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Daniel Barenboim: A minha única doutrina em termos de música e execução musical decorre basicamente da natureza do paradoxo: é preciso ter os extremos; é preciso encontrar um jeito de juntar os extremos, sem necessariamente diminuir a extremidade de cada um, para criar a arte da transição.

Edward Said: Eu concordo. Também não vejo necessidade de conciliar, diminuir ou atenuar os extremos. (BARENBOIM; SAID,

2003, p. 81)

O Projeto Guri Santa Marcelina cria, entre os extremos, uma escada, na qual o contato com a música mediaria e minimizaria tensões sociais. Mas não seria possível pensar de outra maneira, com as condições que temos? Um encontro, nos anos 1990, entre dois sujeitos singulares possibilitou a fundação, em 1999, da West- Eastern Divan Orchestra, cujo objetivo é unir na mesma orquestra jovens músicos israelenses e palestinos, não para conter conflitos históricos naquela região, mas no intuito de uni-los, sem apagar suas distinções e lutas. Edward W. Said, escritor e crítico literário, palestino, exilado e educado no Egito, de religião cristã com algumas influências do anglicanismo (principalmente ao se estabelecer nos EUA), mais tarde tornou-se professor na Universidade de Columbia (EUA). E Daniel Barenboim, pianista e diretor artístico da Orquestra Sinfônica de Chicago, portenho, de família judia, formou-se em Israel e consolidou sua carreira nas principais capitais mundiais. Os aspectos biográficos dos autores e seus diálogos sobre o tema música e sociedade, publicados no livro Paralelos e paradoxos: reflexões sobre música e sociedade, nos inspiram a reformular nossas respostas e refletir sob novos horizontes para o tema.

A partir do século XX, como dissemos na introdução, vivemos numa sociedade transicional, na qual a estrutura de sentimentos restrita ao industrialismo tornou-se névoa, poeira, e tudo está disperso nas histórias de vida e envolto na crise. O autor sustenta a hipótese de que, a partir de George Orwell e seus escritos, vivemos a expressão do paradoxo, em que os contrastes não estão mais nítidos, pois as oposições não existem mais, tudo é uma coisa só, uma totalidade (o abstrato

e o absoluto). A metáfora que iremos adotar para pensar essa noção de paradoxo será a encruzilhada (WILLIAMS, 2011).

No caso brasileiro, de modo específico, dois projetos societários antagônicos são observados: o projeto democratizante e participativo e o projeto neoliberal. Vimos no projeto dominante neoliberal, que a associação entre a cultura e as grandes corporações atuantes nas políticas culturais dá notícia de um novo momento do capital, no qual se instaura a megalomania e a impessoalidade na dominação capitalista. A cultura tornou-se sinônimo de filosofia do dinheiro na modernidade, afinal demonstra ser uma das maneiras do dinheiro se movimentar de modo bem lucrativo. Vimos, com outras palavras, que a cultura como experiência ou trabalho intelectual e criativo do homem transfigurou-se em abstração, na medida em que se torna mercadoria, modificando-se em um processo de gestão da vida que passa por práticas culturais: pelo entretenimento, pelo espetáculo, pelo empreendedorismo, pelo protagonismo e pelo status.

A imagem da névoa, poeira ou zona cinzenta da qual nos apropriamos, esconde esse lugar de destruição em curso pelo projeto neoliberal. Esse lugar onde, aparentemente, não há espaço para contradição, onde há pouco espaço para reação. Porém, onde também persiste o projeto societário alternativo, democratizante e participativo, na disputa e resistência contra esse processo geral dominante. Sob este primado, tentamos recuperar a cultura do trabalho como motor da história e apontar que a cultura é trabalho concreto. A cultura como atividade humana relacional que não se encerra no produto, pois se baseia na produção de riquezas em torno de valores de uso, devolve ao homem a capacidade de construir a si mesmo e a sociedade na qual se insere, como conhecedor do processo de divisão do trabalho e das relações entre as produções culturais e as coerções capitalistas. O homem ainda resiste por meio de sua atividade intelectual ou artística. Parece oportuno relembrarmos Os anos de viagem de Wilhelm Meister, de Goethe e a análise de Alexandro Paixão (2012, p. 173) que traz com outras palavras, o sentido que desejamos construir nesse campo de disputas como uma forma de resistência nessa zona cinzenta:

O trabalho representa, portanto, não somente um valor econômico, social e político, mais um valor abstrato, uma visão moral do homem como um homem econômico, alguém que realiza uma atividade. Neste sentido, o trabalho é dotado também de um valor espiritual,

garantia de sua universalidade. Em Goethe, portanto, o trabalho é a união de uma ordem material e espiritual dentro de cada indivíduo. Uma força que o arranca da sua inércia e o submete a uma agitação que se transforma em atividade regrada ou permanente. O trabalho canaliza toda a agitação interior do homem e lhe dá um objetivo exterior, ou melhor, social. Esta atividade braçal e/ou das ideias é resultado da tomada de consciência do homem em relação ao seu ser e suas necessidades.

Retomando a expressão do paradoxo em que vivemos e a metáfora da encruzilhada, quando questionado sobre uma possível doutrina, um caminho desejável à formação em música no qual acredite, Daniel Barenboim (2003, p.81) salienta, conforme a epígrafe, que a resposta para ele está na natureza do paradoxo. Tendo em vista a imagem da encruzilhada em nossa sociedade, podemos ver nitidamente um ponto crítico, instável, lugar de cruzamento e possível encontro: entre os extremos.

Contudo, o problema de alguns projetos em arte e educação consiste em insistir nas inter-relações pobreza, política e música, para reforçar que a violência ou a atitude ameaçadora, quando pacificada, elimina a necessidade de afirmação da luta de classes. Esses projetos utilizam palavras ou sentidos, tais como: situação de risco, inclusão social e conciliação, introduzindo a música, mesmo que num nível inconsciente, como descrição dessas ideias, quando, na verdade, seus objetivos deveriam envolver a comunicação da expressão musical no mundo do som e das relações sonoras, dando liberdade aos alunos de adaptar esse aprendizado à sua condição de vida (BARENBOIM; SAID, 2003, p. 63).

Enquanto discutem sobre o papel do intelectual na nossa sociedade, marcada pela desigualdade social e pela exclusão, Edward Said, como intelectual e militante político nos Estados Unidos, insiste que seu papel no campo literário foi o de desconfiar e pôr em questão as certezas, porém ele interroga Barenboim no sentido de saber se há um paralelo dessa atitude na música. Barenboim responde a essa questão de modos diferentes, porém complementares entre si:

E aí você tem de se perguntar: a música tem um propósito, um propósito social? E qual é? É proporcionar conforto e entretenimento, ou é inspirar perguntas incômodas no executante e no ouvinte? Veja o papel que a música – e, muito mais que a música, o teatro e a ópera – desempenhou na sociedade e nos regimes totalitários: ela foi o único campo em que se podiam criticar ideias políticas e o totalitarismo social. Em outras palavras, uma apresentação de Beethoven no regime nazista ou em qualquer outro regime totalitário, de esquerda ou de direita, assume de repente o caráter de um grito

de liberdade, torna-se até mesmo uma crítica bem direta da política do regime e, portanto, é realmente uma coisa muito mais incômoda e, ao mesmo tempo, enaltecedora. (BARENBOIM; SAID, 2003, p. 58)

Não há uma espécie de paralelo do processo pelo qual todo ser humano tem de passar na sua vida interior para primeiro chegar à afirmação do que é e depois ter a coragem de soltar essa identidade para encontrar o caminho de volta? Acho que a música é isso. Eu não diria que é sempre uma crítica da sociedade ou do ser humano, mas é um paralelo do processo interior dos pensamentos e sentimentos mais íntimos de um ser humano. Acho que Beethoven é isso. Não sei se convenci você. (BARENBOIM; SAID, 2003, p. 61)

Podemos compreender essa afirmação por meio do contato com jovens que passam pela experiência da educação musical no Projeto Guri Santa Marcelina e, por extensão, reiterando a pesquisa de Hikiji (2006), no Projeto Guri da Associação de Amigos. Em todos os depoimentos coletados nesta pesquisa, bem como naqueles apresentados por Bruno (2013) e Hikiji (2006), observamos uma mudança interna, subjetiva, nesses jovens. Aspectos como a socialização, a construção de identidades, a noção de pertencimento social e os vínculos no grupo, são recorrentemente mencionados por eles. A relevância desses aspectos revela, simultaneamente, que a experiência da música foi exitosa, mesmo que em contextos controversos e contraditórios.

O problema aparece quando essa avaliação dos alunos se confunde com os valores e a ideologia da instituição, que, intencionalmente ou não, continua a insistir em outros aspectos como inerentes à prática musical: disciplina, concentração, responsabilidade, resiliência, cooperação, tolerância, protagonismo e cidadania. Não negligenciamos a existência desses valores, apenas verificamos a conexão entre eles e a orientação mais recente do mercado de trabalho, proveniente da racionalidade capitalista pós-reestruturação produtiva, em que são mobilizadas as competências atitudinais, como a polivalência, o empreendedorismo, a flexibilidade, a criatividade e a liderança.

A cidadania certamente é um valor importante, porém nesses projetos mantém-se desfigurada, pois ora se confunde com a noção de autoestima e inclusão social e ora se associa ao ideal de protagonismo juvenil. Nem ao menos se discutem as categorias classe social, gênero, cor da pele e desigualdade social na cidadania e o reconhecimento dos direitos de cidadania, o que gera uma compreensão

equivocada nos participantes. Na perspectiva de análise de Dagnino (2005), vimos que essa crise discursiva e as armadilhas da homogeneidade desse vocabulário comum geram a apropriação neoliberal da noção de cidadania: “ser cidadão passa a significar uma integração individual ao mercado, como consumidor e como produtor – subjacente aos programas que auxiliam as pessoas a adquirir cidadania” (DAGNINO, 2005, p. 55). Essa névoa provoca a reiteração dos princípios que vimos na origem do Projeto Guri, conforme podemos verificar no depoimento de um pai sobre a visão que ele tem do GSM:

A questão da sociedade é legal. Porque está dando oportunidade para muitas crianças, como eu disse no começo, que nós não tínhamos [antes]. E hoje eles têm a oportunidade de conhecer o mundo musical, talvez não pra poder tocar numa filarmônica famosa, mas para criar uma certa ética, uma cultura. Sair um pouco dessas vidas das drogas, do álcool e colocar um instrumento no lugar disso. Para poder, vamos dizer assim, “culturar” essas crianças. E elas crescerem um pouquinho mais com ética, amor e respeito ao próximo. (Pai de aluno, 2015)

Entendemos que as receitas adotadas pelo Guri, nos primórdios, sob a gestão da AAPG, uma espécie de “formação musical para populações de risco tornarem-se civilizadas”, e na sua nova versão desenvolvida pelo GSM, em resumo, “a promessa de profissionalização e inserção no mundo do trabalho musical”, ambas inscritas no aparato institucional descrito e analisado nesta dissertação, não trouxeram os resultados esperados. Nos depoimentos dos jovens analisados, pudemos identificar que a experiência musical não se reduziu a domesticação desses sujeitos e, mesmo em contextos controversos e contraditórios, tornou-se um meio de ressignificação de suas vidas. Já a profissionalização e a inserção no trabalho musical se concretizaram para poucos e parcialmente, pois há um desequilíbrio entre oferta e demanda no mercado de trabalho musical que mantém um excedente de músicos profissionais desempregados ou realocados em outros empregos. Por isso, insistimos que o projeto deveria reformular seus objetivos e proporcionar uma educação musical visando a experiência artística em si, sem apelo à competitividade e noção de mérito artístico, tendo somente como objetivo o cultivo da experiência musical. Essa ênfase não se encontra entre as justificativas e práticas do projeto e seria uma contribuição relevante.

Porém, configura um exercício instigante ao pesquisador a constante revisão das suas fórmulas para que não fique preso ao engodo capaz de transformar todos

à condição de massas ou turba74. Williams (2011) nos alerta a estarmos atentos aos efeitos da maquinaria nos modos de vida, pois ela trabalha no sentido de negar a natureza humana e a cultura constituída nas relações sociais, corrompendo assim nossa existência. Por isso, devemos sempre questionar, num processo de comunicação que se molda pela maquinaria, como é o caso do Projeto Guri: o que é o engodo e o que é a crise? Neste limiar, onde se encontra a medida do futuro, onde estão as sementes de vida e as sementes de morte? “[...] embora o punho fechado seja um símbolo necessário, o fechamento nunca deve ser tão forte que impeça a mão de abrir e os dedos de se estenderem para descobrir e moldar a realidade que está se formando” (WILLIAMS, 2011, p. 358).

Vimos, no engajamento profissional e afetivo de gestores do GSM, em sua maioria músicos e musicistas, um esforço para consolidar um ensino de música de excelência e dentro de uma perspectiva de transformação social. Não há como negar o empenho individual dos trabalhadores, que, de acordo com as condições de trabalho vivenciadas, ofereciam o seu melhor aos alunos e às alunas nos polos. Eles demonstram estar absolutamente convictos da relevância musical e social do projeto. Toda essa expectativa no aprendizado por meio de um processo educacional comunicativo consolida, certamente, pulsões de vida.

Uma das experiências mais significativas que pudemos vivenciar no trabalho de campo foi durante o concerto de encerramento da série Horizontes Musicais, em novembro de 2014, com a Orquestra Jovem do Estado sob a regência do maestro venezuelano, Diego Guzmán, do Sistema Nacional de Orquestas y Coros Juveniles e Infantiles de Venezuela (1975 - ). No programa do concerto ouvimos obras de compositores latino-americanos: de Gonzalo Castellanos-Yumar, “Antelación e Imitación fugaz”; de Carlos Chávez, “Sinfonia India”; de Silvestre Revueltas, “Sensemayá”; de Giancarlo Castro, “Concerto para clarinete e orquestra”; de Alberto Ginastera, “Danzas del Ballet Estancia”; e de Arturo Márquez, “Danzon nº 2”. O público era composto por estudantes do Projeto Guri e seus familiares, além de familiares dos músicos da orquestra. A impressão é de que todos os lugares da Sala São Paulo estavam ocupados, mas desta vez não era a elite paulistana quem estava lá, e, sim, o povo da região metropolitana de São Paulo. Não é possível explicar o

74 Segundo Williams (2011), a palavra “massas” é uma palavra nova para o termo original “turba”. Na definição do dicionário temos: “turba 1 grande número de pessoas, esp. quando reunidas; multidão, turbamulta, turbilhão 2 multidão em movimento ou desordem, potencialmente violenta; 3 conjunto dos menos favorecidos de uma comunidade; o vulgo, o populacho” (HOUAISS, 2009, p. 1894).

que aconteceu naquele dia, só podemos dizer que o calor humano, o ambiente vivo e animado dentro de outros códigos, por algum motivo, incomodaram algumas pessoas. Observamos que elas conversavam entre si, diziam-se frequentadoras assíduas da Sala e questionavam-se mutuamente se aquele concerto fazia parte da programação regular da Osesp. Elas pareciam desconfortáveis. Antes de iniciar o concerto, elas perceberam que ele fazia parte de uma programação diversa e se retiraram. Giuliana Frozoni, gestora e regente de coros do GSM, comentou, momentos antes do concerto, que viveríamos uma experiência incrível e que ela estava com boas expectativas; concordamos com ela e, pelo vigor dos aplausos e pela participação do público, pensamos que todos os presentes tiveram essa impressão. Em um diálogo anterior a esse concerto, ela fez referência a “El Sistema” como um projeto exitoso, uma fonte de inspiração para eles. Acreditamos que o GSM está muito longe de ser “El Sistema”75

, até mesmo porque são contextos muito distintos de inserção, pensamento e financiamento, mas sua colocação traz, no mínimo, um pouco de esperança.

Nesse momento, já sabemos o que é o Guri Santa Marcelina, mas precisamos encontrar o caminho de volta. Retomaremos, então, as imagens da encruzilhada , da escada e a ideia de conciliação. A atuação do GSM contempla aquilo que Williams (2011) chamou de serviço à comunidade, apresentado à classe trabalhadora como sinal de solidariedade. Contudo, ele se dá por uma oportunidade individual realizada pela ideia de escada na educação musical. E o que é a escada? ”A escada, no entanto, é um símbolo perfeito da ideia burguesa da sociedade porque, embora sem dúvida alguma ofereça a oportunidade para subir, é um artifício que só pode ser usado individualmente: você sobe a escada sozinho.” (WILLIAMS, 2011, p. 354-5) Com isso, instaura-se a lógica do mérito, e a noção de direitos se perde, pois o benefício a ser oferecido à classe trabalhadora é a escada. Sabemos que, por meio deste alicerce, muitos subiram e se estabeleceram do outro lado, e muitos tentaram subir em vão e permaneceram onde estavam. Por isso, a ideia de

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Sistema Nacional de Orquestas y Coros Juveniles e Infantiles de Venezuela, popularmente conhecido como “El Sistema”, foi concebido e fundado, em 1975, pelo maestro e músico venezuelano, José Antonio Abreu. Seu objetivo é sistematizar a instrução e a prática coletiva e individual da música por meio de orquestras sinfônicas e coros, como instrumentos de organização social e desenvolvimento humano. Atualmente, encontra-se sob a gestão da Fundação Musical Simon Bolívar (Decreto nº 8078 publicado na Gazeta Oficial nº 39626, de 2011), órgão do Ministério do Poder Popular de Despacho da Presidência e Seguimento da Gestão do Governo da República Bolivariana da Venezuela. (Prensa FundaMusical Bolívar, 15/08/13). Trata-se de uma política pública do Estado desenvolvida em âmbito nacional e financiada com recursos do petróleo venezuelano.

conciliação que envolve todo esse esquema de solidariedade é uma resposta, além de impossível, perversa. E por que a escola pública não pode ensinar música?

A escolha política de investir em projetos de educação musical elaborados e desenvolvidos por Organizações Sociais é uma possível resposta para essa pergunta. De certo modo, vimos que o trabalho desenvolvido no GSM reitera, conscientemente ou não, a descrença na escola pública como espaço de formação humanística. É preciso recuperar, em nosso trabalho, em que ponto e por que foi negado às classes trabalhadoras o direito de acesso ao ensino de música na escola pública.

Desde a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1971 (BRASIL, 1971), que substituiu o ensino de música pela educação artística, a disciplina educação musical foi extinta do sistema educacional, assim como as disciplinas latim e francês foram retiradas do currículo das escolas de ensino fundamental e de ensino médio. Temos duas explicações possíveis para o fato de o ensino de música não fazer parte da grade curricular das escolas regulares. A primeira é que, com o advento da compreensão de cultura associada ao mercado e, por consequência disso, seus produtos serem comercializados na forma de mercadoria, conforme discutimos no segundo capítulo, fomos perdendo a compreensão de cultura como trabalho intelectual e criativo do homem, a qual se expressa como experiência humana relacional que não se encerra no produto, pois se baseia na produção de riquezas em torno de valores de uso. A segunda é que, numa sociedade do espetáculo como é a nossa, na qual o consumo é a principal fonte de realização humana, a arte e a música tornam-se artigos de luxo, que confirmam o poder e o fascínio de uma espécie de símbolo de prosperidade da sociedade por meio da instituição orquestra, do teatro de ópera, da companhia de balé e do museu (BARENBOIM; SAID, 2003, p. 59).

É preciso salientar que, a partir da década de 1990, houve uma maior compreensão da infância e da juventude, de seus direitos e deveres, de modo especial, os direitos culturais. Nesse sentido, foram lançados diversos projetos na área de ensino artístico e, sobretudo, a educação musical foi a atividade privilegiada na maioria deles. Contudo, a concepção desses projetos está sob a responsabilidade de instituições privadas na forma de ONGs, OSs e OSCIPs, oferecendo à população serviços culturais gratuitamente, apoiados com recursos públicos estatais, mas distantes do aparelho de Estado e independentes de uma

visão global proposta por uma política pública cultural elaborada por esse órgão. A visão que permeia esses projetos é de promover a inclusão social de crianças e jovens considerados em situação de vulnerabilidade social e, com isso, reduzir índices de violência, criminalidade e conformação social desses sujeitos, conforme analisamos ao longo deste trabalho.

Discutimos, no segundo capítulo, alguns dos interesses ligados a essa escolha por parte do poder público estatal; por isso, vamos nos concentrar, neste momento, em desenvolver as implicações dessa escolha e apontar algumas propostas possíveis de intervenção.

Pesquisas recentes, como as de Vanda Freire (2007), representante na área de música junto à Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (MinC) durante cinco anos, e levantamentos em torno do MinC e FUNARTE apontam para o fato de que os projetos de curta duração aprovados por editais e premiações geralmente integram política educacional e política cultural, numa proposta de educação musical em conformidade com as exigências, desses editais, de produzir resultados quantificáveis com eficiência e eficácia no uso dos recursos financeiros. Essa

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