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R ETIRANDO AS PLUMAS DO DISCURSO CRÍTICO ACADÊMICO

No documento Apagando o quadro negro: literatura e ensino (páginas 116-130)

João Cabral de Melo neto utilizou a metáfora “cão sem plu- mas” para construir longos poemas em que essa imagem vai se desdobrando para compor o (dis)curso do rio Capibaribe e a fábula de uma linguagem que se pretende descarnada, direta.1

tal despo- jamento ou existir desplumado, sem artifícios ou floreios que en- cubram a verdade crua, dura de sua carência, é fundamental para compreendermos sua poesia. Porém, não é de João Cabral que va- mos tratar, mas do discurso crítico acadêmico. no entanto, a ima- gem criada pelo autor de Cão sem plumas pode servir muito bem às nossas reflexões.

De fato, o desvestir como gesto do sujeito que envolve a retira- da do excesso e das ilusórias vestimentas para revelar a vulnerabi- lidade e a legitimidade de seu corpo (espesso na sua carência) é o que o pensamento crítico atual muitas vezes não consegue realizar. em especial no meio acadêmico, justamente o espaço em que tal postura seria desejável como ensinamento na leitura da literatura. Parece que um desejo incontido tomou conta do discurso crítico, levando-o a uma exacerbação que o faz perder a noção de equilíbrio e o impede de enxergar os próprios exageros. exibe-se uma lingua-

1 Refiro-me aos poemas “Paisagem do Capibaribe” (I e II) e “Fábula do Capiba- ribe”, contidos em O cão sem plumas (1949-1950).

gem de a mais, não de a menos, como o projeto cabralino defendia em sua poética.

o psicanalista Contardo Calligaris, por exemplo, já alertou para o que chamou de “pensamento enlouquecido” encoberto por “mi- ragens conceituais” em duas de suas obras (1996, 1997), nas quais investiga a cultura do cotidiano, sobretudo o nosso modo de olhar a realidade. Calligaris salientou um traço marcante da sociedade, especialmente a brasileira, transformado em verdadeiro clichê pós- -moderno – o individualismo, ou o que dá no mesmo, o narcisis- mo. em uma sociedade narcísica, passa a ter importância a adesão a estereótipos imaginários, desde que acenem com uma imagem de positividade e assegurem uma aura para o indivíduo. Como no tempo atual pululam elementos múltiplos e vertiginosos, essa ins- tabilidade acaba por gerar o que lúcia santaella denominou um “descompromisso ético e distúrbio narcísico”: com a queda de anti- gos valores e a ausência de um perfil definido para a realidade, “que cada um se encapsule na esfera de seu mundo próprio, embevecido diante de um espelho intocável pelas máculas do real” (1994, p.24). Que melhor espaço senão a crítica para conferir ao sujeito um status próprio dentro dessa cultura do espetáculo?

se essa coisa espetaculosa faz parte de nossa sociedade contem- porânea, a responsabilidade dos educadores preocupados com a capacitação crítica dos sujeitos se torna ainda mais aguda, digamos assim, pois sentimos necessário driblar essa fascinação enganosa pelo mise en cène.

não se trata apenas de uma atitude individual por parte de quem se apoia no poder de um discurso sedutor, mas é também uma atitu- de que se espelha na de outros críticos, afirmando-se como uma das várias “imposturas intelectuais” de nossa época, expressão que não é apenas título da obra de alan sokal e Jean Bricmont (1999), mas verdadeiro paradigma da pós-modernidade. transformar o que se- ria original ou espontaneidade criativa em necessidade, ou, em ou- tras palavras, querer criar o impacto para instaurar uma novidade permanente e insistente, além de rebeldia imatura é uma falta de percepção histórica. É não enxergar que as próprias vanguardas,

movidas por esse mesmo impulso, acabaram por reconhecer sua fragilidade e a impossibilidade de se manter como tal. essa “tradi- ção de ruptura”, de que nos fala Octavio Paz (1974), é sinal de que o espírito onipotente da invenção só atua, afinal, contra si próprio.

a questão está, sem dúvida, na onipotência, não no caráter ino- vador, próprio das manifestações artísticas e sempre bem-vindo, já que constitui a essência da arte em sua fatura. sabemos quanto o excesso é traço dominante em nossa cultura, ou, para usarmos um prefixo que também acabou despertando fascínio, o hiper penetrou com força nos comportamentos culturais e nos próprios discursos. a hipermediação está presente em nosso meio cultural e o que seria uma componente saudável, do ponto de vista crítico, transforma- -se em uma deformação. estabelecer relações entre os fenômenos, perceber diferenças e semelhanças, construir um painel múltiplo de elementos, enfim, esse ato estético de origem barroca é extrema- mente útil quando não se transforma em um fim em si mesmo. E, se as reflexões de Alfredo Bosi (1996) acerca da leitura de poesia não estiverem incorretas, o comportamento crítico pós-moderno pre- tende resgatar uma antiga imagem, incorporando-a como se fosse novidade: a ideia do thesaurus, fonte para a recriação maneirosa e infinita de possibilidades de composição, o que acaba gerando a análise hipermediadora ou hipercultural. Mais do que inchaço da linguagem crítica, essa alta dose de sofisticação espelha o inchaço do próprio crítico. narcisismo.

trata-se, na verdade, de um excesso de informação e de uma carência de formação, característicos do mundo em que estamos mergulhados. Os reflexos desse hiperletrismo na crítica são bem conhecidos; há uma multiplicidade de referências e mediações in- tertextuais, verdadeiro trabalho de escriba ou de “zeloso tabelião”, no dizer de José Castello (1996), do qual parece faltar solidez argu- mentativa ou formação filosófica. Parece vedada ao crítico a tarefa de avaliar, selecionar e, principalmente, de julgar. o mosaico de citações denuncia, assim, o preconceito criado pela pós-moderni- dade contra a afirmação de verdades e juízos, não só os de valor. E daí o mito do antilogocentrismo também ter se instalado com forte

penetração em nosso pensamento. aqui teríamos de dialogar com Derrida e sua filosofia da desconstrução, mas isso já seria um desvio de nosso objetivo maior, embora pudesse complementá-lo e, talvez, enriquecê-lo.

não se apegar a dogmatismos, esquivando-se de verdades prees tabelecidas, atitude epistemológica necessária à produção de sentidos na relação entre sujeito e objeto, nada tem a ver com a mitificação do indizível, oblíquo e plurívoco, categorias presentes na linguagem literária, porém incorporadas arbitrária e apaixona- damente pelo discurso crítico. É como se o falar sobre o difícil (e impossível) demandasse necessariamente um discurso com marcas de ilegibilidade, portanto, também ilegível e impossível, lançando uma sombra sobre si. Quantas vezes não deparamos, como profes- sores, com trabalhos de alunos em que o dizer rebuscado parece justificar, para eles, uma posição elevada ou correta em relação ao assunto abordado, mesmo que essa linguagem contenha pouco sen- tido ou o encubra com uma retórica confusa e imprópria? se, por um lado, cabe ao olhar crítico perceber e explorar a negatividade ou a impossibilidade constitutiva da literatura, ou seja, o seu “abismo interior” que a faz mover-se entre “o que diz” e “o que cala” ou “o que diz” e “o que não pode dizer ainda”, segundo eduardo louren- ço (1994, p.39), por outro lado, o apego excessivo a essa negativida- de parece ter contaminado o discurso crítico, o qual incorpora com arrogância a radicalidade do ininteligível ou indizível. eis a lição perversa que alguns docentes deixam para os universitários.

enquanto a crítica tradicional manifestava uma sabedoria neu- tra, colocando-se como que em uma posição superior e distante para dar conta de como a obra retrata a existência, a crítica contem- porânea, com seu discurso espetaculoso, exibe uma sabedoria nem um pouco neutra, afirmando-se com sofisticação para dar conta não mais ou somente da obra como objeto cognoscível, mas da “obra” construída pela própria linguagem.

se o escritor cria a sua sombra (lembro-me da famosa obra de Gaëtan Picon, de 1969), o crítico pós-moderno quer recriar a som- bra dessa sombra, traduzindo em sua linguagem essa impossibili-

dade radical ou a invisibilidade, a mesma que orfeu sentiu ao ten- tar resgatar o objeto de seu desejo. e aqui, evoco também Maurice Blanchot, que recuperou essa figura mítica para falar do espaço lite- rário. só que, diferentemente de orfeu, o crítico pós-moderno não carrega nenhum heroísmo em seu gesto, ao contrário: sua ousadia é também sua fragilidade.

assim, esse “deixar que invenção e verdade se mantenham a par na indecibilidade dominante”, palavras de Maria alzira seixo, não é senão reflexo de um discurso tautológico que se diz e desdiz, deslumbrado com as próprias imagens. Aqui, parece que se confir- ma a definição que o controvertido Harold Bloom nos dá da crítica, ao vê-la como “discurso da tautologia profunda, do solipsista que sabe que o que ele quer dizer é correto, e que não obstante, sabe estar equivocado” (1991). É como se o crítico não quisesse sair des- se labirinto, fascinado por se mover em seus círculos que, literal e figuradamente, não levam a lugar algum. Perder-se no caminho tortuoso e equívoco do discurso torna-se, assim, a grande magia que confere ao crítico uma aura de especialidade. novamente fa- zem sentido as palavras de santaella, quando a autora reconhece “o número de intelectuais e artistas que têm se acomodado no regozijo que esta projeção imaginária lhes dá” (op. cit.).

o devir da significação, um dos caminhos trilhados pela filosofia da desconstrução proposta por Derrida, tornou-se uma justificativa engenhosa (oportunista?) para o crítico permanecer em um devir ou em uma vivência intransitiva, circulando por entre seus rastros: o percurso, entretecido de fios, é mais importante que a chegada. Não é preciso desfazer os nós ou atingir o dizível. Basta fruir os espelhis- mos que se projetam entre o sujeito e sua linguagem.

Falemos sobre mais uma das plumas colocadas em muitos dis- cursos críticos: a obsessão pela teoria. A incorporação mitificada de certos conceitos teóricos transparece no discurso crítico dos pesqui- sadores, que não apenas falam sobre eles ou os aplicam ao texto ana- lisado, mas também os exercitam na própria linguagem. assim, por exemplo, falar sobre Bakhtin justifica um discurso que investe no “diálogo inconcluso”, acentuando uma polifonia e um dialogismo

que fazem ressoar no múltiplo, sem nada afirmar. Além de hiper- trofiado pela teorização, visível na maneira com que manipula os conceitos em sua metodologia operatória, o discurso do intelectual acadêmico está marcado por uma preocupação com a própria per- formance, mais importante que os conceitos nela manifestados. o resultado é encontrarmos afirmações curiosas, como, por exemplo, a proposta de uma “análise recepcionista” de duas narrativas, com o intuito de exemplificar a teoria da intertextualidade. Como se vê, a estética da recepção, construída por Hans Robert Jauss (1967) e seus seguidores (Wolfgang iser, roman ingarden, entre outros) acaba se transformando em uma visão distorcida que a coloca sob uma forma adjetivada, totalmente distante dos seus verdadeiros propósitos.

Mas voltemos à noção de hipermediação intertextual presente nos estudos literários.

se a pós-modernidade propiciou a abertura para acolher e rela- cionar múltiplas experiências de leitura, tal multiplicidade gerou a obrigação incômoda (eu diria mais, mitomaníaca) de considerar que toda obra exige, quer em sua fatura, quer em sua recepção, uma re- leitura do passado. não é difícil imaginar as consequências de mais esse mito: a angústia de se saber devedor dos precursores, portanto, de precisar dialogar com outros críticos e escritores. Volto a me re- ferir a Harold Bloom, que denunciou essa “angústia da influên cia” existente também entre os críticos. Diz ele: “assim como um poeta pode ser encontrado em um poeta precursor, também ocorre com os críticos. a diferença é que um crítico tem mais pais. seus precur- sores são poetas e críticos” (1991, p.111).

a saída, encontrada pelo crítico pós-moderno, é transformar o que seria “angustiante” (na visão de Bloom) em criação ousada, de que a “escritura” barthesiana é o mais evidente exemplo. esse texto crí- tico criador corresponde a uma prática poética em que o sujeito, as- sim como sua linguagem, se produzem como instâncias provisórias, perseguindo sentidos que se disseminam em uma recriação inquieta.

É extremamente sedutor, sem dúvida, esse caminho aberto por roland Barthes para a prática da crítica: desmontar a aparelhagem ideológica, explorar a “fenda” e “a outra margem” em que o dizer

se suspende, folhear a significância nas secreções da teia da lingua- gem, fazer falar o corpo da língua para se ouvir o grão da voz, enfim, não é nada fácil resistir a essa erótica liberada pelo texto de fruição, suficientemente hábil e perverso para nos deglutir. Como o próprio Barthes sugere, “o texto de fruição é absolutamente intransitivo” (1977a, p.68). Ora, é justamente essa atraente e traiçoeira intransi- tividade que se tornou uma marca do discurso crítico pós-moderno. e, certamente, não era esse o destino que Barthes imaginava para sua prática crítica, pois o que deveria ser ponto de partida ou possi- bilidade se transformou em um fim em si.

essa força centrípeta que impulsiona a linguagem a degustar os movimentos em relação a si, acentuando seu funcionamento poéti- co, foi assumida pela crítica sem (e aqui vai a redundância) o menor senso crítico. o que temos como resultado não é difícil de imaginar: a fetichização da autoimagem para firmar-se como objeto, o que significa valorizar o texto crítico como textura. O mito da literarie- dade se cruza com o mito da criticidade, resultando em um discurso hipnotizado pelas próprias invenções verbais.

as “manobras escriturais” que leda tenório da Motta aponta ao comentar o livro de antonio risério, Ensaio sobre o texto poético em contexto digital, as “onomatopeias galiformes”, expressão que encabeça o artigo de sérgio augusto, em que critica o estilo inaces- sível dos filósofos Deleuze e Guattari (1995), as tropicalices mallar- maicas dos que assimilaram rápida e antropofagicamente a máxima de que um poema (uma crítica?) se faz com palavras, enfim, todos os jogos e fogos de artifício escriturais exibidos pela crítica pós- -moderna evidenciam a hipertrofia da experimentação da palavra, engendrando os sentidos em um “agenciamento maquínico” (De- leuze-Guattari), melhor diríamos, maquiavélico.

o maquiavelismo se torna mais intenso, a meu ver, se pensar- mos em um sem-número de alunos movidos por esse fanatismo, sem terem consciência do quanto estão sendo enganados ou mani- pulados por uma estratégia discursiva perversa.

se o antigo impressionismo crítico, apoiando-se em opiniões e gostos pessoais, e movendo-se pelo prazer das intuições, acentuava o

individualismo dos juízos, a crítica discursiva pós-moderna acentua o individualismo da palavra como signo. o antigo “passeio de uma alma entre belas obras”, defendido por anatole France, transforma- -se no passeio de um ego pelas dobras da linguagem. ao encenar a própria materialidade hipertrofiada, o discurso crítico acadêmico acaba tornando-se presa de uma de suas alucinações: a redundância. os exemplos são numerosos e bastaria apenas um para percebermos esses exageros. Trata-se do estilo trocadilhesco que, afinal, acaba por se enredar (e se queimar) em seus fogos de artifício.

a ilustração nos é dada por Fábio de souza andrade, impiedoso para com O cânone imperial, de Flávio Kothe, obra em que se pode ler o seguinte fragmento: “o enigma da capeta Capitu é o enigma do capítulo, mas a capitulação em seus capítulos precisa ser recapi- tulada para ver a cabeça que está por trás disso” (2000, p.517). Se, por um lado, Flávio Kothe tem o propósito de querer desmascarar (e com certa razão) uma visão ideológica comprometida com uma tradição autoritária de que o escritor Machado de assis faz parte, deixando índices dessa ideologia nas opções por suas estratégias narrativas, segundo o crítico, por outro lado (e agora sem razão), Kothe se vê tomado também por uma onipotência em relação ao seu espaço crítico que o leva a estender abusivamente os domínios de sua linguagem argumentativa: jogar verbalmente com variadas formas do mesmo é insistir em uma permanência que não faz senão aprisionar os limites da invenção. Quem capitula, afinal, não é Ma- chado de assis, nem sua personagem Capitu, nem o leitor, muito menos o astuto narrador machadiano, mas o próprio crítico, traga- do, no fim das contas, pelas secreções de sua teia verbal. O malaba- rismo de signos sígnico criado não é menos autoritário que a ficção machadiana contra a qual ele se insurge.

se a atenção à “estratégia dos signos” (título da obra de lucrécia Ferrara) veio se firmando como uma das tendências marcantes na abordagem da literatura considerada construção artística, a apro- priação dessa estratégia para usufruir de seus efeitos em um dis- curso pessoal é, no mínimo, discutível. a noção de estranhamento, originária das propostas do formalismo russo e central para enten-

der o funcionamento singular da arte transformou-se, em muitos trabalhos científicos, em um procedimento discursivo que toma a si como objeto, fazendo recuar a literatura para um pano de fundo. Um texto como “projetando-se, por si mesma, no estranhamento e como estranhamento, a leitura (se) escreve e (se) lê a si própria, (se) marca e (se) demarca na ausência de todo referente interpretativo a não ser a sua própria prática de leitura, prática geradora e nutritiva da linguagem” (Ferrara, 1981, p.81), não somente deixa visível a sobreposição da leitura à escrita ao enunciá-la, como também ra- dicaliza esse gesto na demarcação intencional de seus rastros como fazer. Afinal, de que se fala?

estratégia que se torna mais ousada quando, para além da mon- tagem discursiva redundante, ela se apoia em criações vocabulares para descrever ou definir conceitos que não são novos. Assim, por exemplo, afirmar em relação à paródia que ela serve ao intuito de “ambiguizar” o relato oficial, ou que a visão do real fica “prismati- zada” pelo olhar poético, que o percurso da escritura pós-moderna se faz pelo seu “destraçado”, enfim, que é necessário atentar à “ci- tatividade” presente nos textos marcados pela intertextualidade – todos esses modos (modismos) do dizer crítico buscam realizar um processo homólogo ao que se instaura no próprio texto literário. trata-se da ideia de textura, obsessão que se caracteriza por uma operação enredada à imanência da produção textual. Enfim, o que se nota é que a “fetichização” (perdoem-me o neologismo) do texto literário como textura migra para o espaço da crítica. se, como já foi praticado pela antiga crítica, reenviar o texto a outra instância que não a textual (sociedade, História, Filosofia...) foi uma atitude condenada pela “nova crítica” (new Criticism), que exacerbou o movimento contrário – leitura em close do tecido verbal –, ambos os caminhos constituem uma redução tão pouco útil quanto a re- dução, pela crítica atual, de sua linguagem à função de seu espelho. nesse sentido, podemos concluir, como eduardo lourenço o faz (1994), que o resultado é um “conhecimento cego”, pois eclipsado pelos próprios reflexos. À busca da literariedade (já superada e des- tronada pelas tendências críticas da pós-modernidade) sobrepõe-se

o apego ao criticismo, ambos hipnotizados, afinal, pelo deslum- bramento com a autoimagem. ao alertar para os riscos da crítica textual que se cerra nos limites da textualidade, conclui o ensaísta português: “o conhecimento que esta conversão do texto à sua tex- tura permite pode comparar-se ao do histologista em presença de uma célula morta” (ibidem, p.67). Ora, a ironia de Lourenço pro- cede, mas é preciso fazer dois reparos quanto aos seus efeitos: pri- meiro, a insistência por uma crítica textual cega ou autossuficiente já perdeu seu lugar e não faz mais sentido em uma cultura em que a literatura só pode ser encarada como sistema plurissêmico, que engloba múltiplas e distintas linguagens; segundo, nem toda críti- ca textual se torna presa das grades da estrutura teórico-conceitual, conseguindo articular o texto (realidade posta em primeiro plano) com outras esferas de conhecimento. Mas isso já demandaria uma discussão mais pormenorizada e ilustrada dessas exceções, o que não cabe fazer aqui.

seja como for, a considerar a crítica textual na sua ortodoxia e o discurso crítico apegado à sua textura, de fato a afirmação de Lou- renço se justifica: o engessamento, quer do texto literário, quer da linguagem crítica, leva à morte do objeto. Célula morta.

Mas falemos de uma linguagem crítica viva, não contaminada pelos vícios ou modismos. lembro, por exemplo, do comentário de

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