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VI. Método e Aplicação: partir da teoria para a prática

1. Ponto de partida : acerca da análise

É impossível dissociar os objetos técnicos, que o homem produz para transformar a sua relação ao mundo, do imaginário que ele associa a esses objetos e aos seus usos. Por outro lado, Lucien Sfez (2002) nota que qualquer técnica é produtora de ficções. Essas ficções estão presentes em todo o processo tecnológico; desde a inovação até à sua difusão na sociedade. Não existem técnicas sem narrativas, sem histórias. Como referimos previamente, a ficção científica é rica em produção de narrativas carregadas de imagens que remetem para a nossa relação para com a tecnologia, constituindo tanto um lugar de produção – onde se elaboram novos imaginários à volta da ciência e da tecnologia – como de difusão – encenando e revezando os códigos de imaginários mais antigos.

Traduzir para a prática as principais ideias à volta das quais esta investigação se debruçou consistiria em olhar para o imaginário veiculado nos filmes de ficção científica como se de uma atualização de um arquétipo se tratasse: por exemplo, o medo da destruição, que encontramos em diversas épocas e culturas, reveste-se do dilúvio na cultura babilônica ou bíblica, enquanto no século XX representar-se-á sob a forma de um apocalipse nuclear. As imagens mudam, moldam-se em função das épocas, todavia, os arquétipos, (mitos fundadores) na génese das mesmas, mantêm-se. Descrever os imaginários consistiria em tentar compreender como uma época ou uma cultura atualiza os grandes arquétipos que preocupam e estruturam fundamentalmente a sociedade desde sempre, como ela reinterpreta os grandes mitos fundadores.

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Do leque que agrupa as principais obras do cinema de ficção científica disponível no ponto 2.5 do capítulo IV, decidi, para fins de análise, optar por uma amostra por conveniência, uma vez que pretendi captar ideias gerais, identificar aspectos críticos, e não visar forçosamente a objectividade científica. Pareceu-me a escolha certa para o meu estudo exploratório das figuras do imaginário tecnológico no cinema de ficção científica. Escolhi, assim, quatro filmes para fins de análise.

Metropolis, de Fritz Lang, foi uma escolha óbvia. É um dos primeiros filmes de ficção científica da história do cinema, é unanimemente considerado como um “clássico” do género e teve uma influência tremenda em várias produções ulteriores: a arquitectura particular de Metropolis influenciou Blade Runner (a estação de polícia, neste filme, é uma cópia de uma das torres de Metropolis), no universo do Superman, a cidade principal chama-se Metropolis, a sequência final (no cimo da catedral) foi recopiada por Tim Burton no sue primeiro Batman, com o afrontamento final entre o herói e o Joker, os criadores de BioShock, um dos jogos de vídeo mais plebiscitados dos últimos anos, inspiraram-se claramente da obra de Lang para a criação de Rapture, uma cidade submarina, Gunnm, manga de Yukito Kishiro, inspira-se na dialética da cidade alta e cidade baixa, etc.

O filme de Kubrick, 2001: A Space Odissey, impôs-se pelas mesmas razões que Metropolis. Grande clássico do género, encontram-se referências desta obra em inúmeras produções culturais ulteriores: filmes de ficção científica como Star Wars, Demolition Man, Independence Day, WALL-E, mas também na televisão, em desenhos animados como os Simpson (onde, num episódio intitulado O pónei de Lisa, a cena de abertura constitui numa paródia da cena de abertura de 2001, incluindo até a mesma banda sonora de Richard e Johann Strauss, ou ainda no episódio intitulado Homer no espaço, onde este último aparece sob a forma de um feto astral), South Park (no episódio Trapper Keeper, Kyle tem de desactivar o “coração” de um super-classificador, sendo uma referência à desactivação de HAL), nalguns jogos de vídeo como Fallout (onde ao longo do jogo, um robô repete as mesmas frases que as pronunciadas por Hal ao longo do filme), Portal (no qual o computador GLaDOS apresenta numerosas similitudes com Hal, tais como o olho vermelho, as pulsões mortíferas, ou ainda o desenvolvimento de uma personalidade própria) ou Dead Space (onde a descoberta de um estranho monólito extraterrestre e com efeitos extra-sensoriais constitui um dos elementos-chave do cenário), etc.

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Blade Runner não foge à regra, sendo um clássico do género, constantemente citado pelos apreciadores de ficção científica. O filme de Ridley Scott, apesar de uma primeira receção mitigada, impôs-se rapidamente como um filme de culto. O seu estilo sombrio e futurista servirá de referência para inúmeros filmes, desenhos animados, jogos de vídeo, etc. (o anime Ghost in the Shell, mas também Brazil, Terminator, Inception, etc.). Em 1993, o filme é selecionado, para ser conservado, pela National Film Registry da biblioteca do Congresso dos Estados-Unidos, em razão da sua importância cultural, histórica e estética76.

Por fim, a escolha de Minority Report deve-se a duas razões principais: a contemporaneidade das temáticas abordadas na obra de Spielberg, nomeadamente no que diz respeito à ideologia securitária e a forma como esta última interroga a questão filosófica clássica do livre-arbítrio face ao determinismo; por fim, a estética futurista do filme, repleto de artefactos e gadgets tecnológicos.

No que diz respeito à forma da análise das obras escolhidas, nunca esqueci a ideia de que analisar não é criticar. Analisar é decompor, isto é, descrever e, de seguida, estabelecer e compreender as relações entre esses elementos decompostos, ou seja, interpretar. Para tal, existe vários instrumentos disponíveis.

Jacques Aumont e Michel Marie (1999) identificam alguns instrumentos (artefactos intermediários) que usei na prossecução das minhas análises. Em primeiro lugar, os instrumentos de descrição estão no centro da análise. Nesta categoria, distinguem-se dois instrumentos: o corte e a segmentação. Relativamente ao corte, convém relembrar que um filme de 90 minutos é composto por 129 600 imagens diferentes e não percebidas individualmente pelo espectador, que se limita a seguir o desfile dos planos, eles próprios agrupados em unidades narrativas (as sequências). O corte aplicar-se-ia ao plano e à sequência. Por seu lado, a segmentação remete para a análise de uma sequência tendo em conta questões como a delimitação da sequência, a sua estrutura interna (poderá estabelecer-se uma tipologia?), a sucessão das sequências, etc.

Em segundo lugar, poderíamos usar instrumentos “citacionais”, tais como um trecho do filme, um fotograma (mas aqui, perde-se a banda sonora e o movimento), a banda sonora, etc.

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Por fim, existem instrumentos documentais que remetem para a obtenção de dados anteriores e posteriores à difusão do filme, tais como o cenário, o orçamento do filme, reportagens acerca do filme, dados económicos (receitas), etc.