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KRATIADIVERSIDADE

A construção da síntese intuída por Milton Santos pode pleitear sua inserção crítica em um contexto mais amplo: o projeto de Reinvenção da Emancipação Social, tal como formulado por Boaventura de Sousa Santos (2006; 2007). O autor propõe estruturar essa possibilidade em três níveis ― o epistemológico, o teórico e o político ― através de equações complementares com objetivo de conexão e sustentação de práticas emancipatórias em territórios diversos, com ênfase de observação nas experiências em países do Sul. Nesse caminho, concordando com os objetivos e mesmo fazendo uso da estrutura teórica do projeto, pretendo desenvolver alguns termos destas equações, visando propiciar melhores condições de viabilidade para os experimentos sociais aqui estudados. Neste sentido, apresento uma questão que tenta, seguindo o autor, “[…] incidir mais sobre o que nos une do que sobre o que nos separa” (SANTOS, 2006, p. 38-39).

[…] temos hoje muitas teorias e práticas de separação e de vários graus de separação. Pelo contrário, carecemos de teorias para unir e

esta carência torna-se particularmente grave num momento de perigo. A gravidade desta carência não está nela mesma, mas no fato de coexistir com uma pletora de teorias da separação. O que é grave é o desequilíbrio entre as teorias da separação e as teorias da união. (SANTOS, 2006, p. 84).

Uma teoria e prática de união que hoje se façam úteis pressupõem, como já observa o autor, o reconhecimento da diversidade do mundo como valor intrinsecamente positivo. Não se trata aqui, portanto, da tentativa de abolição ou desconsideração das fronteiras entre os diversos planos e campos, mas, ainda seguindo sua proposta original, de conceder maior atenção às aberturas que aos limites, ou à valorização da permeabilidade de tais fronteiras.

A fronteira coloca-se a frente (front), como se ousasse representar o começo de tudo onde exatamente parece terminar; o limite, de outra parte, parece indicar o fim do que estabelece a coesão do território. O limite, visto do território, está voltado para dentro, enquanto a fronteira, imaginada do mesmo lugar, está voltada para fora, como se pretendesse a expansão daquilo que lhe deu origem. O limite estimula a ideia sobre a distância e a separação, enquanto a fronteira movimenta a reflexão sobre o contato e a integração. (HISSA, 2002, p. 34).

A adoção deste conceito de fronteira permite verificar o que parece ser um primeiro desvio em relação ao projeto original de Boaventura de Sousa Santos, concebido a partir da reflexão sobre a experiência dos diversos movimentos e organizações responsáveis pelas sementes do que seria a globalização contrahegemônica, que se manifestaria, em potência, na experiência do Fórum Social Mundial. Tal como apresentado, o chamado à união neste projeto não se faz de forma indiscriminada; antes, se dirige àqueles que já se identificam em um mesmo campo ampliado que, apesar da enorme diversidade interna, se reconhecem na divergência em relação ao modelo hegemônico de globalização conservadora. Este projeto não parece, portanto, se abrir, de início, a possibilidades de intercâmbio com territórios tidos como adversários — ou mesmo inimigos — na arena política. Parece tratar-se, antes, da proposta de uma ambiciosa aliança, baseada na intenção de solidariedade limitada, nos termos de Cássio Hissa, entre potenciais aliados, para o enfrentamento democrático do

campo político conservador ― o que explica a ausência de qualquer aceno para fora do território aliado, em busca de conversas, ou negociação de qualquer acordo.

Ora, das “[…] áreas temáticas em que mais claramente se condensam os conflitos Norte-Sul […]” identificadas por Boaventura de Sousa Santos,95 nossa investigação se interessa por — e participa de — experiências de “proteção da

biodiversidade e diversidade epistêmica do mundo”.Da lista apresentada pelo autor, este é o único tema em que se verifica alto risco de irreversibilidade nos casos de perdas — que continuam a ocorrer de forma acentuada. Por qualquer ângulo que se veja, portanto, o tema demanda uma urgência e uma prioridade inusitadas. A observação de George Martine (1993, p. 23-24), em relação à biodiversidade, certamente também é válida para o caso da perda de etnias, línguas, saberes e conhecimentos. Para ele, em qualquer hierarquia em que se enquadrem os problemas ambientais, a abordagem de fenômenos que implicam em “danos irreversíveis e irreparáveis para a humanidade” devem estar no topo da lista, como as que demandam maior celeridade e efetividade.

O primeiro desvio surge, portanto, de uma situação de fato em relação à área temática, que se soma à urgência por ela determinada: a diferença de crenças, interesses e atitudes dos vizinhos, além-fronteiras, cuja participação, no entanto, é tão urgente quanto incontornável. O tema exige que os protagonistas dos experimentos se dirijam, de imediato, a sujeitos e territórios adversários, quando não inimigos, na disputa política. Ora, como efetivar tal aproximação estratégica, incontornável, de outra forma que não seja pacífica? A interrogação e a proposta de solução aqui apresentadas se dirigem, portanto, não apenas aos que atuam nestes experimentos ou aos sujeitos de conhecimento que tratam da emancipação, mas a um outro que não se reconhece, de início, com as mesmas preocupações, princípios e intenções desses nossos campos. Trata-se, assim, de um projeto de visita, encontro, escuta, diálogo e negociação, que inclui o suposto oponente como interlocutor privilegiado, com o objetivo de se chegar a

95 “[…] democracia participativa; sistemas de produção alternativos e economia solidária;

multiculturalismo, direitos coletivos, pluralismo jurídico e cidadania cultural; alternativas aos direitos de propriedade intelectual capitalistas e proteção da biodiversidade e diversidade epistêmica do mundo; novo internacionalismo operário” (SANTOS, 2006, p. 93).

um acordo mínimo — provavelmente de âmbito restrito, mas, necessariamente, de interesse comum: algo mais próximo de um pacto que de uma aliança.

Nesse caminho, voltamos nossa atenção para o projeto de reinvenção proposto, no ponto em que este se manifesta como crítica da racionalidade moderna — ou dos componentes que a tornam razão indolente — estruturada como críticas da razão

metonímica e da razão proléptica. Tais figuras não seriam componentes de um mero

“[...] artefato intelectual ou um jogo, mas a ideologia subjacente a um brutal sistema de dominação, o sistema colonial” (SANTOS, 2006, p. 98). A esta razão indolente é proposta a alternativa da razão cosmopolita:

[…] procedo a uma crítica deste modelo de racionalidade a que, seguindo Leibniz, chamo razão indolente e proponho os prolegômenos de um outro modelo, que designo como razão cosmopolita. Procuro fundar esta […] em três procedimentos meta-sociológicos: a sociologia das ausências, a sociologia das emergências e o trabalho de tradução. (SANTOS, 2006, p. 94)

A sociologia das ausências, resultado da crítica da razão metonímica, afirma que “o que não existe” é, na verdade, “[...] produzido [...] como não existente [...]”, como “[...] alternativa descartável, invisível à realidade hegemônica do mundo.” (SANTOS, 2007, p. 29) Ao identificar cinco modos de produção de ausências, ou monoculturas, o autor propõe a alternativa de cinco ecologias,96 que se manifestam, simultaneamente, como processos de ruptura e aproximação: ruptura com o pensamento único, com as hierarquias, por ele produzidas, em relação aos demais modos de existência;

96

À monocultura do saber e do rigor, que considera a ciência moderna como única forma válida de conhecimento, se oporia a ecologia dos saberes, a promoção de um reencontro produtivo da ciência com a diversidade epistemológica do mundo. A monocultura do tempo linear, geradora de uma assimetria entre povos desenvolvidos e atrasados, seria contraposta à ecologia das temporalidades, que permitiria a expansão do presente no reconhecimento de novas constelações temporais. A monocultura da

naturalização das diferenças, na qual a cada diferença corresponde uma hierarquia, seria superada pela ecologia do reconhecimento, processo de descolonização das mentes que permitiria aceitação das

diferenças após o descarte das hierarquias. A monocultura da escala dominante, que privilegia o universal e o global sobre as demais escalas geográficas, se opõe a proposta de uma ecologia da transescala, a possibilidade de articular os projetos de emancipação simultaneamente em níveis locais, nacionais e global. A monocultura do produtivismo capitalista, em que a noção de crescimento e a exigência de eficiência, tanto do trabalho humano como da natureza, descartam modos alternativos de produção, teria como oponente a ecologia das produtividades, a valorização dos sistemas “[...] que a ortodoxia produtivista capitalista ocultou ou desacreditou” (SANTOS, 2007, p. 36).

aproximação, tradução, diálogo e solidariedade entre iguais — no sentido do poder, certamente, o que traz a questão das ecologias propostas, em todas as suas manifestações, para o território da política.

Se a crítica da razão metonímica tem por objetivo uma “dilatação do presente” e de suas possibilidades, pela revelação da diversidade de alternativas e experiências disponíveis para a razão cosmopolita, a crítica da razão proléptica, configurada como

sociologia das emergências, possibilitaria uma “contração do futuro”, tornando-o não

mais infinito e igual como apresentado pela razão indolente, mas diverso e escasso, de tal forma que se convertesse em “objeto de cuidado” (SANTOS, 2006, p. 116).

Emergências seriam as tentativas “simultaneamente utópicas e realistas”,

constituídas no presente, para construção de outros mundos possíveis (SANTOS, 2006, p. 116). A reflexão sobre as emergências demanda uma atenção generosa para o desenho de histórias alternativas, de geografias diversas das prescritas pelo paradigma hegemônico.

Tentaremos ver quais são os sinais, as pistas, latências, possibilidades que existem no presente e que são sinais do futuro, [...] “descredibilizadas” porque são embriões [...]. Entre o nada e o tudo [...] eu lhes proponho o ‘ainda não’ [...] conceito [...] de [...] Ernst Bloch. Não se trata de um futuro abstrato [...]; temos gente envolvida, dedicando sua vida [...] a essas iniciativas. (SANTOS, 2007, p. 37-38)

Boaventura de Sousa Santos identifica cinco campos sociais com maior chance de manifestação de emergências, cada qual abrigando conflitos e diálogos possíveis: entre as diversas formas de conhecimento, os diversos modos de produção, os diferentes sistemas de classificação social, as múltiplas tecnologias de comunicação/informação e, o que aqui nos interessa especialmente, entre a forma hegemônica de democracia (representativa liberal) e a democracia participativa. Cabe notar, aqui, tanto a correspondência parcial destes campos com as cinco ecologias, quanto a pequena diversidade das formas emergentes de poder.

As outras formas de democracia desapareceram, não se fala mais delas. [...] assim como temos biodiversidade e vamos perdendo,

perdemos “demodiversidade”: perdemos a diversidade das formas democráticas alternativas em que o jogo, a competição entre elas de alguma maneira dava força à teoria democrática. (SANTOS, 2007, p. 87)

Mesmo considerando que no âmbito da democracia participativa o autor esteja incluindo as outras formas adjetivas e campos teóricos presentes no debate sobre a democracia — radical, forte, unitária, consensual, deliberativa, associativa, randômica… — não seria plausível pensar que à diversidade do mundo corresponderia uma ainda maior diversidade de modos de decisão, de exercício coletivo de poderes — ou de modos de governo? Claro que tal proposição implicaria no problema da aceitação de regimes tirânicos ou minoritários (aristocráticos, plutocráticos, burocráticos ou tecnocráticos...). Por outro lado, o fato de ser “governo do / pelo povo” não garante, tampouco, na democracia, a ausência da dominação sobre minorias ou a desconsideração de interesses derrotados, tal como na ditadura da maioria imaginada por Tocqueville (1998). Partamos do princípio, portanto, de que formas minoritárias ou autoritárias de decisão não sejam legítimas em nossa reflexão, e retornemos à pergunta: seria possível a existência de modos de reflexão, decisão, ação e governo, legítimos, justos e pacíficos, que não sejam democráticos, mesmo no sentido mais amplo que encontramos no debate moderno e contemporâneo? Esta reflexão pretende defender que sim.

Quando Boaventura de Sousa Santos (2007, p. 62) afirma que sua definição de democracia refere-se à substituição “[...] de relações de poder por relações de autoridade compartilhada [...]”, ele se baseia em uma noção de poder que termina por restringir o potencial de sua reflexão: “A um nível muito geral, o poder é qualquer relação social regulada por uma troca desigual” (SANTOS, 2001, p. 266). Ao fundar o conceito de poder apenas na desigualdade, o autor não consegue resolver a equação emancipatória — pois não existiria outro tipo de poder, ou poderes, nas “relações de autoridade compartilhada”? A defesa de uma resposta positiva a esta questão implica em admitir a possibilidade de outro fundamento para a política — ou o princípio fundador de outra política. Seja como for, trata-se, aqui, da revelação de outro conceito

de poder, fundada não apenas na desigualdade, mas, principalmente, naquilo que se

encontra na própria gênese de toda desigualdade e dominação: a violência.

Encontramos na crítica do poder-violência (gewalt), efetuada por Walter Benjamin, a iluminação de um caminho que avança no sentido oposto ao do paradigma ocidental moderno.97 Ali nos deparamos com a proposição de que a violência é o princípio fundador do direito e do Estado, bem como de todas as instituições jurídicas, formas de representação, leis e contratos. Seria a violência, no entanto, a única possibilidade de fundamento da política? Em suas palavras: “[…] a solução não violenta de conflitos é em princípio possível? Sem dúvida. […] Um acordo não violento encontra- se em toda parte, onde a cultura do coração deu aos homens meios puros para se entenderem.” (BENJAMIN, 1986, p. 168). O autor intui, portanto, a possibilidade de outras formas de poder advindos de outras qualidades humanas, exercitadas na vida cotidiana.

Aos meios legítimos e ilegítimos de toda espécie — que são todos expressões de violência — podem ser confrontados […] meios puros e não violentos. A atenção do coração, a simpatia, o amor pela paz, a confiança […] são seu pressuposto subjetivo. […] a técnica, no sentido mais amplo da palavra, é sua área mais própria. Seu exemplo mais profundo talvez seja a conversa, considerada como uma técnica de mútuo entendimento civil. (BENJAMIN, 1986, p. 168)

Confiança, paz, simpatia, atenção do coração, entendimento — conversa: expressões de uma “pureza” humana que não se compatibilizaria com qualquer tipo de

violência-poder, a tal ponto que a presença de uma implicaria na ausência da outra.

Onde poderíamos encontrar tais potências humanas efetivamente realizadas? Uma inversão de ponto de vista permite a repetição da mesma pergunta de uma forma que facilita sua resposta em termos políticos. Qual a manifestação da vida humana que sempre se mostrou (e ainda hoje se mostra) irredutível a qualquer lei, forma de representação ou contrato, que se aparta de tal forma do estado e direito modernos,

97 “Crítica da Violência — Crítica do Poder”. Quando se refere ao título original, “Zur Kritik der Gewalt”, os

tradutores apontam para o duplo significado de gewalt — poder e violência —, o que permite a Walter Benjamin o jogo de superposição da reflexão teórica com a semântica. (ver nota dos tradutores em BENJAMIN, 1986, p. 160).

que é por eles indesejada, vista como um problema, mesmo — ou principalmente — para as instituições da democracia? Em que lugar se esconderia esse paraíso libertário, capaz de escapar a todas as manifestações do poder como violência? Já ouvimos antes uma resposta plausível: “[…] a amizade é um nome sagrado, é uma coisa santa […], cuja verdadeira presa é a igualdade […]” (BOÉTIE, 1987, p. 35).

Aos meios humanos “puros” de Walter Benjamin se somaria a exigência da

igualdade como fundamento, na revelação da dimensão política da amizade, tal como

propõem Claude Lefort (1987) e Marilena Chauí (1987) nas suas leituras do Discurso

sobre a servidão voluntária, de Etienne de La Boétie (1987). Não seria, portanto, mais

razoável ancorar o reconhecimento, a compreensão, solidariedade e cooperação entre povos e indivíduos — mesmo quando adversários —, bem como o encontro de saberes, temporalidades, escalas e diferentes modos de produção, além do diálogo, do entendimento e do próprio trabalho de tradução, em um conceito de poder que tem na

amizade seu principal fundamento? Não seria ela, a amizade, o único sentido do compartilhamento da autoridade que se oporia às formas hegemônicas de poder,

reguladas pela troca desigual, vinculadas à dominação?

Tal questionamento permite a adoção do próprio procedimento da sociologia

das ausências para identificação de outra manifestação estrutural da razão metonímica:

a monocultura da violência. Em suas formas mais brandas, esta se manifestaria, nas ciências — biológicas, políticas, sociais, econômicas e da cognição — através das ideias de competição, concorrência e luta, na natureza, na sociedade, no mercado e na política, vinculadas às noções de evolução, desenvolvimento e progresso, das quais tampouco escapa a dialética do materialismo histórico. Nas suas formas mais bárbaras, nos modos apegados à sua origem profunda, na própria origem mesma do colonialismo, é possível enxergar, por trás das máscaras atenuadoras da ciência e da política modernas, o rosto do paradigma da guerra, como modo exclusivo de atuação coletiva, no qual as noções de vitória, derrota, aniquilamento e extinção (assim como militância,

resistência e luta) ocupam lugar de destaque. Tal monocultura terminaria por invalidar

todas as formas não competitivas de ação (“ingênuas, ineficazes, utópicas, impotentes…”), ou por produzir a inexistência de formas alternativas — pacíficas,

amistosas, igualitárias, livres e autônomas — disponíveis para a atuação social

emancipatória.

No próprio campo da reflexão contra-hegemônica, esta monocultura se manifestaria nas correntes que tratam o conflito como modo exclusivo para reflexão e ação progressista. Tal consideração se associa a outro aspecto do pensamento hegemônico, que enxerga o poder como algo que incide, de fora e de cima, sobre o cidadão, a quem caberia apenas papéis reativos em relação aos campos e fluxos dominantes. A tal concepção de poder-violência corresponde o conceito passivo da cidadania moderna, de um cidadão em regime de desigualdade original, sempre inferior a um outro soberano, mesmo quando em estado de direito. No paradigma da violência, caberia ao cidadão comum decidir apenas entre formas conservadoras de alienação ou participação, quando sustentaria com seu apoio e concordância o “sistema” vigente, ou a submissão, rebeldia, resistência e luta, em caso de discordância.

Em tempos de transição paradigmática, torna-se legítimo buscar outros modos de reflexão e atuação emancipatória disponíveis para exercício simultâneo de outras formas de poder: se a monocultura da violência produz a ilusão de invisibilidade de outras formas de libertação, mesmo nos campos progressistas, uma ecologia dos

poderes poderia pleitear seu lugar no projeto, de forma a resgatar modos de atuação

deixados ao largo no caminho hegemônico da reflexão política moderna, como ruínas.98 Visto que, nas cinco ecologias originais, a questão do poder é central para os procedimentos de ruptura e diálogo, não será necessário advogar aqui a existência de uma sexta vertente paralela: tal ecologia dos poderes, caso possa ser útil — ou venha a ser necessária —, deveria ter, também, uma incidência transversal em relação às demais, sendo a conversa e a tradução, tal como propostas por Walter Benjamin e Boaventura de Sousa Santos, os principais modos políticos de intermediação / integração entre as diversas partes, campos e fluxos.

98 Ao Angelus Novus, livre do constrangimento imposto pelo progresso (BENJAMIN, 1994, p. 226), seria

possibilitado juntar os fragmentos das concepções políticas mais generosas — do pensamento ameríndio, do humanismo republicano, dos socialismos utópico e libertário, da ahimsã e satyãgraha tradicionais retomadas por Gandhi, da cultura da paz preconizada pela UNESCO, senão das próprias ideias de perdão e amor incondicional cristãs, responsáveis por alguns dos fluxos históricos mais poderosos — alguns deles

Por outro lado, do ponto de vista da sociologia das emergências, a possibilidade de uso concomitante desses modos de reflexão e atuação alternativos, associados aos modos hegemônicos, é a que possibilita a ampliação da idéia de demodiversidade competitiva, na direção da constelação de poderes e autoridades compartilhadas, para usar os termos de Boaventura de Sousa Santos, traduzida para a noção de

kratiadiversidade. O que se apresenta aqui, portanto, como hipótese derivada, é a insuficiência da democracia, ou da exclusividade do modo democrático, para realização,

seja de interesses públicos efetivos, seja de qualquer utopia. Pretendemos avançar, aqui, na direção de uma proposta capaz de responder positivamente ao questionamento com que Henri David Thoreau finaliza seu discurso em defesa da desobediência civil:

Será a democracia, tal como a conhecemos, o último aperfeiçoamento possível como modo de governo? Não é possível avançar um passo no sentido de reconhecer e organizar os direitos do homem? Nunca haverá um Estado realmente livre e esclarecido até que ele venha a reconhecer na pessoa um poder maior e independente, do qual todo seu próprio poder e autoridade são derivados, e assim a trate

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