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4 AS CONTRIBUIÇÕES DA PRÁTICA EM SCHATZKI PARA O ESTUDO DA

4.1 A ONTOLOGIA DE CONTEXTO, OS ARRANJOS MATERIAIS E AS

Tradicionalmente, a ontologia social tem sido explicada a partir de dois diferentes contextos: individualistas e societistas (SCHATZKI, 2005). A ontologia individualista entende que o que define o social é o indivíduo, seus interesses e a relação entre esses elementos. Já a ontologia societal acredita que o que define a ordem social vai além dos indivíduos e das relações entre eles e seus interesses. Na verdade, os societistas afirmam que o social é explicado por questões abstratas. Nesse caso, o conceito de reificação, ou seja, o fato de que algo abstrato possa se tornar existente, é bastante defendido pela ontologia societal (SCHATZKI, 2005).

Uma alternativa a essas duas visões sobre a ordem social é a ideia da ontologia de contexto, ou site ontology, cujo entendimento é de que o desenrolar da vida social se dá dentro de determinado contexto e que a ordem social se estabelece no território das práticas (SCHATZKI, 2005). Isso pressupõe, de acordo com o autor, que as características individuais estão conectadas com o mundo, não havendo, portanto, uma separação entre eles. Nessa lógica, os fenômenos sociais só podem ser estudados por meio da análise dos contextos, nos quais a coexistência humana

acontece. Esses contextos são compostos pelo “emaranhado” de duas dimensões da vida social: as práticas (ações inacabadas, mas organizadas) e os arranjos materiais (não-humanos). O local no qual humanos e não-humanos agem, se relacionam uns com os outros e adquirem significados e identidades é justamente essa “malha” ou “emaranhado” de práticas e arranjos materiais (SCHATZKI, 2002). Assim, a ontologia de contexto, por um lado, se junta ao societismo na busca pela contextualização das ações, dos estados mentais e das relações dos indivíduos. Por outro, se junta ao individualismo para combater a ideia de reificação de alguma coisa do social que foge ao indivíduo (SCHATZKI, 2003). No entanto, de maneira particular, a ontologia de contexto tem como premissa deixar clara a natureza dinâmica dos fenômenos sociais, que se perpetuam na medida em que as práticas vão sendo incorporadas pelos indivíduos e levadas adiante por eles (SCHATZKI, 2005).

Destarte, percebe-se que a noção de ontologia de contexto não privilegia indivíduos, interações, linguagens, instituições ou estruturas (SANTOS; ALCADIPANI, 2015). Pelo contrário, Schatzki (2001, 2002, 2003, 2005, 2006) destaca que a vida social é definida a partir do acontecimento de algo no emaranhado de práticas e arranjos materiais (SANTOS; ALCADIPANI, 2015). Nesse sentido, a coexistência humana se configura fundamentalmente a partir de três pontos: (1) das cadeias de ações, (2) dos pontos em comum acerca dos fins, projetos e emoções dos sujeitos, (3) bem como dos arranjos materiais que envolvem a vida humana. As ações (e suas cadeias) ocorrem como parte das práticas, enquanto que os indivíduos possuem fins, projetos e emoções ao participarem em determinadas práticas (SCHATZKI, 2005).

Os arranjos materiais são definidos por Schatzki (2005, 2006) como o estabelecimento de objetos materiais, como artefatos, conexões físicas, coisas e organismos. De acordo com o autor, a ação e execução de uma prática por parte de um indivíduo sempre se dá em meio a uma configuração desses arranjos materiais, que adquirem significado e identidade. As práticas, então, acontecem em meio aos arranjos materiais e são moldadas de várias maneiras por eles. Da mesma maneira, os arranjos são configurados e alterados pelas práticas (SCHATZKI, 2003). Daí o entendimento de que o contexto social (e, por consequência, a coexistência humana) é um emaranhado de práticas e arranjos materiais (SCHATZKI, 2003, 2005, 2006).

Mas, o que significam as práticas? A vida social é guiada e permeada por uma gama de práticas, como práticas políticas, práticas de negociação, práticas de gerenciar, práticas de cozinhar, práticas de educação, práticas médicas etc. Elas correspondem a um nexo organizado de atividades em constante desdobramento, dentro de determinado tempo e espaço, já que as ações dos indivíduos estão continuamente perpetuando e ampliando as práticas (SCHATZKI, 2002). Sendo assim, elas são compostas por dois elementos básicos: ação e organização.

As ações ou atividades, de acordo com Schatzki (2002, 2003), se dão diretamente pelo “emaranhado” de ações corporais (doings) e dizeres (sayings). Os doings correspondem às ações básicas desenvolvidas pelos sujeitos por meio de seus corpos, inclusive das extensões destes. Tratam-se de situações em que as pessoas correm, acenam, lançam, e assim por diante, a partir de seus braços, pernas, bocas, bengalas, óculos etc. Já os sayings, na visão do autor, são subconjuntos dos doings, sendo consideradas ações básicas que querem dizer algo, mas não necessariamente precisam envolver a fala, pois simples piscadelas ou o balançar a cabeça podem dizer muitas coisas, a depender do contexto. Portanto, doings e sayings são dois elementos que se referem a dinâmicas interligadas que, quando performadas em contextos particulares, podem adquirir significados completamente diferentes.

Sendo assim, uma atividade básica pode, de maneira simultânea, ser realizada em muitos contextos e constituir ações de ordem superior. Em outras palavras, a prática engloba atividades hierarquicamente organizadas, que se modificam e se reorganizam constantemente e de maneira irregular. Isso permite afirmar, portanto, que a configuração de atividades em torno dos sayings e doings não ocorre de maneira isolada, posto que as práticas não envolvem apenas padrões comportamentais, movimentos com o corpo ou manipulação de artefatos, mas também entendimentos, interpretações, emoções e finalidades (RECKWITZ, 2002; SCHATZKI, 2002; SANTOS; ALCADIPANI, 2015).

Além disso, as práticas podem tanto se sobrepor como se conectar. Elas se sobrepõem quando determinadas ações (fazeres e dizeres) são parte de duas ou mais práticas ou quando as práticas compartilham os mesmos elementos, só que estes aparecem em diferentes emaranhados de práticas e arranjos materiais (SCHATZKI, 2002, 2003, 2005). Em contrapartida, o autor destaca que as práticas se conectam quando as ações de diferentes práticas formam cadeias e são performadas no mesmo

conjunto de arranjos materiais. Podem também se conectar quando as ações de uma prática são objetos dos estados mentais (como as crenças) dos participantes de outra prática (SCHATZKI, 2003, 2005).

Nesse ponto, é importante afirmar que as práticas não são estáticas, pois elas englobam fazeres/dizeres, projetos e tarefas que são (ir)regulares, únicos ou ocasionais e em constante processo de mudança (SCHATZKI, 2002). Por isso, as práticas se desenvolvem na medida em que, por exemplo, circunstâncias mudam, oportunidades e problemas aparecem, novas ideias emergem e mudanças pessoais ocorrem (SCHATZKI, 2005). Ademais, segundo o autor, as mudanças dos emaranhados de práticas e arranjos materiais podem ser intencionais ou não e conhecidas ou não pelos indivíduos.

Até aqui, a ação, como um dos elementos das práticas, foi mais explorada. É preciso discutir, ainda, a dimensão da organização, questionando: como as práticas se organizam? De maneira inicial, é possível destacar que a articulação das atividades (sayings e doings) se dá por meio da junção de três fenômenos que englobam a estrutura de governança, também entendida como organização das práticas. O primeiro refere-se aos entendimentos das ações que constituem as práticas. O segundo diz respeito às regras (diretrizes, instruções ou advertências) que os participantes, na prática, observam ou rejeitam. Com relação ao terceiro fenômeno, tem-se a estrutura teleoafetiva, que é formada por finalidades, projetos, ações e emoções (SCHATZKI, 2006). De acordo com Santos (2014), esses três fenômenos estão por trás dos dizeres e fazeres, o que não significa afirmar que exista apenas um conjunto de entendimentos, regras e estruturas teleoafetivas, já que eles mudam constantemente no dia a dia. Ou seja, assim como os dizeres e fazeres são performados, regras, estruturas teleoafetivas e entendimentos também o são (SANTOS, 2014).

Nesse sentido, os sujeitos apenas são praticantes de uma prática na medida em que performam ações que fazem parte de um nexo de atividades organizadas por um conjunto interligado de entendimentos, regras e estrutura teleoafetiva (SCHATZKI, 2002). Assim, Schatzki (2005) destaca que a execução de variadas práticas requer dos sujeitos basearem-se em entendimentos adquiridos, na aquisição de novos entendimentos, e em tornarem-se familiares com as diferentes regras, fins, projetos e equipamentos que surgem nas novas malhas de arranjos e práticas. No entanto, com

vistas a melhor entender esses elementos, o tópico a seguir tem como foco aprofundar a discussão de como as práticas se organizam.