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T ERRITÓRIOS , P E SCALAS , P I NTERSTÍCIOS P

A possibilidade do exercício compartilhado de poderes para realização de interesses públicos parece demandar, tal como as demais formas de exercício de poder, tanto uma delimitação política do espaço ― um território ― quanto uma ordem de grandeza geográfica, um parâmetro de medida, um ajuste de foco: uma escala. O primeiro problema, por si só, já coloca para esta pesquisa uma questão de grande complexidade: o reconhecimento da existência simultânea de múltiplos territórios, ora sobrepostos ou concorrentes, ora divergentes e incongruentes.

Vinculados a múltiplos sistemas de saber, de diferentes modos de apropriação dos lugares, a noção de território não se desconecta jamais de seu fundamento político, por sua vez explicitado na proximidade etimológica identificada por Rogério Haesbaert (2007): simultaneamente “terra-territorium” e “térreo-territor” (terror, aterrorizar). Assim, na raiz deste conceito de delimitação espacial, encontramos juntos o poder e a violência, a que tanto se submetem seus ocupantes ― que também, correntemente, o

praticam ―, para garantia de uma determinada ordem interna, quanto com o que se ameaça os outros de fora, os estrangeiros, para garantia de uma ordem externa. Território se refere, inicialmente, portanto, a um estado, em sua forma hegemônica de existência na modernidade, bem como a um modo de dominação e exercício de governo específico ― centralizado, exclusivo, compreensivo.

Nosso estudo, no entanto, busca encontrar outro conceito de poder compatível com outros modos de governo, não necessariamente vinculados à violência, o que exige uma abordagem mais plural do que o simples reconhecimento do território tal como entendido pelo paradigma da geografia política moderna: espaço de domínio do estado capitalista, conjugado com o princípio da propriedade privada da terra.

O território, como espaço dominado e/ou apropriado, manifesta hoje um sentido multi-escalar e multi-dimensional que só pode ser devidamente apreendido dentro de uma concepção de multiplicidade, tanto no sentido da convivência de "múltiplos" (tipos) de território quanto da construção efetiva da multiterritorialidade. Toda ação que se pretenda efetivamente transformadora, hoje, necessita, obrigatoriamente, encarar esta questão: ou se trabalha com a multiplicidade de nossas territorializações, ou não se alcançará a transformação que almejamos. […] Geograficamente falando, pensar multiterritorialmente significa pensar tanto em múltiplos poderes (ou "govemanças") quanto em múltiplas identidades (em espaços culturalmente mais híbridos) e mesmo em múltiplas funções (a "multifuncionalidade" econômica) […]. (HAESBAERT, 2007, p. 43)

Ao conceito de multiterritorialidade apresentado por Rogério Haesbaert parte, portanto, do reconhecimento da existência simultânea de diferentes modos de

habitação pol-tica do espaço ― territorializações, nos termos do autor ― consCtuindo

as diferentes lógicas do exercício de poderes que configuram a multiplicidade de territórios em uma região determinada. Na região do Extremo Sul da Bahia, por exemplo, é possível a identificação de coexistência de, pelo menos, nove destes diferentes modos:

1. Modo estatal, a forma hegemônica de delimitação política territorial, determinada pelo Estado em suas diversas manifestações: unidades

federativas (União, estados e municípios), regiões de planejamento (Extremo

Sul da Bahia, dividido em Costa das Baleias e Costa do Descobrimento), conjuntos de bacias hidrográficas (RPGAs), Unidades de Conservação (UCs) e Terras Indígenas (TIs), estas aqui consideradas em seu sentido restrito, delimitado pela legislação: terras pertencentes à União para usufruto de grupos e povos indígenas.

2. Modo urbano stricto sensu, a que corresponde à lógica hegemônica de habitação do espaço pela sociedade brasileira, a partir da segunda metade do século XX: metrópoles e cidades, distritos e pequenos núcleos urbanos ou semi-urbanos, submetidos às diversas lógicas de exercício de poderes ― em convívio / conflito com a estatal ―, superpostas, por sua vez, em um intrincado palimpsesto de territorialidades determinadas por diferentes classes, setores econômicos, etnias, gêneros, instituições, grupos e movimentos sociais que coabitam a cidade.

3. Modo rural capitalista da propriedade privada, a que corresponde à lógica hegemônica de uso e ocupação de terras no “campo”: a grande propriedade monocultora do capitalismo avançado, controlada por empresas (produtoras de celulose, no caso da região), a propriedades rural tradicional, familiar, geralmente também dedicada a monoculturas em menor escala.

4. Modo rural familiar, da pequena propriedade dedicada à agricultura de subsistência e produção básica de alimentos para o mercado local.

5. Modo rural socialista da propriedade coletiva, a que corresponderia a uma lógica contra-hegemônica de uso e ocupação de terras: territórios determinados por invasões, acampamentos, assentamentos e “expropriações” promovidas por movimentos sociais organizados ― na região: MST, MLT e CONTAG.93

6. Modo ambientalista, a que corresponderia a uma lógica “naturalista” de territórios determinados tanto por formações biológicas “originais” quanto

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MST: Movimento dos Sem Terra; MLT: Movimento de Luta pela Terra; CONTAG: Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura.

por lógicas de estudo e intervenção a elas vinculados: domínios, biomas, ecossistemas, nichos, bacias hidrográficas, hotspots e corredores ecológicos. 7. Modo patrimonialista ― ou canônico, tal como definido por Boaventura de

Sousa Santos (2006, p. 76-77) ― a que corresponderia a uma lógica de determinação de territórios tombados, vinculados à idéia de herança ― “material” ou “imaterial”, “cultural”, “natural”, “histórica” ou “artística” ― seja da sociedade brasileira, seja da humanidade: Sítio do Patrimônio Mundial Natural, Reserva da Biosfera, Sítio do Patrimônio Histórico Nacional do Descobrimento, núcleos “históricos” de cidades e vilas.

8. Modo comunitário, ainda presente em algumas comunidades nativas e quilombolas, determinado pelo uso compartilhado para atividades extrativistas de espaços tradicionalmente “sem donos” ― florestas, rios e mangues, além do próprio mar.94

9. Modo ind-gena, a que corresponderia a uma lógica determinante de amplas extensões territoriais originais ainda reconhecidas por alguns destes povos. Tais territórios não se confundem com as atuais “reservas indígenas”, determinadas pela mesma configuração e limites rígidos das propriedades rurais privadas, pelas quais estão cercadas.

Se a superposição conflituosa destas lógicas conforma o paradigma não hegemônico da multierritorialidade, a questão que aqui nos interessa é a possibilidade da existência de um território comum para o exercício de formas compartilhadas de habitação e co-gestão, nos interstícios deste embate. Tal existência deve, necessariamente, ser complementada pela possibilidade de manifestação de interesses comuns entre alguns dos modos ― ou mesmo de interesses consensuais, comuns a

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No início da década de 1980 ainda era possível conhecer algumas “terras sem dono”, em que se observava o uso compartilhado do solo também para atividades agropecuárias ― roças e pastos comunitários ― além de áreas sem uso econômico específico (areais, muçunungas, campos de

mangabas…) posteriormente “invadidas” e “loteadas” para venda aos “turistas”, junto às vilas históricas

da região. Alguns desses espaços sobrevivem na região como exceção à regra geral da propriedade privada, tanto nas terras indígenas quanto em antigas posses familiares coletivas de pequenos grupos nativos.

todos os modos —, de tal forma que pudesse ser considerada como interesse público efetivo.

A segunda demanda colocada para o comparClhamento de poderes ― escalas ― é também objeto de acalorado debate no âmbito das teorias de ação social e atuação política. A porta de entrada neste debate é o lugar, espaço banal do cotidiano e do

habitar, como o tratam Milton Santos (1994) e Henri Lefebvre (1999). Do outro lado da

escala, o global é colocado como oposição óbvia, sendo que, em diversos autores, pelo menos um nível intermediário se apresenta entre os dois supostos opostos. O exercício do poder estaria, portanto, determinado pelas escalas ou níveis em que ― ou onde ― são exercidos. A escala do lugar é a única em que a reflexão teórica contemporânea admite a possibilidade da existência de um poder coletivo imediato ― ou de um

dom-nio apartado da noção de dominação. Por isso, vários autores investem nessa

escala, no nível do cotidiano, ou do habitar, como possibilidade de resistência à ordem do global, do transnacional.

Henri Lefebvre (1999, p. 77-82), por exemplo, define três níveis ou dimensões do fenômeno urbano: um nível global, um nível misto e um nível privado (G, M e P). No nível global se exerceria o poder político ― nível do Estado, das relações mais gerais e abstratas, do mercado de capitais, da política do “espaço institucional”, do global. O nível M (“misto, mediador ou intermediário”) seria aquele da cidade, na forma como a entenderia o senso comum, o nível “especificamente urbano”. Mas é no nível P “[...] considerado (equivocadamente) modesto, senão negligenciável [...]” que encontramos de imediato a possibilidade de manifestação de uma forma de poder cotidiana, disponível como possível modelo de gestão compartilhada de um determinado espaço. Ao contrapor o habitar ao habitat, Lefebvre sai em defesa do primeiro, acusando no segundo o caráter redutor que reduziria o “ser humano” a alguns “atos elementares”: comer, dormir, reproduzir-se.

Para reencontrar o habitar e seu sentido, para exprimi-los, é preciso utilizar conceitos e categorias capazes de ir aquém do “vivido” do habitante em direção ao não-conhecido e ao desconhecido da coCdianidade ― e além, em direção à teoria geral, à filosofia e à metafilosofia. Heidegger assinalou o caminho dessa restituição ao

comentar as palavras esquecidas ou incompreendidas de Hölderlin: “O homem habita como poeta.” Isso quer dizer que a relação do “ser humano” com a natureza e com a sua própria natureza, com o “ser” e seu próprio ser, reside no habitar, nele se realiza e nele se lê. [...] O “ser humano” [...] só pode habitar como poeta. Se não é dado, como oferenda e dom, uma possibilidade de habitar poeticamente ou de inventar uma poesia, ele a fabricará à sua maneira. (LEFEBVRE, 1999, p. 81-82)

A recriação poética do espaço habitado pelo homem, “fabricada à sua maneira” desde o próprio corpo até as fronteiras do lar, ultrapassando-as em direção dos espaços vizinhos, seus lugares cotidianos, pode ser considerada como uma manifestação original do poder do cidadão sobre aquilo que lhe compete ― sua vida. Nesse nível, o paradigma dominante de exercício do poder encontra certa dificuldade para se impor como teoria absoluta, o que quer dizer que a contestação teórica da existência de outra forma de poder, que não passe pela violência e derrota do outro, se torna também mais problemática. Na escala do lugar, as potências poéticas do afeto, amizade, reconhecimento, cooperação e solidariedade ganham chance de existência. É, portanto, no nível do habitar lefebvriano, que encontramos vivo, abrigado e protegido, o poder

imediato da cidadania. No lugar habitado não se fala apenas de luta e resistência: ao

cidadão habitante interessa antes a arte ― criação e fruição, reinvenção do mundo no ato poético — de ler e escrever a própria vida.

Tal condição do lugar não significa isenção de perigos: a colonização do espaço- tempo cotidiano, a transformação dos lugares, da vida afetiva e das relações de reconhecimento e solidariedade em mera repetição de ações produtivas, é uma ameaça constante desde o surgimento da moderna cidade industrial. A tentação de equacionar uma forma de resistência contra-hegemônica fundada no conceito de identidade não parece ser, no entanto, um caminho profícuo. A valorização da identidade local coloca em risco a possibilidade da assimilação solidária do outro, transformado em estrangeiro, imigrante, outro adversário (se não outro inimigo) para aplicação do paradigma dominante de poder.

[...] há, no momento, um recrudescimento de alguns sentidos muito problemáticos de lugar, dos nacionalismos reacionários aos localismos

competitivos ou às obsessões introvertidas com a “herança”. Precisamos, portanto, pensar no que pode ser um sentido adequadamente progressista do lugar, aquele que seria adequado aos tempos globais-locais atuais e aos sentimentos e relações que esses tempos fazem emergir, e que seriam úteis no que são [...] disputas políticas muitas vezes baseadas no lugar. A questão é de que modo manter a noção de diferença geográfica, de singularidade e até mesmo de enraizamento, se as pessoas o quiserem, sem ser reacionário. (MASSEY, 2000, p. 181-182)

Doreen Massey coloca com precisão a necessidade de manutenção da singularidade, essencial como alternativa à real ameaça de padronização do mundo, sem que isso signifique a construção de novos muros e limites identitários, demarcações simbólicas significativas de “[...] uma outra maneira de construir uma contraposição entre ‘nós’ e ‘eles’.” (MASSEY, 2000, p. 182). Tal posicionamento pode ser considerado como pré-requisito para uma formulação de poder local articulado a escalas globais.

A articulação desse poder habitual, que nasce do próprio hábito de exercê-lo no cotidiano, de forma transescalar, exige a extensão da inversão originalmente proposta para as demais escalas de manifestação de poder. Tal como afirma Milton Santos, “Por enquanto o lugar [...] é a sede dessa resistência da sociedade civil, mas nada impede que aprendamos as formas de estender essa resistência às escalas mais altas.” (1994. p. 19) O autor ainda identifica o lugar como a única possibilidade de abrigo de relações

horizontais, de vizinhança e afetividade cotidiana, capazes de opor resistência às formas

de relação verticais, determinadas pela escala do capitalismo global. Ao invés de se propor apenas uma resistência do / no local diante do global, mais adequado será, no entanto, propor uma habitação dessas outras escalas não locais ― isto é, a transformação poética das mesmas. Não seria esse também o sentido da procura de Doreen Massey (2002) por um conceito “progressista” do local, para articular a possibilidade de “um sentido global do lugar”?

Este poderia ser um caminho que atenderia, também, à demanda de Milton Santos, para quem deveríamos, “[...] ao pensar na construção de novas horizontalidades [...] encontrar um caminho que nos libere da maldição da globalização perversa [...] e nos aproxime da possibilidade de construir uma outra globalização, capaz de restaurar o

homem na sua dignidade.” (SANTOS, 1994, p. 20). Tal seria um caminho a ser trilhado como contra-tendência: “A tendência atual é que os lugares se unam verticalmente, e tudo é feito para isso, em toda parte. [...] Mas os lugares também podem se unir horizontalmente, reconstruindo aquela base de vida comum susceptível de criar normas locais, normas regionais [...].” (SANTOS, 1994, p. 19).

É até possível encontrar manifestações espontâneas desta expansão da lógica afetiva do lugar, vinculadas à ideia de identidade regional, tal como a do sertanejo, do catalão ou do galego, entre tantas nos muitos cantos do mundo. Tal expansão interconecta, de fato, diversas localidades em uma ordem de afetividade regional, que poderia se apresentar como candidata natural para abrigar o exercício de outra lógica de poder transescalar. Esse caminho, no entanto, não parece superar o perigo da identificação do outro como adversário-inimigo, ao contrário: é nessa instância regional, às vezes amalgamada com a ideia de pátria, que pode se manifestar com mais força a xenofobia, o racismo, entre outras formas de ódio pelo outro, “justificado” pela mesma herança identitária denunciada por Doreen Massey.

Por outro caminho, Milton Santos se mostrou atento às transformações recentes do espaço-tempo, bem como às implicações profundas no campo teórico: “[...] impõe- se uma nova situação histórica, a que ando chamando de produção da universalidade

emp-rica [...]. O mundo [...] é perceptível [...] em todos os lugares. O processo de

construção da teoria pode fundar-se [...] muito mais no empírico, no realmente existente.” (SANTOS, 2000, p. 41-42). Por este rumo, torna-se possível defender a existência de uma alternativa de atuação política e social antes difícil de ser colocada em prática: a habitação empírica e simultânea de múltiplas escalas. Milton Santos parece intuir a possibilidade e nos oferece uma interessante estrutura de reflexão, apesar de ainda submetê-la ao paradigma único do embate, no espaço intermediário entre o local e o global.

[...] encontramos no território [...] novos recortes [...] resultado da nova construção do espaço e do novo funcionamento do território, através daquilo que estou chamando de horizontalidades e verticalidades. [...] As horizontalidades serão os domínios da contiguidade, [...] lugares vizinhos reunidos por uma continuidade

territorial, enquanto as verticalidades seriam formadas por pontos distantes uns dos outros, ligados por todas as formas e processos sociais. (SANTOS, 1994, p. 16)

À dualidade horizontal-vertical Milton Santos sobrepõe um conflito supostamente existente entre dois conceitos característicos de espaços-tempo diferentes, gerados em épocas e campos teóricos também diferentes. De François Perroux, o autor retoma a ideia de espaço banal, correspondente à intimidade horizontal, por todos habitada cotidianamente, para que seja confrontada à ideia de

rede, que materializaria a verticalidade, numa geometria habitada de forma seletiva,

derivada do controle político da técnica, da política e do mercado pelas classes dominantes.

Além das redes, antes das redes, apesar das redes, depois das redes, com as redes, há o espaço banal, o espaço de todos [...] porque as redes constituem apenas uma parte do espaço e o espaço de alguns. O território, hoje, pode ser formado de lugares contíguos e de lugares em rede. São, todavia, os mesmos lugares que formam redes e que formam o espaço banal. São os mesmos lugares, os mesmo pontos, mas contendo simultaneamente funcionalizações diferentes, quiçá divergentes ou opostas. (SANTOS, 1994, p. 16)

O redesenho do território se daria como resultado da luta entre (apenas) duas lógicas contemporâneas: “A arena de oposição entre o mercado [...] e a sociedade civil [...] é o território, em suas diversas escalas.” (SANTOS, 1994, p. 19). Nesta oposição, Milton Santos parece também não enxergar outra possibilidade que não seja a do embate, o que o impede de perceber outro potencial emancipatório em seu próprio pensamento. A possibilidade de inter-relação, interdependência, ou mesmo de um acordo conceitual, entre as noções de espaço banal e de redes só não parece ser possível porque foram colocados, a priori, como opostos em um teórico campo de batalha.

Há um conflito que se agrava entre o espaço local, espaço vivido por todos os vizinhos, e o espaço global, habitado por um processo racionalizador e um conteúdo ideológico de origem distante [...] que chegam com os objetos e as normas estabelecidas para servi-los. Daí o

interesse de retomar a noção de espaço banal, isto é, o território de todos; e de contrapor essa noção à noção de redes, isto é, o território daquelas formas e normas ao serviço de alguns. (SANTOS, 1994, p. 18)

Em um trabalho mais recente, Milton Santos retorna à estrutura da dualidade em confronto, mas agora antevendo a possibilidade de sua superação dialética, vislumbrando a potência revolucionária de um terceiro termo ― sem, no entanto, explicitar os modos como esse se imporia ao paradigma dominante da dualidade.

[...] as verCcalidades perturbam as horizontalidades ― embora as horizontalidades também perturbem as verticalidades ― porque as primeiras visam à eficácia e agem com este sentido sobre as segundas. Esse jogo explica a realização do global e do local, um jogo entre o local, que busca o sentido, e o global, que busca um resultado. Acho que essa é uma porta de entrada para a discussão sobre a globalização. É igualmente a possibilidade de uma visualização de um futuro possível. É, talvez, dessa dialética que as populações retirem o entendimento de sua verdadeira situação e cobrem fôlego para ampliar seu grau de consciência. (SANTOS, 2000, p. 53-54)

Ao mencionar a demanda pela ampliação do “grau de consciência”, abre-se uma porta para a não aceitação passiva, por parte das “populações”, do paradigma exclusivo a elas imposto pela mentalidade colonizadora: a competição e a guerra como únicos caminhos possíveis de emancipação. Pois, passados mais alguns anos, não parece existir o menor sentido na limitação inicialmente imposta pelo autor, que vincula a existência de redes e da verticalidade apenas ao poder hegemônico.

A possibilidade de conexão entre as mais diversas formas de atuação política, ou de exercício da cidadania, vem se somar à possibilidade de abordagens teóricas e empíricas que não se detêm ou se limitam a alguma escala determinada. Nesse sentido, também parece caminhar a reflexão de Carlos Vainer (2002), que denuncia certa ingenuidade daqueles a que chama de “localistas” e de “globalistas”, sem esquecer dos “nacionalistas”, na disputa para a melhor resposta à sua pergunta original: “[...] qual a escala pertinente (ou prioritária), seja para a análise econômica e social, seja para a ação política eficaz?” (VAINER, 2002, p. 14). A conclusão do autor aponta um caminho

profícuo, ao identificar a insuficiência de qualquer ação que se limite a apenas uma escala determinada, voltando-se para uma proposta de estratégia transescalar.

As escalas não estão dadas, mas são, elas mesmas, objeto de confronto, como também [...] a definição das escalas prioritárias em que os embates se darão. [...] qualquer projeto [...] de transformação [...] exige táticas em cada uma das escalas em que hoje se configuram os processos sociais, econômicos e políticos estratégicos. Desta perspectiva, o que faz a força das corporações multinacionais está menos em sua globalidade que em sua capacidade de articular ações nas escalas global, nacionais, regionais e locais. (VAINER, 2002, p. 25)

Não é a toa que o exemplo das corporações deve ser invocado como demonstração de força ―, pois o que poderíamos encontrar como exemplo similar de

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