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2.5 Onívoro versus esnobe no campo cultural da música

2.5.3 Perspectivas conciliatórias: evidências empíricas

Em uma perspectiva intermediária, verifica-se na literatura estudiosos que buscam uma abordagem conciliatória entre as teorias da homologia e do onívoro cultural, argumentando não se tratar de questões antagônicas, mas, sim, complementares. Faz-se importante ressaltar que os únicos dois estudos que utilizaram a triangulação de métodos qualitativos e quantitativos se enquadram nessa perspectiva conciliatória, o que pode sugerir que a temática carece de mais investigações desse tipo.

Coulangeon e Lemel (2007), por exemplo, problematizaram em que medida o ecletismo se constitui como uma refutação da teoria da distinção de Bourdieu. O estudo, que foi conduzido na França, invalidou a estrita hipótese de homologia de Bourdieu. Por outro lado, no estudo, também, não foi possível estabelecer uma relação evidente entre qualquer gênero musical e um grupo social, ou confirmar que os grupos de classe alta e de alto status tendem a distinguir-se pela variedade do seu consumo musical. Nesse sentido, os autores argumentam que a tese de Bourdieu é apenas parcialmente desafiada por este novo quadro teórico, uma vez que, como a onivorosidade se torna um critério distintivo, o consumo cultural continua a ser socialmente estratificado. Dessa forma, os autores propõem duas hipóteses concorrentes: na primeira delas, o consumidor musical onívoro pode ser visto como o resultado da mobilidade social e massificação da escola, que introduz pessoas de origens sociais e culturais cada vez mais heterogêneas na elite. Na segunda, o ecletismo pode ser entendido como uma disposição genérica, em relação à cultura, caracterizada pela tolerância e abertura à diversidade, que tende a incorporar a “quintessência” moderna de distinção.

Bachmayer, Wilterdink e Van Venrooij (2014), por meio de entrevistas em profundidade com 40 imigrantes latino-americanos, residentes na Suíça e na Holanda, identificaram uma ligação clara e bastante forte entre o gosto musical e indicadores de status /classe (em especial, educação e, em menor grau, status profissional e origens sociais). Os autores então argumentam que a tese do onívoro não contradiz a lógica social de distinção elaborada por Bourdieu. Para eles, a “onivorosidade cultural” pode coincidir com status, visto que não indica “tolerância cultural”, mas expressa um alto grau de exclusividade, que delineia

uma nítida fronteira entre bom e mau gosto. Nessa pesquisa, embora os entrevistados com alta escolaridade tendessem a combinar preferências por formas musicais “superiores” com a “popular” salsa (podendo ser considerados como “onívoros”) eles estabeleciam distinções entre a “qualidade” de salsa de que gostam. Nesse sentido, os autores defendem que estudos sobre “onívoros”, que usam dados sobre gostos de grandes categorias (“country”, “pop”, etc.), tendem a obscurecer as distinções mais sutis dentro dos gêneros, que podem ainda seguir uma lógica de distinção social.

Savage e Gayo (2011) fizeram uma análise da estrutura do gosto musical britânico, cujos resultados demonstram diferenças sutis entre os “fãs clássicos” e “onívoros clássicos” e entre “pop-orientados” e “pop-vorazes”. O estudo revelou, ainda, que as posições de dominância no campo musical estão associadas ao apego a um grande número de gêneros musicais, tanto contemporâneos como, para os “experts”, formas mais clássicas. Os autores, então, argumentam que essa classificação proporciona uma forma de compreender o gosto musical que vai além dos rótulos de gênero. Ainda, defendem a substituição da ideia de “onívoro cultural” pelo “expert”, uma vez que esse último grupo identifica claramente os gêneros de que não gostam e evitam.

Tanner, Asbridge e Wortley (2008) exploraram os fatores correlacionados às preferências musicais de estudantes do ensino médio em Toronto, Canadá. Os resultados obtidos revelaram que a maioria dos entrevistados apresentou preferências por mais de um gênero musical, sugerindo que os gostos dos estudantes são mais onívoros do que unívoros. Mas, conforme observado pelos autores, os onívoros do estudo não se encaixam na descrição de Peterson, pelo contrário, esses estudantes apreciam todos os gêneros musicais, estilos pop e clássico de forma semelhante, com a única exceção da música country. Além disso, conforme observado pelos autores, esse grupo não pertence à elite acadêmica (embora dotados de recursos de capital cultural, eles não são os melhores alunos, nem os mais ambiciosos), sendo marcados por características boêmias e não acadêmicas. Destarte, para os autores, as preferências musicais dos estudantes de Toronto são variadas e estruturadas, mesmo que, não necessariamente, na forma prevista por outros autores (como Bourdieu e Peterson), estando relacionados a formas e graus de envolvimento em práticas culturais de grupos de colegas.

No estudo desenvolvido por Bennet et al. (2009), também, foi evidenciado que a divisão cultural primária não está assentada na oposição entre uma cultura “alta” e “popular”. A divisão percebida por esses autores separa indivíduos com alto engajamento, em atividades culturais de “alta” cultura e de cultura popular, daqueles com baixo ou nenhum grau de engajamento. Por outro lado, esses autores chamam a atenção para a existência de uma clara

separação entre entusiastas de música clássica e popular, em que a primeira mostrou-se relacionada com a elite, em detrimento da classe trabalhadora. Destarte, foi evidenciado que a familiaridade com a música clássica ainda se revela como uma forma de capital cultural institucionalizado, e a participação em eventos relacionados a esse gênero musical se mostra como uma forma de capital cultural objetivado, ambos podendo se converter em capital social.

Diante de toda literatura pesquisada e das discussões tecidas, é possível afirmar que o campo de estudos sobre consumo de status ainda se apresenta como terreno fértil, para novas investigações, especialmente, em países em desenvolvimento como o Brasil. Conforme apresentado, raros são os estudos nacionais dedicados à essa temática e nenhum dos estudos encontrados se propôs a testar a tese da homologia no Brasil. Internacionalmente, embora diversas pesquisas tenham sido realizadas, observa-se que os resultados ainda não se apresentam suficientemente consolidados, tampouco esgotados. Por isso, de forma a contribuir com essas discussões, buscou-se, no presente estudo, testar a tese da homologia, confrontando-a com a teoria do onívoro cultural. Os procedimentos para realização da pesquisa são descritos na seção a seguir.