• Nenhum resultado encontrado

1 O PROCESSO DE FORMAÇÃO DE LEONEL FRANCA: UM AGENTE

1.1 Origem familiar e formação escolar

Na perspectiva bourdieusiana, a construção de uma trajetória intelectual é analisada “[...] como série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espalho que é ele próprio um devir, estando sujeito a incessantes transformações” (BOURDIEU, 2009, p. 190). A trajetória possui enfoque amplo, pois se preocupa em analisar como - por meio do habitus incorporado pelo campo de vivência - o agente social organizou-se para agir nos meios de seus interesses.

Consideramos que “[...] tentar compreender uma vida como uma série única e, por si só [...]”, pode ser “[...] tão absurdo quanto tentar explicar um trajeto no metrô sem levar em conta a estrutura da rede [...]” (BOURDIEU, 2016, p. 81), ou seja, ponderar a matriz que norteou as relações e como ela se empreende nas mais variadas situações e campos.

Toda trajetória social deve ser compreendida como uma maneira singular de percorrer o espaço social, onde se exprimem as disposições do habitus; cada deslocamento para uma nova posição, enquanto implica a exclusão de um conjunto mais ou menos vasto de posições substituíveis e, com isso, um fechamento irreversível do leque dos possíveis inicialmente compatíveis, marca uma etapa do envelhecimento social que se poderia medir pelo número dessas alternativas decisivas, bifurcações da árvore com incontáveis galhos mortos que representa a história de uma vida (BOURDIEU, 1996, p. 292).

Dessa forma, torna-se fundamental avaliarmos as disposições de origem social para compreensão de uma trajetória intelectual – referimo-nos ao parentesco de Leonel Franca e seus primeiros anos de formação. Os múltiplos condicionantes que circundam um engajamento intelectual no espaço social são necessários para analisarmos e avaliarmos as ações individuais e coletivas, exercidas pelo agente no campo em questão. Reiteramos a importância em passarmos pela origem de Leonel Franca, pois, atreladas às ações no ambiente familiar, “[...] as mesmas disposições podem conduzir, assim, a tomadas de posição estéticas ou políticas muito diferentes segundo o estado do campo com relação ao qual têm de determinar-se” (BOURDIEU, 1996, p. 299).

Para articular a trajetória intelectual de Franca consideramos seu campo de desenvolvimento. Analisar suas disposições pessoais e institucionais foi fundamental para compreendermos sua atuação no quadro educacional do Brasil. Nosso esforço

foi o de ir além de sua produção bibliográfica, visualizamos a forma como ele se deslocava nos mais variados campos de atuação e, por meio de sua rede de sociabilidade, desenvolvia os ideais católicos - na primeira metade do século XX.

Para que esta compreensão fique mais apurada, não podemos deixar de analisar a formação do habitus, que caracteriza seu impulso inicial a participar de uma ordem religiosa.

O habitus é um conceito central da sociologia bourdieusiana. Ele garante a coerência entre a sua concepção da sociedade e a do agente social individual; fornece a articulação, a mediação entre o individual e o coletivo (BONNEWITZ, 2003, p. 75).

O habitus consiste num processo de socialização do indivíduo em encontro ao campo o qual ele compõe. Ele define a personalidade de um indivíduo, é o produtor de suas práticas e direciona seus atos. Bonnewitz (2003) indica que, durante nossa vida, somos capazes de acreditar que já nascemos ou herdamos determinadas características, no entanto elas são produtos do habitus incorporado no seio dos convívios estabelecidos ao longo de nossa existência.

Utilizamos como uma das bases para nosso texto, como afirmado nas notas introdutórias, a biografia do padre Leonel Franca que foi escrita pelo jesuíta padre Luiz Gonzaga da Silveira D’Elboux, um intelectual católico, erudito em línguas clássicas, conhecido e respeitado por ter pesquisado profundamente a vida de Franca - D’Elboux, faleceu em 2002, aos 86 anos. O texto toma, por meio dos escritos de D’Elboux, um formato hagiográfico e laudatório.

As obras escritas pelos padres Pedro Américo Maia S.J (1982) e Luiz Gonzaga da Silveira D’Elboux S.J, citadas na introdução deste trabalho, foram publicadas com cunho exclusivamente religioso. Na obra de D’Elboux (1953), que demonstra um texto maior e com um trabalho mais privilegiado de fontes, há uma apresentação do padre Jaime Cardeal Camara, arcebispo do Rio de Janeiro e Prefácio escrito por dom Aquino Corrêa, da Academia Brasileira; ambos exaltam a obra e lembram ser fundamental ressaltar a importância que Leonel Franca teve na configuração da educação e apostolado religioso no país por toda a época permeada por suas ações e divulgação de obras. Ao introduzir os escritos fica claro o objetivo da publicação: dar conhecimento aos povos sobre um padre que pouco falava de si, alguém humilde, que conseguiu associar ciência e virtude, esta última ligação é o enredo dessa biografia. A biografia – do ponto de vista político e religioso – foi escrita

com os objetivos de beatificar o padre Franca, exaltar sua figura religiosa e centralidade na história católica brasileira.

Supomos, dessa forma, que, para compreendermos o habitus que move Leonel Franca a tomar o posicionamento primeiro de dedicar a sua vida a Deus e, posterior a isso, à propagação da fé católica, é indispensável mapearmos sua origem familiar. Nascido em 6 ou 7 de janeiro de 1893, Leonel foi o terceiro filho do casal Maria José de Macedo Franca e Justino da Silveira Franca. Sua cidade natal foi São Gabriel, sudoeste do Rio Grande do Sul. Além disso, havia um parentesco próximo com autoridade do episcopado nacional.

Era sobrinho-neto do virtuoso e destemido companheiro de D. Vital, S. EXª. Revma. D. Antônio de Macedo Costa, Bispo do Pará. Este o lado de sua mãe, D.ª Maria José de Macedo Franca. Seu pai o Dr. Justino da Silveira Franca, foi engenheiro civil, professor da Escola Politécnica e inspetor da Viação do Estado da Bahia (D’ELBOUX, 1953, p. 21).

Nesse período, final do século XIX, ter um parentesco com uma autoridade católica, como um arcebispo, era algo raro e com a possibilidade de garantia de algum privilégio. Afinal, no término do regime do padroado, havia apenas pouco mais de uma dezena de bispos no Brasil todo (2009). Dom Macedo Costa não era um bispo qualquer, mas engajado politicamente de forma notória, um dos braços direitos do popular e consagrado Dom Vital que o tornou um personagem fundamental na história do catolicismo por seu envolvimento na questão religiosa. Acreditamos que essas relações devem ser destacadas, pois,

No meio intelectual os processos de transmissão cultural são essenciais; um intelectual se define sempre por referência a uma herança, como legatário ou como filho pródigo: quer haja um fenômeno de intermediação ou, ao contrário, ocorra uma ruptura e uma tentação de fazer tábua rasa, o patrimônio dos mais velhos é portanto elemento de referência explícita ou implícita (SIRINELI, 2003, p. 255).

Consideramos o fato de que a influência desse parentesco e o demasiado contato de Franca com o campo religioso desde as origens familiares tenham sido definitivos para a sua opção de trajetória e liderança católica. Assim como seu tio – Dom Macedo –, ele teve contato direto com os problemas políticos estatais e a relação destes com a igreja.

conversão o tornaram influente, de forma suficiente para podermos levantar a questão, de forma segura, de que Franca foi um herdeiro religioso do bispo Macedo Costa. Para além de ser seu sobrinho, levou, consigo, a referência familiar de um bispo – influente e popular nos âmbitos católico e político – e a repercussão positiva de suas ações intelectuais e sociais enquanto militante e defensor do catolicismo nacional.

Justino da Silveira Franca, pai de Leonel, manteve sua família no sul do país pelo trabalho que desenvolvia naquele período - construía a estrada de ferro entre Cacequi e Bagé – Rio Grande do Sul. Os dois primeiros filhos do casal, anteriores a Leonel (Leonardo e Eudoro), faleceram logo após o nascimento. Por motivos trabalhistas e pela instabilidade emocional após essas perdas familiares, retornaram a residir em Salvador - Bahia. Na nova moradia Leonel foi batizado por seu tio cônego, Antonio de Macedo Costa, sendo madrinha Olivia dos Santos Pereira.

Durante toda a sua infância Leonel Franca conviveu com uma família de bases enraizadas no catolicismo; dessa forma, a moral, os bons costumes e o temor a Deus seriam fundamentais para a formação humana. Seu pai, enquanto homem de profissão oriunda de uma formação em engenharia, via a instrução como algo fundamental à edificação de seus filhos. Assim, por volta dos oito até os dez anos, Franca cursou o primário no Colégio Alemão e no Colégio Vieira, escolas nas quais já se ensinavam as línguas alemã, francesa e inglesa. No que se refere à dedicação aos estudos, reiteramos que, na formação humana,

Quanto mais tempo o agente tiver livre para aprender, para apropriar- se do capital cultural, mais ele o dominará. No entanto, isso depende da quantidade de tempo que será liberado de sua família para que ele possua-o. [...] o tempo durante o qual determinado indivíduo pode prolongar seu empreendimento de aquisição depende do tempo livre que sua família pode lhe assegurar, ou seja, do tempo liberado da necessidade econômica que é a condição da acumulação inicial (tempo que pode ser avaliado como tempo em que se deixa de ganhar) (BOURDIEU, 2012, p. 76).

Com tempo, exclusivamente, dedicado aos estudos, em 1905, Leonel Franca foi cursar o dito 2º ano ginasial no Ginásio da Bahia. Nesse mesmo ano, sua mãe - dona Maria José de Macedo Franca – faleceu e deixou nove filhos: Leonardo, Leonel, Leopoldo, Leovigildo, Luís, Leonor, Mário e Maria (gêmeos) e Alberto; o mais velho tinha 16 anos e o mais novo, um ano de idade. Então, por tomada de providência do bispo Macedo Costa, ocupando a posição de capelão das irmãs de Sion – em

Petrópolis, “[...] Leonel e depois o Leopoldo, o Leovigildo e o Luís vieram internar-se no Colégio Anchieta de Nova Friburgo, Estado do Rio” (D’ELBOUX, 1953, p. 26). A matrícula implicou no distanciamento de Leonel do seio familiar, já que residiam, naquela ocasião, no nordeste brasileiro.

A intervenção de Dom Macedo Costa para que os três irmãos fossem internados numa instituição tradicional, de ensino elitizado e fundada pelos jesuítas no século XIX foi de Ordem religiosa e por suas influências clericais. Afinal, aquele colégio fora responsável pela formação de intelectuais de repercussão nacional como Carlos Drummond de Andrade, Heráclito Sobral Pinto, entre tantos, uma das instituições de mais prestígio nos domínios brasileiros (MICELI, 2001).

Nelito, “[...] apelido carinhoso dado por seu avô materno” (D’ELBOUX, 1953, p. 27), se identificou com o formato da instituição religiosa e católica e logo se tornou noviço, ou aspirante. A Congregação Mariana de Mater Pietatis oportunizou que ele tivesse uma rápida ascensão no colégio e em 28 de outubro de 1906 recebeu a fita de congregado (D’ELBOUX, 1953).

Leonel era dotado de altas habilidades, destacado pela sua dedicação escolar e pontualidade na realização de tarefas. Em dezembro de 1906 recebeu oito medalhas da instituição: Comportamento e Aplicação, Português, Francês, Inglês, Latim, Álgebra/Geometria e Música. No próximo ano: Aplicação e Comportamento, Religião, Português, Grego, Latim, Alemão e História Geral. Tocava violino e foi classificado como emérito em instrumento de corda. Em 1907, foi eleito mestre dos noviços e, em 1908, 1º assistente e 2º secretário da Congregação Mariana de Mater Pietatis (D’ELBOUX, 1953).

Um bom desenvolvimento escolar auxilia na apropriação de capital cultural. O domínio de instrumentos e de diferentes disciplinas e conteúdos demonstrava que Franca transitava nos domínios culturais. Mas isso só acontecia pelo apoio familiar, dedicado a sua formação.

O capital cultural objetivado está diretamente ligado ao capital cultural incorporado e, consequentemente, necessita de uma participação familiar considerável, ou fundamental. Sabe-se, portanto, que a acumulação do capital cultural [...] começa desde a origem, sem atraso, sem perda de tempo, pelos membros das famílias dotadas de um forte capital cultural; nesse caso, o tempo de acumulação engloba a totalidade do tempo de socialização (BOURDIEU, 2012, p. 76).

ocupação em demonstrar ser um bom aluno, Franca inicia o processo de objetivar seu futuro; para isso manifestou a sua vontade em compor espaços religiosos. D’elboux (1953) relata que em 1907 Leonel demonstrou interesse em fazer parte da Companhia de Jesus e foi respondido pelo jesuíta padre Justino Lombardi. Com indicação de obter autorização familiar, o biógrafo informa que, sem explicação ou motivos aparentes, Leonel não entrou na Companhia nesse período. Coincidentemente, nesse período, todos são surpreendidos com a pouca saúde deste, que – ao acompanharmos suas correspondências no decorrer da vida – constatamos que foi um problema que se arrastou ao longo de sua existência.

Aos 14 anos cursava o 5.º ano ginasial com todo o brilho e vivacidade que lhe eram característicos, quando, refere a Mons. Leovigildo, ‘depois de uma partida de foot-ball, não interrompida apesar da chuvinha fria que sobreveio no segundo half-time..., um reumatismo generalizado afetou-lhe o coração’. Destarte, no meio de suas ânsias de sabedoria e santidade, caía ‘mortalmente ferido no seu órgão vital... Nunca mais voltou a ser o que dantes era (D’ELBOUX, 1953, p. 30).

Notamos, por inúmeras correspondências, os apelos de Leonel Franca por orações, pela enfermidade que o acompanhou ao longo de sua vida. Sua primeira crise quase o impediu de adentrar à Companhia de Jesus. Após apelos, tratamentos e cuidados com a saúde, a família de Leonel autorizou sua entrada na Ordem. No entanto, houve muitas resistências administrativas em aceitá-lo por sua condição limitada. Ao ser inserido na ordem jesuítica, ele teve uma melhora e surpreendeu, acelerou sua recuperação nos conteúdos escolares a fim de concluí-los em tempo hábil a adentrar na Ordem inaciana.

Sua matrícula em um colégio religioso foi fundamental à decisão em pertencer a uma Ordem religiosa. A Igreja Católica não realiza suas ações sociais, sozinha, para que haja o despertar da vocação, geralmente a família tem um grande papel nessa decisão. O habitus, necessário para reprodução do corpo clerical, é incentivado pela família e mantido pelo agente. Na família Franca, por exemplo, de nove irmãos que receberam seus estudos em colégios católicos, dois seguiram caminhos sacerdotais: Leonel e Leovigildo.

O período de entrada no seminário é denominado de noviciado. Esse tempo é caracterizado por iniciar o indivíduo na rotina e atos da congregação da qual faz parte. Os votos de pobreza, castidade e obediência são inseridos na rotina do noviço e lhe são ressaltados os costumes e horários. Nas correspondências e anotações de

Franca é possível notar que essas questões eram fundamentais em sua vida. Os efeitos do habitus explicam o estilo de vida do agente social, consistem em “[...] um conjunto de gostos, crenças e práticas sistemáticas característicos de uma classe ou fração de classe dada” (BONNEWITZ, 2003, p. 82). Entendemos que as opiniões políticas e ideológicas, o posicionamento e a concepção social são construídos de acordo com o estilo de vida proposto no campo ao qual o sujeito pertence.