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CAPÍTULO 1. OS SERIADOS DE TELEVISÃO

1.5 O Netflix

1.5.1 Orange is The New Black

Orange is the New Black é uma série sobre uma privilegiada garota de Nova York que acaba na prisão por um crime cometido anos atrás. Apresentando uma fusão de comédia e drama, o seriado se passa quase que completamente dentro de um presídio federal nos Estados Unidos, e é vagamente baseado no livro de memórias de Piper Kerman. A maior parte do elenco é composto por mulheres (os homens são relegados a papéis secundários, e os únicos que tem presença constante são guardas e funcionários da prisão), e a narrativa incorpora temas como o feminismo, violência, drogas e família. A série utiliza o recurso do flashback para mostrar as personagens antes do encarceramento. Os flashbacks muitas vezes servem como o contraponto episódico (exibindo tramas que se resolvem em um único capítulo) à narrativa serializada do programa, que envolve arcos narrativos que duram temporadas inteira e influenciam os acontecimentos das temporadas seguintes.

A figura da produtora e roteirista Jenji Kohan como showrunner27 se enquadra na teoria de Mittell no que diz respeito ao aspecto autoral. Mittell (2015) destaca que enquanto a televisão norte-americana tem se tornado mais esteticamente valorizada nas últimas duas décadas, sua função autoral tem se tornado mais proeminente. Apesar de considerar “televisão autoral” um conceito problemático, que não reflete a natureza colaborativa das práticas de produção, ele não só existe nos discursos da audiência e da indústria, personificado na figura do showrunner, como é considerado vital na forma como os espectadores compreendem e interpretam a televisão. A presença de Kohan é tão marcante que o próprio site do Netflix destaca ser uma série “da mesma criadora de Weeds”. No grupo do Clube dos Seriadores Anônimos no Facebook, a autoria da série é vista como uma qualidade inerente, a ponto de um dos usuários afirmar que a série “subiu no seu conceito”, ao descobrir quem são “seus criadores”, como é ilustrado na figura 1.

27 Termo utilizado pelo mercado televisivo norte-americano para designar o produtor responsável pelo programa. Nas séries contemporâneas, o showrunner geralmente é o roteirista-chefe, como Vince Gilligan, em Breaking Bad, e David Simon, em The Wire. Embora o showrunner geralmente seja também o criador da série, isso nem sempre acontece. Em Lost, o criador da série foi o produtor-executivo J.J. Abrahms (entre outros), mas os showrunners eram os roteiristas Damon Lindelof e Carlton Cuse.

40 Figura 1 – Imagem da secção de comentários de Orange is The New Black

Embora a premissa apresentada da “garota privilegiada que acaba na prisão” seja o motor de partida aos acontecimentos narrativos que ocorreram ao longo de três temporadas (até 2015), ao longo dos episódios Orange is the New Black se distancia da sinopse inicial. Piper, a protagonista, ocupa um espaço marcante durante a primeira temporada. É através da sua perspectiva de peixe fora d'água, que o seriado leva o espectador a conhecer uma população de mulheres com histórias de vidas bem diferentes da realidade favorecida da protagonista. Os conflitos e inseguranças de Piper são experienciados por sua família, em especial pelo noivo Larry, através dos telefonemas e visitas. Mas ao final da terceira temporada, o status de Piper como protagonista é questionável. Suas tramas narrativas não mais envolvem conflitos familiares e o personagem do noivo foi descartado (ainda na segunda temporada). Piper é a personagem que mais aparece em flashbacks ao longo da série, mas esse número é reduzido de 7 na primeira temporada, para 2 na segunda temporada. Na terceira temporada, a personagem não é destacada em nenhum flashback. Embora ainda seja um dos personagens centrais (aparece em todos os episódios) a sua narrativa agora se encontra entrelaçada nas narrativas de outras personagens, como Red, Caputo, Norma e Taystee. Kayla Hawkins, em um artigo do site Bustle.com, argumenta que Piper se tornou a antagonista da série, exercendo influência negativa em alguns dos acontecimentos exibidos.28

Este pluralismo de personagens é uma das características que definem a hipertelevisão. Scolari (2009) afirma que os personagens se multiplicam em grupos complexos e que

28 Disponível em http://www.bustle.com/articles/95071-is-piper-still-the-main-character-of-orange-is-the-new- black-a-study-of-season

41 “algumas vezes é realmente difícil identificar o protagonista destas ficções contemporâneas porque a maior parte dos personagens possui o mesmo status na narrativa” (SCOLARI, 2009, p.37).29 O protagonismo múltiplo em Orange is the New Black também representa outra característica dos seriados contemporâneos: o discurso do outro e o fim das grandes narrativas. Owens (1987) explicita o pluralismo como uma condição pós-moderna, que reduz o “nós” como estando no meio de outros e ameaça a hegemonia da cultura ocidental. Seriados como The Sopranos e Mad Men exploraram a sensação de perda da singularidade desta narrativa. Tony Soprano é um personagem constantemente atormentado pela posição da masculinidade na cultura contemporânea, e questiona “o que aconteceu com Gary Cooper? O tipo forte e silencioso. Aquilo era um americano. Ele não se preocupava com seus sentimentos. Ele apenas fazia o que devia ser feito”.30 Em Mad Men, Beale (2014) destaca que embora existam várias mulheres com papel de destaque na série, a narrativa orbita em torno dos homens do título (men) e que uma das temáticas chaves do programa é a decadência do privilégio destes homens ao longo dos anos 60.

Orange is the New Black finda por atuar nas duas frentes. Apresenta a perda de protagonismo exercida por Piper (americana de classe alta, privilegiada, no melhor estilo WASP31), e exibe uma pluralidade de narrativas de personagens marginalizados, em sua maioria mulheres, negras, latinas, imigrantes, rurais.

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