• Nenhum resultado encontrado

IV. A importância da ficção científica

2. A ficção científica

2.2. Origem literária

No mês de Abril de 1911, Hugo Gernsback começa a publicar, por partes, nas páginas da revista Modern Electrics (revista cujo ele era o editor) um romance de antecipação científica intitulado Ralph 124 c 41+ no qual ele descreve algumas das invenções tecnológicas que transformavam o quotidiano dos homens do século XXVII (como por exemplo a televisão, o radar, etc.). De origem luxemburguesa, Hugo Gernsback (1884-1967) tinha emigrado para os Estados Unidos aos 20 anos, iniciando uma carreira de inventor nas áreas da eletricidade e da rádio, levando Gernsback a fundar, em 1908, uma revista técnica, Modern Electrics, na qual começou a publicar artigos sobre as “maravilhas da ciência”. Com o seu romance, ele alcançava uma etapa suplementar, passando da vulgarização à antecipação, ao imaginar o futuro que poderia decorrer do desenvolvimento das ciências e das técnicas. Em 1924, Gernsback anunciava a criação de uma revista intitulada Scientifiction, que aparecerá finalmente em 1926 com outro título: Amazing Stories. Pouco faltava para o forjar da palavra ficção científica. A palavra (ou melhor, a denominação) aparece finalmente no editorial do nº1 da Science Wonder Stories, revista criada por Gernsback em Junho de 1929. A palavra nascia, emergia, mas designava um género que lhe preexistia. Assim, Amazing Stories publicava, nos primeiros tempos da sua existência, vários textos de Jules Verne, H. G. Wells e de Edgar Allan Poe.

O que designava (e designa) realmente este termo composto por duas palavras em aparência pouco compatíveis (quase que antagónicas)? Desde o seu surgimento, o género conheceu diversas evoluções, foi submetido a várias mutações, hibridações, vivenciando mesmo algumas “revoluções”. Empreendermo-nos numa definição clara revela-se então bastante delicado, frágil. Devemos assim proceder em duas etapas. Em primeiro lugar, delimitaremos o seu território. Em oposição às literaturas do “real”, cuja ornamentação, reduzida à esfera terrestre, é uma réplica fiel do nosso mundo, a ficção científica pertence às literaturas do imaginário, cuja particularidade consiste no enriquecimento do nosso universo através do

56

contributo de criaturas, de civilizações, de invenções, de mundos que existem somente na imaginação dos autores. Nas literaturas do imaginário, a ficção científica vizinha-se com o fantástico e o sobrenatural, diferenciando-se destes últimos uma vez que ela pertence, segundo Pierre Versins (1972) às conjunturas romanescas racionais, espécies de visões cujos quadros ficcionais seriam plausíveis. Enquanto o fantástico e o sobrenatural não necessitam justificar-se da intrusão do irracional, do incrível no real, a ficção científica tem a necessidade de basear-se numa determinada racionalidade, numa base científica (pelo menos em aparência), antes de poder desenvolver as suas extrapolações. Como sublinha Versins (1972), a conjuntura romanesca racional é um ponto de vista sobre o universo que se esforça a tentar ultrapassar o “conhecido” sem, por isso, ter de abandonar esse instrumento privilegiado que é a lógica. Apesar de toda a “extra-ordinariedade” que podem caracterizar os universos, as sociedades, os seres, os eventos, os fenómenos com os quais a ficção científica confronta os seus leitores, eles constituirão sempre a expressão de um possível, o resultado de uma abordagem lógica, ponderada, raciocinada.

Uma vez delimitado, esquemática mas firmemente, o seu território, convém debruçarmo-nos sobre as diferentes definições atribuídas a este género ao longo da sua história. Segundo Baudou, Hugo Gernsback definia a sua “cientificção” como “une captivante histoire romanesque entremêlée de faits scientifiques et de visions prophétiques. Ces histoires stupéfiantes ne doivent pas être seulement des lectures passionnantes, elles doivent aussi être instructives. Ces nouvelles aventures décrites pour nous dans les scientifictions d’aujourd’hui, il n’est pas du tout impossible qu’elles soient les réalisations de demain57”. Se esta concepção da ficção científica como uma literatura didática ligada à noção de progresso, oferecendo uma extrapolação sobre o futuro a partir de certos conhecimentos científicos e técnicos permitiu delimitar um primeiro corpus de obras, ela tornou-se rapidamente obsoleta. Assim, John W. Campbell, redator-chefe da revista Astounding Science Fiction, propõe uma abordagem mais judiciosa que alarga o campo da ficção científica, ao afirmar que a metodologia científica assenta sobre o facto que uma teoria científica válida pode não só explicar fenómenos conhecidos, mas permite também a predição de novos fenómenos, ainda não descobertos. E remata que a ficção científica tenta utilizar uma abordagem análoga descrevendo, sob a forma de histórias, os resultados obtidos quando procedemos da mesma

57

57

forma, não só com máquinas, mas também com as sociedades humanas (Baudou, 2003). Em suma, Campbell convidava os escritores a copiar ou imitar a abordagem, o processo dos científicos para a conceção das suas intrigas.

Mais tarde, autores como Theodore Sturgeon deram ao homem um lugar central, ao afirmar que uma história de ficção científica é uma narração que giraria à volta de protagonistas humanos que teriam problemas humanos produzidos por mudanças sociais ou tecnológicas. Numerosas definições foram propostas ao longo dos anos, quer por praticantes do género, quer por universitários. Contudo, nenhuma conseguiu verdadeiramente impor-se. Este revés não se deve somente à dificuldade em circunscrever o género; ele traduz sobretudo as evoluções de que esta literatura foi alvo desde a sua denominação por Gernsback, e que continua de sofrer (ver o steampunk, etc.).

Como o estabelecimento de uma definição universal revela-se bastante árduo, deveríamos focar-nos na identificação de uma característica comum, de um denominador comum às obras do género. Nessa perspetiva, os irmãos Panshin (2010) escrevem que a ficção científica é a literatura da imaginação mítica. Nas histórias de ficção científica, as naves espaciais, máquinas para explorar o tempo, levam-nos para além de nós próprios, além de tudo o que nós conhecemos, em direção a realidades longínquas que nenhum de nós já viu – no futuro e no longínquo espaço. Na ficção científica, encontramos poderes desconhecidos, seres extraterrestres e mundos maravilhosos onde coisas que são impossíveis para nós, tornam-se possíveis. Estes símbolos de perspetivas transcendentes corresponderiam à essência verdadeira, genuína, da ficção científica, a fonte da fascinação que ela exerça. Este sentimento de espanto, de admiração a respeito da ficção científica, da leitura de textos desse género, deu azo ao surgimento da expressão (utilizada mais acima no texto) sense of wonder, que designa o efeito específico produzido sobre o leitor. Foi justamente esse sentimento de admiração e espanto que serviu durante algumas décadas a qualificar a ficção científica, antes de ser contestado e tornar-se desuso quando a ficção científica perdeu fê na ideia de progresso (Baudou, 2003).

58