p.168).

essa ferida, quer se faça como o olhar assombrado da perso- nagem diante do espelho (no caso da crônica), quer se faça como uma avaliação sentida da perda (como no poema), é o que faz a arte operar com seus enigmas. sem resolvê-los, muito menos pretender esclarecê-los para alguém; ao sujeito lírico e à personagem-narrador basta dividir esse momento único com cada leitor, ofertando-nos essa dádiva que é o texto literário.

PARTE 2

PRÁTICAS

METODOLÓGICAS:

No documento Apagando o quadro negro: literatura e ensino (páginas 154-158)