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Origem do Princípio da Vedação do Retrocesso

No documento MESTRADO EM DIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAIS (páginas 105-112)

CAPÍTULO 3. O PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO DO RETROCESSO E A SEGURIDADE

3.1 Origem do Princípio da Vedação do Retrocesso

A Carta Maior de 1988 inaugurou um Estado Social e Democrático de Direito e se propôs à realização de uma sociedade igualitária e garantidora da prestação dos direitos sociais. Para tanto, o Estado adquiriu posição central na realização da justiça social e no desenvolvimento de políticas públicas voltadas para a gradual eliminação das desigualdades existentes no corpo de sua sociedade.

Os direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988 ganharam quatro segmentos distintos que repartiram esses direitos em: políticos, individuais, sociais e difusos. Desse modo, os direitos fundamentais são, a um só tempo, direitos subjetivos e elementos essenciais de ordem constitucional objetiva. Enquanto direitos subjetivos, os direitos fundamentais outorgam aos titulares a possibilidade de impor os seus interesses em face dos órgãos obrigados. Na sua dimensão como elemento fundamental da ordem constitucional objetiva, os direitos fundamentais – tanto aqueles que não asseguram, primariamente, um direito subjetivo, quanto aqueles outros, concebidos como garantias individuais – formam a base do ordenamento jurídico de um Estado de Direito Democrático.

Gilmar Mendes destaca que ao atribuir significado ímpar aos direitos individuais, (face à fixação dos direitos fundamentais no início do texto – art. 5º), a Constituição brasileira demonstra a intenção do constituinte de lhes emprestar significado especial. Nessa ótica, “[...] a ideia de que os direitos individuais devem ter eficácia imediata ressalta a vinculação direta dos órgãos estatais a esses direitos e o seu dever de guardar-lhes estrita observância”.154

154

MENDES, Gilmar Ferreira. Os Direitos Fundamentais e seus múltiplos significados na ordem

constitucional. Revista Jurídica Virtual, v. 2, n. 13, junho/1999, p. 1. Disponível em:

Dessa forma, reconhecendo a preponderância dos direitos fundamentais sobre todo o ordenamento jurídico pátrio, o artigo 5º, § 1º, da Constituição Federal revela que “[...] as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata [...]”.

Ingo Sarlet155 afirma que este dispositivo constitucional possui natureza de princípio, devendo ser interpretado como um mandado de otimização ou maximização de todo o ordenamento dos direitos fundamentais, de forma a imprimir ao Estado a tarefa de reconhecer e possibilitar o seu maior grau de eficácia.

Assim, o preceito se torna capaz de gerar uma presunção em favor da plena aplicabilidade das normas definidoras de direitos fundamentais, buscando-se a máxima efetividade da norma constitucional.

Em que pese a circunstância de que a situação topográfica do dispositivo poderia sugerir uma aplicação da norma contida no art. 5º, § 1º, da CF apenas aos direitos individuais e coletivos (a exemplo do que ocorre com o § 2º do mesmo artigo), o fato é que este argumento não corresponde à expressão literal do dispositivo, que utiliza a formulação genérica „direitos e garantias fundamentais‟, tal como consignada na epígrafe do Título II de nossa Lex Suprema, revelando que, mesmo em se procedendo a uma interpretação meramente literal, não há como sustentar uma redução do âmbito de aplicação da norma a qualquer das categorias especificas de direitos fundamentais consagradas em nossa Constituição [...]. 156

Portanto, afirma-se que o comando inserto no artigo 5º, § 1º, da Constituição Federal, deve ser interpretado de forma extensiva para alcançar todo o sistema dos direitos fundamentais, impedindo que algumas categorias, tais como os direitos sociais de prestação, que dependem de uma atuação positiva do Estado, se tornem letra morta no texto constitucional.

Quanto à observância necessária pelo Estado do aludido dispositivo constitucional, Fortini e Chamon Junior alertam:

Assim, e dentro deste contexto normativo, é que devemos entender que tanto o administrador público não pode perder de vista que sua conduta há de se amoldar ao previsto no art. 5º, §1º do texto constitucional, quanto o magistrado, uma vez provocado, deve atuar

155SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2007, p. 284.

156

como instância garantidora do cumprimento de tal comando, porque se trata da satisfação do que o Direito moderno exige em face dos mais variados casos concretos.157

Nesse aspecto é que assume relevo o comportamento ativo do Estado na efetivação dos direitos fundamentais, buscando o bem-estar social dos indivíduos. Essa dimensão positiva norteia a atuação estatal no sentido de viabilizar as prestações de saúde, educação, assistência social, trabalho e outros, e revela a transição das liberdades formais abstratas para as liberdades materiais concretas, aproximando os direitos fundamentais do conceito material do princípio da igualdade.

Sendo o resultado de um longo período de redemocratização no cenário brasileiro, a Constituição cidadã de 1988 trouxe, em seu arcabouço, direitos fundamentais e a previsão constitucional de que o legislador está obrigado a editar leis que concretizem os direitos fundamentais sociais e à evidência de não poder revogá-las sem norma substitutiva que continue a protegê-los, ou ainda, altere o legislador ordinário a norma garantidora, de forma a reduzir respectivo direito social. Quanto à função do legislador e sua íntima relação com a garantia de fazer-se cumprir o texto constitucional, Derbli esclarece, verbis:

Assim, não basta que a Constituição seja pródiga na previsão de direitos fundamentais de cunho econômico, social e cultural; é igualmente importante que, em estrito cumprimento das disposições constitucionais, tais direitos sejam concretizados. A tarefa do legislador, nesse ponto, é de máxima relevância, na medida em que,

através da atividade legiferante, os direitos sociais

constitucionalmente previstos poderão atingir o nível de densidade normativa necessário para que possam, de fato, gerar direitos subjetivos para os cidadãos. Mais além – e aqui está o elemento central da discussão que ora se coloca -, também não basta que o legislador tenha competência para minudenciais se, posteriormente, puder eliminar, pura e simplesmente,a regulamentação efetuada, recriando uma indesejável situação de vácuo normativo.158

157FORTINI, Cristiana; JUNIOR CHAMON, Lúcio Antônio. Efetividade dos direitos fundamentais e o princípio da reserva do possível: uma discussão em torno da legitimidade das tomadas de

decisão público-administrativas. Revista Fórum Administrativo – Direito Público FA, Belo Horizonte: ano 8, n. 93, nov. 2008, p. 8.

158

DERBLI, Felipe. Proibição do Retrocesso Social: uma proposta de sistematização à luz da Constituição de 1988. BARROSO, Luís Roberto (org). A Reconstrução Democrática do Direito Público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 434.

Nesse sentido, se enfrenta o estudo da existência em nosso ordenamento constitucional do princípio da vedação do retrocesso. Quanto ao termo “retrocesso”, José Vicente Mendonça159 explica que se deve compreender seu estrito sentido numa dogmática jurídico-constitucional que trate das ideias de efetividade, força normativa da Constituição, eficácia de defesa dos direitos prestacionais e dever de proteção aos direitos fundamentais sociais.

José Afonso da Silva vinculou a disciplina das relações econômico-sociais às normas constitucionais de eficácia limitada e princípio programático, ou seja, aquelas normas constitucionais que se limitam a traçar os programas das atividades estatais e os fins sociais cuja realização incumbe ao Estado. Assim, dotadas de caráter vinculativo e imperatividade tais normas exigem a interferência do legislador para que possam produzir seus efeitos160. Fulcrado no ensino de Balladore Pallieri, o autor sustenta que as imposições constitucionais delas advindas dão, ao legislador, o caminho que não deve seguir, de modo que seja inconstitucional “[...] a lei que voltar atrás depois na execução da norma constitucional”161.

Nesse sentido, Canotilho introduz seu estudo sobre segurança jurídica afirmando que o Homem necessita de:

[...] segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança como elementos constitutivos do Estado de direito. 162

Assim, além da condição de direito fundamental da pessoa humana, a segurança jurídica assumiu feição de princípio fundamental da ordem jurídica estatal.

Canotilho, todavia, alerta que o princípio da segurança jurídica constitui apenas uma das dimensões de um direito geral à segurança na medida em que

159

MENDONÇA, José Vicente dos Santos. Vedação do retrocesso: o que é e como perder o medo. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro. Direitos Fundamentais, v. XII. BINENBOJM, Gustavo (coordenador). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 219.

160

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 82 e 138.

161Ibidem, p. 158 e 165. 162

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 256.

pode ser visto seu enfrentamento sob dois ângulos: um estrito e um geral. Sobre o princípio geral da segurança jurídica o autor desenvolve no seu sentido amplo, abrangendo a ideia de proteção da confiança afirmando que:

[...] o indivíduo têm o direito de poder confiar em que aos seus actos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçados em normas jurídicas vigentes e válidas por esses actos jurídicos deixado pelas autoridades com base nessas normas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos no ordenamento jurídico. As refracções mais importantes do princípio da segurança jurídica são as seguintes: (1) relativamente a actos normativos – proibição de normas retroactivas restritivas de direitos ou interesses juridicamente protegidos; (2) relativamente a

actos da administração – tendencial estabilidade dos casos decididos através de actos administrativos constitutivos de direitos.163

Compreende-se, portanto, que, além da segurança jurídica abranger um direito à segurança pessoal e social164, também abrange um direito à proteção (por

meio de prestações normativas e materiais) contra atos violadores dos diversos direitos de proteção que resultam da dimensão jurídico-objetiva dos direitos fundamentais e sociais.

Sobre o tema, Celso Antônio Bandeira de Mello165 define que a segurança jurídica traduz-se numa das mais profundas aspirações do ser humano, viabilizando, mediante a garantia de certa estabilidade das relações jurídicas e da própria ordem jurídica como tal, tanto a elaboração de projetos de vida, bem como a sua realização, de tal sorte que desde logo é perceptível como a ideia de segurança jurídica encontra-se inserida na própria noção de dignidade da pessoa humana.

Frente à Constituição portuguesa de 1976, a qual, vale mencionar, muito influenciou a Constituição brasileira de 1988, Canotilho desenvolveu o pensamento, embasado na doutrina alemã constitucionalista, de que o princípio da democracia econômica e social impõe tarefas ao Estado e justifica que elas sejam tarefas de conformação, transformação e modernização das estruturas econômicas e sociais,

163CANOTILHO, op. cit., p. 256. 164

Sobre a segurança social, leciona Cesarino Jr. que “esta integração da previdência social e da assistência social constitui o que se chama de segurança social (social security) e constitui o objetivo de vários planos governamentais, entre eles o famoso plano Beveridge”( CESARINO JÚNIOR, Antônio Ferreira. Direito Social. São Paulo: LTr: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980, p. 441).

165

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15. ed., São Paulo: Malheiros, 2003, p. 113.

de forma a promover a igualdade real entre os cidadãos, o que aponta para a proibição de retrocesso social.

No âmbito do Direito Internacional, vários são os instrumentos que apontam para o princípio da vedação do retrocesso, como aponta Daniela Muradas Reis:

E os documentos internacionais consagradores dos direitos humanos, embora os interessando em especial os pertinentes à proteção dos direitos econômicos sociais e culturais, contêm dispositivo expresso que veda o retrocesso das normas de proteção à pessoa humana, sendo peculiar a esta categoria de direitos a progressividade. Assim, a proteção que defere à pessoa por força da sua excelência, na dimensão econômica, social e cultural, exige uma contínua promoção, sem supressão das garantias já afiançadas pelas ordens jurídicas nacionais ou internacional.166

Inicialmente, se observa o artigo 30 da Declaração de Direitos do Homem o qual ressalta que nenhuma de suas disposições poderia “ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades” nela estabelecidas.

A Organização Internacional do Trabalho, criada em 1919, com o objetivo e finalidade de universalização e promoção do valor trabalho, atuando na melhoria das legislações nacionais, com fixação de condições de trabalho mínimas aplicáveis aos trabalhadores traz no bojo de sua Constituição, no artigo 19, VIII, que

Art.19. VIII. Em caso algum, a adoção, pela Conferência, de uma convenção ou recomendação, ou a ratificação, por um Estado- membro, de uma convenção, deverão ser consideradas como afetando qualquer lei, sentença, costumes ou acordos que assegurem aos trabalhadores interessados condições mais favoráveis que as previstas pela convenção ou recomendação.

Ademais, a Declaração da Filadélfia, incorporada à Constituição da O.I.T., estabeleceu em seu artigo 1º o compromisso da entidade, em 1946, a um esforço contínuo e conjugado com as nações para o progresso da legislação laboral e luta contra a carência, declarando princípios fundamentais como o de que a liberdade de

166

REIS, Daniela Muradas. O Princípio da Vedação do Retrocesso no Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2010, p. 127.

expressão e de associação é uma condição indispensável de um progresso ininterrupto.

Nos Pactos de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, aprovados na Assembleia das Nações Unidas em 1966, ambos em seu artigo 5º, também há a prescrição da inviabilidade das suas disposições serem interpretadas no sentido de reconhecer a prática de atos atentatórios aos direitos ou às liberdades neles reconhecidos ou ainda de se lhes impor limitações mais amplas do que aquelas neles previstas. Afirma-se também, nesses mesmos artigos, a não admissão de qualquer restrição ou suspensão dos direitos humanos fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer país em virtude de leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob o pretexto de que o presente pacto não os reconheça ou os reconheça em menor grau.

O Protocolo de São Salvador, de 1966, do qual o Brasil participou como membro da Organização dos estados Americanos - OEA, contemplou o princípio da promoção ininterrupta e sem retrocessos dos direitos econômicos, sociais e culturais da pessoa humana, uma vez que proíbe, em seu artigo 4º, a restrição ou limitação de qualquer dos direitos reconhecidos ou vigentes num estado em virtude de sua legislação interna ou de convenções internacionais, sob o pretexto de que o Protocolo não os reconhece ou os reconhece em menor grau.

Sobre o compromisso assumido pelos Estados sobre o tema Flávia Piovesan conclui que:

[...] tal como o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o tratado da OEA reforça os deveres jurídicos dos Estados-partes no tocante aos direitos sociais, que devem ser aplicados progressivamente, sem recuos e retrocessos, para que se alcance sua plena efetividade.167

O princípio da vedação do retrocesso ainda foi expressamente reiterado em outros diplomas internacionais como o artigo 29 da Convenção Americana sobre

167

PIOVESAN, Flávia. Proteção Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Revista Gênesis. Curitiba: n. 118. out. 2002, p. 517.

Direitos Humanos168; artigo 1.2. da Convenção contra a Tortura169; e o artigo 41 da

Convenção sobre os Direitos da Criança170, entre outros.

Quanto ao aspecto jurisprudencial, o estudo do direito comparado demonstra que essa mesma concepção da proibição do retrocesso encontrou acolhida na jurisprudência do Tribunal Constitucional de Portugal que, no Acórdão n. 39, de 1984171, declarou a inconstitucionalidade de uma lei que havia revogado boa parte da Lei do Serviço Nacional de Saúde. Sob o argumento de que com esta revogação estava o legislador atentando contra o direito fundamental à saúde, alicerçado no artigo 64 da Constituição da República Portuguesa, ainda mais em se considerando que este deveria ser realizado justamente mediante a criação de um serviço nacional, geral e gratuito de saúde, a Corte portuguesa decidiu que haveria um retrocesso social caso se decidisse pela revogação da lei do Serviço à Saúde, que seria extinto sem colocar nada no seu lugar.

Surge, portanto, no cenário jurídico internacional, na doutrina e, ainda timidamente, na jurisprudência, o princípio da vedação do retrocesso.

No documento MESTRADO EM DIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAIS (páginas 105-112)