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4 RESULTADOS E DISCUSSÃO

4.5 Onívoros Musicais: em busca de evidências empíricas

Conforme destaca Peterson (2005), a operacionalização e medição do onívoro têm sido feitas de diferentes formas, com diversas implicações para os resultados, o que dificulta comparações entre estudos. Conforme já ressaltado, muitos estudos consideram o onívoro musical apenas pela sua amplitude de gosto, ou seja, pela quantidade de gêneros musicais diferentes apreciados pelo respondente. Esse foi o ponto de partida para determinação dos dois primeiros critérios para classificação dos respondentes.

Considerando o primeiro critério (gostar muito ou moderadamente de 10 ou mais gêneros musicais), 12,5% dos respondentes que participaram do presente estudo poderiam ser considerados onívoros. Contudo é importante lembrar que os onívoros, no conceito de Peterson (1992), são caracterizados como membros da elite, o que não se verificou nos resultados. As análises de cruzamento não evidenciaram nenhuma relação significativa entre onívoros, pelo critério 1(um), com as variáveis escolaridade, renda e capital cultural (sexo também não revelou nenhuma diferença). Apenas a idade (sig.0,008) revelou que os onívoros tendem a ser mais jovens (especialmente, entre 20 e 39 anos).

Já se considerado o segundo critério (gostar muito de 8 ou mais gêneros musicais), apenas 3,6% dos respondentes poderiam ser considerados onívoros. Portanto, levando em conta o caráter demasiadamente restritivo desse critério (pequeno número de respondentes), sua consideração, para fins de análise, tornou-se inviável.

Sendo assim, foram estabelecidos mais dois critérios para classificação dos respondentes como onívoro, por meio dos quais se objetivou abarcar o conceito de que os onívoros pertencem aos estratos de status superior (PETERSON, 1992).

Em relação ao terceiro critério (gostar moderadamente ou muito de 10 ou mais gêneros musicais e possuir capital cultural alto), apenas 4,5% dos respondentes poderiam ser classificados como onívoros, o que também é um resultado bastante restritivo. Porém, considerando que os critérios 1(um) e 2(dois) não atenderam, de forma completa, a definição de onívoro, proposta por Peterson (1992), optou-se pela consideração do critério 3 (três), para classificação do onívoro musical no presente estudo, sendo as análises, que seguem, representativas dessa forma de classificação. Vale dizer, o critério 4(quatro) também se

mostrou demasiadamente restritivo (menos de 1% dos respondentes classificados como onívoros), o que reforça a escolha do critério 3(três). Assim, foram considerados onívoros os indivíduos com alto capital cultural e que apreciam 10 ou mais gêneros musicais entre os 15 elencados.

Faz-se importante ressaltar que, além da contagem do número de respondentes classificados como onívoro em cada critério, foram analisados o número de respondentes classificados como onívoro na combinação entre os quatro critérios, inclusive, se haveria respondentes classificados como onívoros em todos os critérios. Conforme se observa, na Tabela 41, apenas 7(sete) respondentes mantiveram-se classificados como onívoros, independente do critério de classificação adotado, o que confirma a baixa representatividade de onívoros, na amostra estudada, segundo os critérios estabelecidos.

Tabela 41 - Classificação dos respondentes quanto à onivorosidade.

Critérios de Onívoro Número de Respondentes

1 146 2 42 3 53 4 8 1 e 2 34 1 e 3 53 1 e 4 7 2 e 3 7 2 e 4 8 3 e 4 7 1, 2 e 3 7 1, 2 e 4 7 2, 3 e 4 7 1, 2, 3 e 4 7

Fonte: Dados da pesquisa (2017).

Os resultados da análise de cruzamento entre os onívoros (critério 3) com as variáveis sociológicas revelaram, então, diferenças significativas em relação à renda e idade30. Nesse sentido, descobriu-se que os onívoros tendem a ser mais jovens (20 a 39 anos) e apresentar renda superior (acima de 4(quatro) salários mínimos), se comparados aos não onívoros, com significância de 0,038 e de 0,031, respectivamente.

30 A variável escolaridade não foi incluída na análise por já fazer parte do cálculo do capital cultural, o que leva a inferir acerca da sua relação com a onivorosidade.

Favaro e Frateschi (2007) também observaram, em seu estudo, que os onívoros tendem a ser mais jovens. Mas resultado oposto também foi obtido por Chan e Goldthorpe (2007). Coulangeon (2015) sinaliza uma distinção entre a onivorosidade de indivíduos jovens e mais velhos que merece ser destacada. Segundo o autor, enquanto os jovens têm sido relacionados a uma onivorosidade extensiva (que se aproxima ao critério de classificação da presente análise), indivíduos mais velhos têm sido relacionados a uma onivorosidade seletiva, o que pode explicar as divergências de resultados. Herrera-Usagre (2013) identificou, ainda, que o comportamento onívoro se relaciona a uma faixa etária específica, entre 30 e 45 anos.

Chan e Goldthorpe (2007) também identificaram, em seu estudo, a relação da renda com a onivorosidade. Já, em Garcia-Alvarez, Katz-Gerro e López-Sintas (2007), a renda apresentou baixo nível de significância estatística em relação à onivorosidade. Coulangeon e Lemel (2007), por sua vez, não observaram diferenças significativas. Observa-se, portanto que não é possível identificar, na literatura, consonância de resultados quanto à influência da renda no consumo musical onívoro, o que, em certa medida, desafia os argumentos de Peterson (1992).

Ainda, em busca de evidências que confirmem ou refutem a tese do onívoro cultural e, considerando que no conceito de Peterson (1992) a elite onívora marca distinção pela apreciação tanto de gêneros clássicos como populares, buscou-se analisar o gosto musical dos onívoros. O teste qui-quadrado revelou que os onívoros tendem a gostar mais dos gêneros musicais de status, tais como rock, clássica, jazz e blues e MPB, se comparados com os não onívoros. Além desses gêneros, eles tendem a gostar mais de pop, pagode, samba, funk, hip hop/rap, reggae, axé, eletrônica e heavy metal.

Ou seja, com a exceção do sertanejo (que não revelou diferenças significativas) e do gospel (que tende a ser mais apreciado pelos não onívoros), todos os demais gêneros musicais são mais apreciados pelos onívoros, em comparação com os não onívoros31. Esse resultado confirma a ideia de que a amplitude de gostos dos onívoros abarca, a um só tempo, gêneros de status e populares. Ainda, o fato de o gospel ser um gênero menos apreciado pelos onívoros confirma o argumento de que “não significa que o onívoro gosta de tudo, indiscriminadamente” (PETERSON; KERN, 1996, p. 904).

A teoria de Peterson e Kern (1996) sustenta, ainda, que o gosto onívoro da elite estaria em oposição ao gosto unívoro das classes inferiores. Segundo o autor, as classes mais baixas

31 Todos os resultados obtiveram significância de 0,000 no teste qui-quadrado, com exceção da música eletrônica, cuja significância foi de 0,001. Sertanejo não apresentou diferenças significativas e o resultado acerca do gênero gospel foi significativo a 0,041.

tendem a defender com vigor sua preferência restrita (unívora) por gêneros musicais de status inferior.

Destarte, ao confrontar a teoria com os resultados do presente estudo, foi possível observar que os respondentes com perfil unívoro (que afirmaram gostar de apenas 1 ou 2 gêneros musicais entre os 15 elencados)32 apresentam, de forma geral, baixo capital cultural, menor escolaridade (ensino fundamental e médio) e renda (de 2 a 4 salários mínimos). A idade se mostrou bastante variada (de 18 a 72 anos) e o sexo feminino sobressaiu em relação ao masculino. O gênero musical “defendido”, majoritariamente, por esse grupo é a música religiosa (gospel), seguido pelo sertanejo, de forma menos expressiva. Nenhum outro gênero se destacou na avaliação dos respondentes. Deste modo, esses resultados confirmam os achados de Peterson, embora seja importante destacar que apenas 23 entrevistados (menos de 2% do total de respondentes) corresponderam ao perfil unívoro apresentado.

Contudo, em consonância com Bennet et al. (2009), argumenta-se que a estrutura de gostos e desgostos se revela muito mais complexa do que a relação dicotômica entre onívoros e unívoros permite-nos analisar. Embora tenham sido verificadas tendências de onivorosidade entre os respondentes com capital cultural alto e de univorosidade entre os respondentes com capital cultural baixo, nota-se que o quantitativo ainda é discreto em comparação com o montante total de respondentes.

O próprio idealizador da teoria reconhece, em trabalhos posteriores, a necessidade de revisão do conceito original, para que se possa dar conta dessa realidade multifacetada. Nas palavras do autor: “é útil rever brevemente o desenvolvimento da ideia de onívoro, porque mudou significativamente ao longo dos anos” (PETERSON, 2005, p. 262). Assim, da visão inicial acerca da existência de uma elite onívora, suplantando a figura do “esnobe”, passou-se a reconhecer que o público esnobe não havia desaparecido, mas que diminuía, enquanto os onívoros aumentavam. Mais recentemente, os autores perceberam que, embora fosse esperado o contínuo aumento dos onívoros, isso não aconteceu, vindo a diminuir em níveis consideráveis. Para os autores, isso pode indicar, inclusive, a emergência de um período pós- onívoro, o que ainda é uma perspectiva incipiente e que carece de investigação.

Especificamente, no caso brasileiro, faz-se importante considerar que os últimos anos têm sido caracterizados pela hegemonia de poucos gêneros musicais, que dominam o gosto popular e de massa. A esse respeito, Gregório (2017) ressalta que sertanejo, funk e gospel

32 Vale ressaltar que o unívoro se diferencia daquele que não aprecia nenhum gênero musical. Por isso, foi considerado o gosto por pelo menos um (até o limite de 2) dos 15 gêneros elencados para que o indivíduo fosse classificado como unívoro.

dominam as paradas, atualmente, por sua maior adaptação às mudanças no consumo e produção de música. Nesse sentido, fatores como tecnologia, redes sociais e flexibilização autoral contribuíram, para que o consumo extrapolasse a escuta de música, para oferecer experiência de consumo performática. Além disso, a exploração de elementos simbólicos, para a nova geração (festas, ostentação, sexo e individualidade) e do uso da internet e redes sociais na divulgação contribuiu para gerar identificação e alavancar o consumo. No caso da música gospel, que cresce a um ritmo menor, porém constante, destacam-se os benefícios obtidos por isenções fiscais e pela menor necessidade de grandes estruturas e performances na promoção de eventos. Alonso (2017) usa o termo “antropofagia das massas”, para se referir ao fenômeno dos “intercâmbios culturais”, na música brasileira, entre as quais se destaca o sertanejo. Nesse sentido, a capacidade de mutação e rearticulação do gênero e adaptabilidade aos diferentes “modismos” seriam um dos fatores que contribuem para sua perenidade no gosto popular.

Diante disso, pode-se dizer que o número de onívoros, pelo menos no contexto estudado, pode refletir essa tendência aparentemente homogênia de gostos, mas que, ao ser analisada de forma mais aprofundada, revela uma miscelânea de estilos, inspirações e origens. Ademais, faz-se importante destacar o papel da mídia como importante agente influenciador e disseminador desses padrões, o que acaba por perpetuar e reproduzir padrões de gosto e comportamentos de consumo.

Portanto, embora o onívoro, nos termos de Peterson (1992), não possa ser uma teoria refutada, nota-se, no contexto estudado, que ele ainda apresenta pouca representatividade. Considerando todas as análises realizadas até o momento, a tese da homologia, proposta por Bourdieu (1984), parece explicar com mais fidedignidade a distribuição simbólica do gosto musical no contexto estudado. Na sequência, por meio da Análise de Correspondência Múltipla, buscar-se-ão evidências que sustentem (ou rejeitem) essa hipótese.