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Organização de mobiliário e corpos no espaço

3.2 A gestão do espaço

3.2.2 Organização de mobiliário e corpos no espaço

Para Walter Doyle (1986), apesar da provável influência que aspectos como a disposição do mobiliário, tipos de mesas e cadeiras e divisões espaciais (“cantinhos da leitura”, “cantinho do brinquedo”, estabelecimento de corredores entre o mobiliário, organização dos diferentes materiais didáticos no espaço) podem ter sobre a densidade (aglomeração) de pessoas, oportunidades de interação e a visualização dos comportamentos, um número limitado de pesquisas sistemáticas foram realizadas considerando a influência destes aspectos para a gestão de sala de aula. A disposição do mobiliário escolar no espaço da sala de aula delimita rotas, fluxos e, tradicionalmente, determina a localização de cada um na sala. “Cada indivíduo em seu lugar; e em cada lugar um indivíduo” (FOUCAULT, 1987, p.123). De um ponto de vista histórico o mobiliário escolar diz muito sobre as concepções educacionais de cada sistema de ensino e este se modificou muito ao longo da história da sala de aula. Dos mestres-escola que forravam o chão das salas de aula com feno e dispunham de mesas amplas que nem sempre comportavam todos os alunos sentados até a grande mudança de perspectiva que representa o mobiliário escolar adaptado para o tamanho dos alunos a partir de Maria Montessori, muitas mudanças ocorreram e todas acompanham princípios pedagógicos.

De maneira geral o mobiliário passou a ser concebido não mais para comportar grandes grupos de alunos, como entre os lassalistas26 e no ensino mútuo27 (figura 2), mas de maneira cada

26 Os irmãos lassalistas ou irmãos de La Salle são uma congregação católica aprovada pela Santa Sé no ano de 1725.

Criada pelo próprio Jean Baptiste de La Salle (francês) que no fim do século XVII criou escolas e casas para crianças pobres financiadas a partir de ajuda dos ricos ou do município. Ainda hoje, a congregação tem como sua marca a dedicação às práticas pedagógicas.

27 O método de ensino mútuo, monitorial ou lancasteriano, surge na Inglaterra (Lancaster era inglês) criado por

Joseph Lancaster (1778 – 1838) nos últimos anos do século XVIII e consiste numa forma de ensinar em que a função pedagógica é dividida entre professor e alguns monitores. Recrutando alunos com habilidades superiores e fazendo- os seus monitores diretamente subordinados a ele, um único professor poderia dirigir uma escola de até mil alunos, como os registros históricos comprovam. Para saber mais sobre o método e sua história, ver BASTOS; FARIA

vez mais individualizada (uma mesa e uma cadeira por aluno) e com uma tendência a permitir cada vez maior mobilidade, o que possibilitava que diferentes arranjos fossem organizados numa mesma sala com o mesmo mobiliário.

Figura 2 - O mobiliário escolar na sala de aula no ensino mútuo (autor desconhecido)

Fonte: http://historiadaeducacaobrasileira.files.wordpress.com/ Figura 3- Maria Montessori e seu filho Mário em uma das escolas

Fonte: http://kingstonmontessorischool.com/

FILHO, 1999; DUSSEL; CARUSO; 2003 e FOUCAULT, 1987)

As práticas curriculares na escola com frequência se valem deste caráter maleável para as suas diferentes atividades em sala: concentrar as cadeiras e mesas da sala junto à parede nas atividades que pretendem explorar a movimentação; reunir mesas e cadeiras de maneira a formar pequenas “ilhas” pela sala, para as atividades em grupo; formar rodas, quadrados ou retângulos; e mesmo as diferentes formas de organizar o modelo que hoje temos como o mais tradicional: o método global-frontal.

O método global-frontal (ou ensino simultâneo) enunciado por Comenius (1592 – 1670) em 1649 através de sua obra Didática Magna, certamente, a mais conhecida e influente para a pedagogia, propôs pela primeira vez uma abordagem que visava que um mesmo professor expusesse conteúdos e orientasse atividades para um grande grupo de alunos de uma só vez. O método global (ou frontal ou simultâneo) de ensino baseado na figura do professor que centraliza as atenções expondo didaticamente diante de alunos que escutam e obedecem simultaneamente é enunciado por Comenius como o programa do futuro. Trata-se de uma grande inovação em relação às formas pelas quais se ensinava grupos à época, particularmente, à abordagem dos mestre-escola que, como vimos, atendia um aluno por vez ou mesmo os jesuítas com seu sistema de monitoria e ênfase no controle dos indivíduos. Este modelo pedagógico, baseado na pregação, eixo central da missa protestante, traz para a escola um tipo de comunicação hierarquizada e ritualizada que visa unificar um grupo de crianças em torno de uma atividade comum (DUSSEL e CARUSO, 2003). Com isso, restringe-se drasticamente o espectro de comportamentos aceitáveis em sala e o tempo que o professor dedica para controlar comportamentos, quando comparado com a dinâmica da sala de aula dos mestre-escola, por exemplo.

Percebamos que, até então, a relação entre professor e aluno se dá na esfera de sua individualidade, o que constitui um tipo de relação que não difere de maneira significativa de qualquer outra relação hierárquica entre um jovem e alguém mais velho. Com o método global, as relações de poder na escola assumem uma nova configuração mais próxima ao que Michel Foucault (2003) chamou de pastoralização, ou seja, o poder que se exerce não sobre um espaço ou uma cidade, mas sobre um rebanho ou um conjunto de sujeitos que se deslocam. A relação sintetizada pelo autor na expressão Omnes et singulatium (todos e cada um) é, assim, um modo de ação que age sobre a ação de sujeitos coletivos e individuais ao mesmo tempo. Dessa forma, é a partir dessa transformação das práticas pedagógicas escolares que nasce a expectativa de que um grupo de crianças limitados a um mesmo espaço físico na escola haja de maneira coordenada,

ou seja, ordenada e articulada coletivamente com vistas a objetivos semelhantes ou iguais.

Nas salas de aulas onde ocorreram as observações e segundo minha própria experiência na Rede, é evidente a tendência a uma significativa mudança no tipo de mobiliário e na organização desse a partir do segundo ano do Ensino Fundamental. Se nas turmas de Educação Infantil e no primeiro ano do Ensino Fundamental as mesas e cadeiras são menores, as turmas do segundo ano ocupam salas de aula com as mesmas mesas e cadeiras que os alunos do nono ano ocuparão no contraturno. Além disso, se na educação infantil e no primeiro ano a organização predominante é a da atividade em grupo, como o próprio formato da mesa parece incentivar (ver figura 4), as turmas do segundo ao nono ano do ensino fundamental tendem a estar organizadas no modelo frontal.

Figura 4 - Mobiliário de uma das turmas de Jardim da escola do Prof. Lauro.

Fonte: Autor, 2013.

Como já comentado, Cecília possui a opção de desenvolver suas atividades pedagógicas na sala de Música ou na sala da turma (além das áreas de uso comum da escola, obviamente).

Lauro e Eduardo não possuem uma sala de aula própria para as atividades musicais e, por isso, utilizam a sala da turma adaptando-a ou não do ponto de vista da disposição física dos objetos e corpos. Nas duas turmas que observei, Eduardo não interferiu na disposição das mesas e cadeiras, ainda que cada uma seguisse disposições diferentes. Na sala da turma C33, como a figura 5 ilustra, a professora unidocente organiza as mesas de maneira a formar duplas entre os alunos. Figura 5 - Disposição das mesas na turma C33 do professor Eduardo

Fonte: Autor, 2013.

Já na turma C32, as mesas eram dispostas de maneira formar duplas, trios e quartetos, provavelmente, fruto de negociações da professora com os diferentes grupos de alunos dentro da turma e seus interesses na formação de grupos de trabalho, conforme suas afinidades. O dia em que a foto foi tirada, foi a única vez das três aulas que observei em que Eduardo interfere na disposição do mobiliário escolar. Por estar trabalhando composição em grupos, orientou que reunissem as mesas de maneira a “formar grupos”. Os alunos pareciam ter uma ideia bastante clara do que essa expressão significava, do ponto de vista da organização das mesas e cadeiras na sala e deslocaram suas próprias cadeiras e mesas sem maiores orientações ou ajudas. O resultado

se vê na Figura 6.

Figura 6 - Sala de aula da turma C32 do professor Eduardo

Fonte: Autor, 2013.

Lauro em todas as aulas observadas manteve a disposição deixada pela professora unidocente até o fim da chamada ou, como em um dos três dias observados, durante uma atividade em que os alunos deveriam colorir um desenho com lápis de cor28. Terminada a chamada, o professor orientava os alunos para que levassem sua cadeira a um outro ponto da sala que não fosse aquele onde havia a maior concentração de mesas afim de formar uma roda. Em todas as aulas observadas, Lauro mostrou-se bastante empenhado em garantir que a roda fosse formada adequadamente: ajudava os alunos a construir com as cadeiras a forma mais próxima de um círculo, sem que essa linha apresentasse descontinuidades e sem membros da turma situados fora da roda.

Chamou-me a atenção o fato de que todos os alunos, ao receberem o comando para

28 A imagem a ser colorida era a de um baixista com seu instrumento. Lauro prometeu aos alunos levar gravações

para que pudessem ouvir o som do baixo na aula seguinte. A atividade de pintura durou entre 10 e 15 minutos. Logo após, foram chamados a formar a roda.

formarem a roda em um ponto específico da sala, pareciam ter formas de segurar a cadeira e de se locomover muito semelhantes e que o faziam com considerável rapidez. Perguntado durante a entrevista sobre o processo que gerou esse resultado, Lauro afirma que esse era o fruto de um “investimento” realizado em suas turmas no ano de 2013. Segundo o professor, durante oito ou nove aulas no início do ano, foi utilizado um tempo considerável para trabalhar com os alunos uma forma efetiva de levar a cadeira de um ponto a outro sem arrastá-la (para que não houvesse ruídos muito fortes). Sua abordagem consistia em exposições dialogadas (ensino simultâneo) onde o professor apresentava diferentes formas de levantar a cadeira para a turma e lhes perguntava qual “o jeito certo”, fazendo-os refletir sobre os possíveis problemas ocasionados por alunos que carregassem a cadeira sobre a cabeça ou junto às suas costas. Em sua exposição, manifestou particular preocupação com a segurança dos alunos, evitando formas de carregar a cadeira que, por bloquear a visão ou por ser carregada fora do campo de visão do aluno, aumentassem a possibilidade de choques não intencionais entre eles. Ainda assim, em todas as vezes que o observei dar o comando para formar ou desfazer a roda a orientação para não levantar a cadeira era feita de forma curta.

Figura 7 - Professor Lauro em roda com a turma realizando coreografia em que tocam os pés enquanto cantam.

Nas aulas observadas, Cecília não realizou mudanças significativas em relação à disposição de cadeiras, exceto em práticas de apreciação de vídeos no computador da sala, quando cada um dos alunos dispôs sua cadeira de frente para o monitor. As mudanças, quando houveram, foram realizadas por iniciativa dos próprios alunos ao formar grupos de interesse comum. Via de regra, as cadeiras da sala de música da escola estão dispostas de maneira a sugerir um retângulo amplo (sem as pontas) cujos limites são dados pelas paredes. Amplo o suficiente para permitir que atividades que envolvam movimento possam ser realizadas dentro do retângulo.

Figura 8 - Porta de acesso à sala de Música

Figura 9 - Foto da sala de Música tirada a partir da porta de acesso

Fonte: Autor, 2013.

Com os alunos dos anos iniciais, conforme o que foi observado, Cecília utiliza com frequência o espaço do centro da sala, tanto em atividades que implicam em deslocamento pelo espaço (como atividades ligadas à dança) quanto em momentos em que é solicitado que os alunos sentem no chão da sala. A mesma movimentação não é percebida entre os alunos dos anos finais que tendem a limitar-se ao espaço que ocupam enquanto sentados na cadeira.

Também foram observadas práticas onde os professores determinavam o local onde os alunos deveriam se sentar como forma de interromper ou evitar comportamentos disruptivos. Em uma das situações observadas, Cecília “pediu” que uma aluna da turma do oitavo ano se sentasse em outro lugar para que conseguisse manter contato visual com um grupo de alunas que conversavam durante a explicação, o que amenizou a conversa. Em outra situação, o professor Eduardo pediu que dois alunos sentassem em pontos distantes da sala para interromper as cotoveladas que trocavam um com o outro.

Nas aulas de Lauro e Eduardo, as crianças acabavam por manterem-se nos lugares estabelecidos pela professora unidocente e as mudanças eram realizadas conforme os problemas se manifestavam. No caso de Lauro, ao formar a roda para cantar, a disposição dos alunos era escolhida por eles mesmos, o que gerava briga entre os alunos pois muitos queriam que o professor sentasse ao seu lado. Em duas das aulas observadas o professor utilizou a brincadeira “uni-duni-tê” para decidir onde ele se sentaria, estabelecendo um critério baseado na sorte que parecia ser melhor aceito pelos alunos.