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P ORTUGUESA NO B RASIL : DUAS FACES DA MESMA MOEDA ?

No documento Apagando o quadro negro: literatura e ensino (páginas 110-116)

A pátria é a fantasia de pura verdade Ela não existe é a consciência viva e se tem um corpo é o corpo que se levanta como um volume sobre a sua vontade de construir o mundo Antonio Ramos Rosa

no primeiro capítulo de O livro agreste (2005), ensaio sobre o ensino de literatura Brasileira em Portugal, abel Barros Baptista apresenta considerações sobre seu posicionamento diante da lite- ratura (e não apenas Brasileira), do ensino e de critérios sobre cursos acerca da literatura Brasileira. Julgo interessante ponderar sobre suas reflexões, pois elas acabam apontando para um cenário que nos é muito próximo e nos permite perceber melhor certos problemas que também enfrentamos quando o que está em jogo é a relação eu- -outro posta no espaço cultural.

Já em seu início, o texto de abel Baptista coloca para nós, edu- cadores, duas questões fundamentais para pensarmos: por que ensinar literatura na universidade? Por que organizar o estudo de literatura segundo o critério da nacionalidade? ou seja, indepen- dentemente da “nacionalidade” da literatura em foco, o problema que se põe tem a ver com aspectos relativos à natureza do objeto e aos modos de seu enfoque por uma determinada postura ideológi- ca. De fato, interessa-nos menos tratar da literatura em função de seu atrelamento a uma nacionalidade, seja portuguesa, seja brasi- leira, do que entendê-la como uma produção singular que pode vir a nos revelar formas e sentidos importantes sobre a cultura que a produziu. Dizendo de outra maneira, a pertença específica do ob-

jeto literário a uma nação não a imobiliza nesse espaço nem deter- mina o modo como o olhar crítico deve abordá-la. acreditar nessa dependência constitui uma visão centralizadora e dogmática, tanto em relação à literatura quanto em relação à cultura, pois impede a realização de deslocamentos, sempre necessários para a abordagem dos objetos culturais.

o problema se complica quando consideramos duas literaturas que partilham a mesma língua e protagonizam um processo históri- co com reflexos mútuos, ainda que diferenciados, como é o caso das literaturas brasileira e portuguesa. Passam a entrar em cena oposi- ções e tensões que equivocadamente são tomadas como pressupostos metodológicos para o ensino dessas literaturas. só para mencionar- mos alguns: relação colônia-metrópole, anterioridade-filiação, idio- ma português-variação brasileira, homogeneidade-heterogeneidade, permanência-ruptura. Esses equívocos, quase sempre afins às gene- ralizações, geram afirmações como a que Abel Baptista põe em causa: “a literatura brasileira seria fruto da portuguesa, autonomizada mas unida pela mesma língua” (2005, p.20). assim, o ensino de litera- tura Brasileira em terras lusitanas ou o inverso estaria favorecendo a noção colonialista de que “a difusão da língua seria a difusão do mesmo” (ibidem, p.24), como se a mesma língua fosse “causa e ga- rantia de uma homogeneidade cultural, literária, nacional” (ibidem). Outros pensamentos na mesma linha ratificam esses equívocos: é preciso conhecer a origem de que somos herdeiros para entender a literatura Brasileira; a literatura Brasileira funciona como uma con- tinuidade que permite uma interpretação de Portugal (tese criticada por eduardo lourenço, como nos lembra Barros Baptista).

evitando as posições preconceituosas extremas (exclusão da li- teratura Brasileira do espaço curricular; manutenção da prioridade portuguesa como garantia de continuidade de sua tradição literária; afirmação da variante europeia como o “verdadeiro” português de que a brasileira seria uma deturpação etc.), abel Baptista prefere trabalhar com hipóteses que levem em conta as contradições e ten- sões que fazem parte do processo histórico e que são configuradoras do espaço literário, seja este qual for.

Uma de suas lúcidas sugestões é estarmos alertas para a ilusão quanto à suposta homogeneidade linguística no ensino da litera- tura, quer brasileira, quer portuguesa. Com acerto, o autor aponta para o trabalho de tradução necessário ao domínio de uma língua, o que implica perceber as heterogeneidades presentes no espa- ço linguístico, bem como “os nós de singularidades irredutíveis” (2005, p.34). Por isso, a operação tradutória se processa também no interior de uma mesma língua, já que é preciso darmos conta das variantes e diferenciações regionais, sociais, profissionais, históri- cas, enfim, a rede de possibilidades de uma língua torna a leitura de suas produções literárias um trabalho complexo, incapaz de aten- der a propósitos unificadores ou de homogeneização. Por aí já se vê quanto o ideal nacionalista ligado ao ensino da literatura é infrutífe- ro. acompanhemos abel Baptista:

esta percepção da língua como rede diferencial, em que cada variante remete para outra, incapaz de se definir por si mesma, desarticula os primeiros pressupostos do nacionalismo, quer porque impede a neutralização da língua pela pressuposição do laço natural de pertença, quer porque relativiza todos os esfor- ços de demarcação nacional ou regional com base nas diferenças linguísticas. (ibidem, p.34-35)

Ou seja, a defesa ferrenha de uma filiação ou pertença como di- retrizes para lidarmos com a literatura, e em especial com o seu ensino, comporta preconceitos que em nada ajudam na compreen- são desse objeto. ao contrário, incorporar as diferenças e cortes como constituintes fundamentais do fazer literário em relação ao próprio meio cultural é uma atitude epistemológica saudável para uma perspectiva crítica.

outro ponto defendido pelo autor como critério a ser considera- do é o literário, quer dizer, não é a nacionalidade da literatura que a faz ser o que é, mas o fato de ser antes de tudo uma literatura. Afir- mação que toca no cerne do ensino, na medida em que faz despon- tar o que de fato interessa para os estudos literários: a especificidade

de uma linguagem que demanda um ato de leitura exigente, capaz de compreender a pluralidade de sentidos e formas engenhados pelo produto artístico, considerado não uma variante de qualquer outra coisa ou sistema, mas um sistema válido exatamente pela ma- neira singular com que se oferece ao leitor. Certamente tal atitude de leitura contraria certos hábitos já instalados, mas que devem ser banidos do cenário educacional: os lugares-comuns, os consensos, as interpretações gerais, as visões panorâmicas, os florilégios, a lei- tura como apropriação de sentido.

Concluindo suas observações, apresentadas como preliminares a justificar seu curso sobre Literatura Brasileira, o docente portu- guês aponta o terceiro critério, decisivo para ele, o da modernidade. Embora esteja pensando especificamente no espaço brasileiro, po- deríamos estender seu pensamento também ao espaço português: tanto em uma quanto em outra literatura, o processo da moderni- dade é essencial ao espírito crítico. independentemente do sentido datado desse movimento estético, o que nos importa são os efeitos que a aventura moderna trouxe e vem trazendo para os modos de recepção da arte: o desapego a raízes absolutas, a compreensão do caráter móvel e maleável do passado, a necessidade de rupturas, a aceitação das tensões e contradições, a vivência das dúvidas e fragi- lidades, a percepção da natureza ambígua da arte, tensionada entre abertura e fechamento em relação ao mundo. Como finaliza o au- tor, “tudo o que faz da modernidade uma condição e uma época complexa – aquela condição e aquela época que herdamos e em que ainda vivemos” (ibidem, p.36).

Parece-me extremamente eficaz a postura de Abel Baptista, de va- lorizar a modernidade desde que ela seja entendida em sua amplitude. Para terminar, gostaria de retomar os versos de antonio ramos Rosa, que figuram como epígrafe deste texto. O poeta português não está abordando o ensino de literatura, evidentemente, mas o seu poema, contido em Pátria soberana seguido de nova ficção, pode nos ajudar em nossas reflexões.

se entendermos a pátria, signo fundamental do poema, não ape- nas como o espaço de uma nacionalidade em seu sentido geopolítico,

portanto específico, mas também como um corpo cultural mais am- plo, que pode abarcar diversas manifestações – valores, produções artísticas, conhecimento, educação, trocas intersubjetivas etc. –, certamente partilharemos da proposta contida nos versos de ramos rosa. esse “corpo” não é uma realidade dada ou posta diante de nós, mas uma instância que construímos com nosso desejo, no qual se mesclam consciência (verdade?) e fantasia (ficção?), elementos fundadores de sentido. Da mesma forma, o conhecimento propi- ciado pelo ensino de literatura é um “corpo” que se vai redimen- sionando e ganhando espessura à medida que construímos nossa experiência de leitura. Portanto: não se trata de uma imposição de verdades ou de posições legitimadas por uma tradição que ostenta sua permanência, mas da abertura de caminhos para visões críticas e alicerçadas na convicção de seus princípios, desde que agencia- dos com seriedade e sensibilidade. ou, dizendo como ramos rosa, desde que haja “uma vontade de construir o mundo”. Jamais espe- rar que ele seja apenas reproduzido.

RETIRANDO

AS

PLUMAS

DO

DISCURSO

No documento Apagando o quadro negro: literatura e ensino (páginas 110-116)