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Os antecedentes do estudo e os determinantes da criação do Hospital do Centenário

PILARES DAS INSTITUIÇÕES (SCOTT, 1995)

3.2 Os antecedentes do estudo e os determinantes da criação do Hospital do Centenário

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Ver HOMENAGEM ao Estado. Álbum de Pernambuco. Recife, 1933. Publicação de propaganda do Estado suas indústrias e comércio. Localização: Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico do Recife.

O marco inicial do estudo ocorreu com o lançamento da pedra fundamental de um futuro hospital modelo, em 7 de setembro de 1922, período dos desdobramentos da Primeira Guerra Mundial. Vale registrar que, na época da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), uma pandemia de gripe disseminou-se, atingindo a Europa, EUA e Ásia, matando milhares de pessoas, alastrando-se a outros países, assustadoramente. As cidades portuárias foram as mais atingidas, por essa pandemia de gripe, em 1918, com grande impacto para o reconhecimento da necessidade de se ampliar os serviços de saúde no país. O Rio de Janeiro, como outras cidades portuárias do Brasil, a exemplo das de Santos, Recife e Salvador, também sofreu com a pandemia.

O porto do Recife, sendo o terceiro mais importante à época recebeu em seu ancoradouro navios para exportação e importação e, dentre esses, um navio de Dakar59 era esperado. Acredita- se que a causa da disseminação da gripe no Estado está no desembarque e contatos de pessoas com outros passageiros de navios que antecederam aquele procedente de Dakar.

As autoridades não levaram a sério a pandemia até reconhecer sua gravidade. Isso ocorreu tanto na capital da República quanto em outras cidades como no Recife. As informações chegavam ao Rio de Janeiro através do Dr. Nabuco de Gouveia, médico em missão na França que para lá fora estudar a moléstia. O próprio Dr. Carlos Seidl, Diretor da Saúde Pública, esteve a bordo de um navio que veio da Europa, informando não haver motivo para intranqüilidade, além de afirmar que não era a “influenza espanhola” que atingia Dakar e Oran e, sim, uma gripe infecciosa60. No Recife, os jornais criticavam as autoridades sobre a determinação de deixar navios ancorados no porto com doentes a bordo e até recebê-los em terra, como foi o caso de dois

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Ver Lima (1982, p. 169). Ver Diniz (1994, p. 74). Chegavam ao Recife, notícias sobre pessoas acometidas de gripe nos navios brasileiros que se encontravam em Dakar, em missão de guerra. Falece o tenente farmacêutico da armada José Brasil da Silva, em decorrência de gripe. Acredita-se ter sido também um navio, vindo de Dakar, uma das causas da pandemia no Estado. Em 8 de outubro de 1918, finalmente o Diretor de Higiene Abelardo Baltar em nota oficial considera a gravidade e que a epidemia existe de fato. Já doente, e internado no hospital Santa Águeda, vem a falecer em 13 de outubro do mesmo ano, vitimado pela gripe espanhola, assim denominada por se acreditar que viera da Espanha na época.

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passageiros encaminhados para tratamento no hospital de isolamento da cidade. O responsável pela saúde do porto do Recife, o médico Fernandes Barros, foi bastante criticado por isso, enquanto o diretor de Higiene, Abelardo Baltar, alegava estar preparado para combater a doença. Continuando as críticas sob as medidas preventivas do governo, os jornais de oposição julgavam que, esse, ao impedir a descida dos doentes dos navios prejudicava o comércio, atingindo, por sua vez, os interesses do Estado61.

No Brasil, o navio Itassucê conduzia passageiros doentes a bordo, passando por portos do Norte que informavam sobre casos da doença no porto do Rio de Janeiro. Porém, nenhuma atenção foi dada ao caso; pois desceram à terra os doentes sem que o diretor da Saúde Pública tomasse alguma providência. A disputa pelo poder continuou no país, às vezes indiferente aos problemas de saúde. O poder das oligarquias agrárias permanecia com os grandes cafeicultores à frente da disputa política, como é o caso do presidente da República, Rodrigues Alves, fazendeiro de café, reeleito para a o período de 1918 a 1922.

Em sua primeira gestão de 1902 a 1906, ele se opôs de maneira veemente ao esquema de valorização do café. Os políticos do Nordeste reagiram e Rosa e Silva62 foi um deles. Entretanto, Rodrigues Alves não chegou a tomar posse, morrendo em 16 de janeiro de 1919, vítima da gripe.

Quando as autoridades tomaram consciência da pandemia, a gripe já havia feito várias vítimas. No Recife, o empenho foi maior após a morte de Abelardo Baltar, assumindo a Diretoria de Higiene, Otávio de Freitas63, o qual, em 15 de outubro de 1918, determinou a notificação compulsória dos casos, entre outras medidas adotadas. Na capital da República, Carlos Chagas

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Ver Lima (1982, p.174).

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Em 4 de outubro de 1857, nasce em Pernambuco, Francisco de Assis Rosa e Silva. Rosa e Silva foi Vice- Presidente da República no governo de Campos Sales, durante o período de 1898-1902. Em 1924, é reeleito senador, com mandato até 1932, fez parte da comissão executiva do Partido Republicano Conservador. E obras como a do porto do Recife e o saneamento da cidade contaram com o seu apoio. Ver Vainsencher [s.d.].

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foi convidado pelo então Presidente Wenceslau Brás Pereira Gomes64 para chefiar a campanha contra a epidemia de gripe, e, posteriormente, pelo Presidente Epitácio Pessoa, para elaborar um novo código para a saúde pública, vindo a ser nomeado por esse para a Diretoria Geral de Saúde Pública, em outubro de 1919. As disputas, no entanto, para a gestão de 1919 a 1922 foram acirradas entre os nordestinos Rui Barbosa e Epitácio Pessoa. Sendo esse último eleito, tratou, em seu programa de governo, entre outras ações, aquelas voltadas ao saneamento do país.

Um longo período de depressão econômica também acontece no Recife. O sucesso da Revolução Russa, em 1917, tem reflexos no Brasil como em outros países, despertando nos trabalhadores a consciência de suas péssimas condições de trabalho, salários baixos, levando-os a reações como protestos políticos e conspirações65. Os diversos grupos que disputavam o acesso ao poder suscitavam o surgimento de vários movimentos sociais como o movimento operário e o movimento tenentista66 e, com isso, as revoltas militares prolongaram-se de 1922 a 1927.

O movimento operário, próprio da classe trabalhadora urbana foi bastante limitado e sem muito êxito. As greves quando deflagradas só eram bem-sucedidas quando atingiam determinados setores como os portos e ferrovias. Pernambuco, em sua capital, foi palco, em 1917, da primeira grande greve trabalhista67, que ocupou praticamente a cidade do Recife.

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Teve a sua primeira gestão no período de 1914 a 1918.

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Ver Azevedo (1996, p. 26). Houve dois movimentos de conspirações no Recife de acordo com Souza Barros, nos dois últimos anos do governo de Sérgio Loreto. O primeiro, em abril de 1925, denominado “Conspiração da Rua Velha” e seria contra o governo do Estado. Há quem dissesse não corresponder propriamente a uma conspiração e sim de planos para tal. O capitão Severino Gamboia Cardim foi preso como principal suspeito. O segundo chamou-se “Movimento Cleto Campelo” e ocorreu no início de 1926. Foi um movimento que não ficou restrito à ação que era desenvolvido por esse oficial [tenente], mas quase como um ato de desespero pelo insucesso da intentona que tomaria de assalto os quartéis em 8 de fevereiro de 1926. Tida como uma longa conspiração, serviu para apoiar a Coluna Prestes em sua marcha rumo ao Nordeste e para que essa tivesse o domínio de um grande centro urbano, como o Recife. Ver Barros (1972, p.114).

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Ver Fausto (1999a).

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Em 1919, ocorreu uma greve geral em Pernambuco, dessa vez organizada pela Federação dos Trabalhadores e liderada pelo professor e advogado Joaquim Pimenta, com a adesão do comércio e apoiada pela imprensa. O governo, na época, teve que recuar em alguns pontos68.

Uma leitura do cotidiano da vida urbana e atuação de um movimento social da classe trabalhadora, conforme a literatura, permite se vivenciar esse momento. Por exemplo, o romance “O Moleque Ricardo”69 retrata a política, na linguagem empregada na época por trabalhadores, na vida de um sertanejo. Ricardo, neto de senhor de engenho, vai para a cidade grande em busca de melhores condições de trabalho. Na narrativa do autor, o leitor percebe o choque cultural vivido pelo moleque entre a vida do campo e a urbana, além dos conflitos existentes como o da greve pela classe operária. Delineia-se a dimensão social e política da época bem como questões relativas à higiene e à saúde pública. Em sua narrativa, o autor mostra a alienação vivida no cotidiano das pessoas simples, relacionadas às transformações sociais e condições de higiene. Já trabalhando, o moleque escuta do politizado novo masseiro de pão a seguinte aclamação “Vocês não ajudam o doutor Pestana70 a levantar o operariado. Na Rússia foi assim. Ninguém queria saber de Lenine. E hoje quem manda na Rússia é ele. E, sendo ele, é mesmo que ser operário”. Continuando a narrativa, o autor conta que Ricardo tinha medo de voltar para casa, “horror de encontrar a mulher, a sogra e os passos que a morte dava por perto dele. Horrorizava-se do quarto abafado, da tosse insistente de Odete [sua mulher]. Ninguém ali se importava com a tuberculose” (REGO, 1995, p. 123 e 163).

Nos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, o movimento operário apresentou crescimento, mas não o suficiente para despertar o interesse e a atenção da elite. Despertou, sim,

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Como taxas de impostos de consumo: xarque, bacalhau, feijão, farinha entre outros. Taxas de registro profissional, imposto de renda de negócios e taxas sobre as casas de mais de um ramo.Ver Barros (1972, p. 93).

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Ver Rego (1995). O Moleque Ricardo, romance de José Lins do Rego.

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interesse, a classe média profissional, os estudantes de escolas militares, as escolas superiores e os jovens militares. Os tenentes, por sua vez, eram tidos como salvacionistas, pois assim eram chamados por pretenderem salvar as instituições republicanas; consistindo a salvação em “reduzir o poder das oligarquias nas áreas onde isso parecia mais fácil e onde eram chocantes as desigualdades sociais” (FAUSTO, 1999a, p. 313).

Os movimentos tenentistas tiveram sua expressão forte na concepção da sociedade e no poder existente. O primeiro deles a ocorrer foi a revolta tenentista dos dezoito do Forte de Copacabana a 5 de julho de 1922. O segundo, a Coluna Paulista, em 5 de julho de 1924, culminando com a propagação em 1925 da idéia de revolução chamando a população a colocar- se contra as oligarquias, veio a dar origem à Coluna Prestes.

A coluna Prestes, muito difundida em Pernambuco, deixou os políticos, na época, e o próprio governo do Estado atentos e combativos. Sérgio Loreto, interventor de Pernambuco de 1922 a 1926, manteve a ordem no Estado, adotando medidas enérgicas para combater organizadores trabalhistas, além de mediar disputas políticas71. Com essa situação em curso nas principais capitais do país, na cidade do Recife, um movimento surge da sociedade, voltado aos interesses da elite pernambucana, dessa vez com repercussão no campo da saúde, com a criação de um hospital modelo, no qual a população também seria beneficiada, face à ampliação de leitos.

A luta do campo político que aqui se configura, mostra, além dos mecanismos sociais utilizados por determinados agentes, que os determinantes políticos e sociais, no decurso do

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Ver Levine (1980, p. 134). Entretanto, Sérgio Loreto assume o governo após a morte de um borbista, o governador José Rufino Bezerra, e enquanto estava no governo, rosistas, chefiados por Estácio de Albuquerque Coimbra, Vice- Presidente da República se preparavam para a sucessão do governo em Pernambuco, o que ocorreu com a volta de Estácio Coimbra para o Estado, agora como governador eleito para 1926 a 1930. As disputas em si eram provenientes dos grupos políticos ligados aos borbistas [Manoel Borba] e rosistas [Francisco da Rosa e Silva], muito atuantes e ávidos pelo poder no início do século XX em PE. Tanto borbistas, quanto rosistas eram grupos oligárquicos.

tempo se constituem em elementos fundamentais para o estabelecimento de leis e regras, cuja estrutura é determinada pela distribuição de capital. O campo político como diz Bourdieu (1989, p. 164)

é o lugar em que se geram, na concorrência entre os agentes que nele se acham envolvidos, produtos políticos, problemas, programas, análises, comentários, conceitos, acontecimentos, entre os quais os cidadãos comuns, reduzidos ao estatuto de ‘consumidores’ devem escolher, com probabilidades de mal-entendido tanto maiores quanto mais afastados estão do lugar de produção.

Quando se descreve os antecedentes do estudo neste contexto, é possível situar o campo político, em cujo espaço o jogo político ocorre, e onde as ações de saúde eram disputadas. O envolvimento da sociedade se faz presente e os profissionais como os da classe médica se destacavam à época. A sociedade pernambucana, constituída por mulheres se destacou no empreendimento de construção do HC. O reflexo dessa disputa política está claro na expressão de sua Associação Mantenedora na convocação para mudança de seu estatuto, quando da preocupação do objeto de sua reunião. Havia um espírito de solidariedade engrandecendo o nome de Pernambuco, nesse empreendimento, mas, não foi suficiente, pois houve uma questão de gênero na administração da Associação Mantenedora, com os homens assumindo o poder com a reforma de seu estatuto. A seguir, destaca-se a convocação.

Hospital do Centenário. Para reforma de seus estatutos e eleição de nova diretoria realisará a ‘Associação Mantenedora do Hospital do Centenário’ uma sessão de assembléia geral amanhã, 4 do corrente mez, as 2 horas da tarde no edifício do hospital á estrada dos Afflictos. Não só pela importancia o assumpto que constitue objeto da reunião como também por se offerecer uma excellente opportunidade para todos os associados percorrerem os diversos serviços sumptuoso e moderníssimo hospital, a ser inaugurado breve, e que incontestavelmente virá engrandecer o nome de Pernambuco, os sentimentos de solidariedade e o gráo de cultura de nossa sociedade, é de prever uma grande concorrência a essa reunião72.

O discurso deixa claro que não basta o sentimento de solidariedade para com o interesse das mulheres à frente da Associação, como é sabido. O jogo político, nesse contexto, ocorria num espaço onde as práticas de saúde eram exercidas por médicos; junto às forças externas ao

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ambiente institucional, dessa feita, composto por homens da sociedade pernambucana e legitimando a intenção de se constituir o jogo político da ampliação de novas tecnologias em saúde.