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5 SISTEMA CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIO

5.7 Os artigos 109 e 110 do CTN

Como visto, o constituinte de 1988, ao proceder à repartição da competência tributária, valeu-se de conceitos constitucionais, recepcionando os sentidos que lhes foram atribuídos pelos juristas. Esse sentido, na maioria das vezes, advém de outros ramos do direito, a exemplo dos signos propriedade, serviço e mercadoria.

É por essa razão que o Código Tributário Nacional veio a estabelecer, no artigo 109, que “[…] princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários”. Positivou o legislador o entendimento de que o intérprete, ao buscar o conteúdo de significação dos enunciados constitucionais, deve buscar o sentido preexistente dos conceitos utilizados pelo constituinte, os quais foram recepcionados pela Carta Magna. E ressalvou o legislador complementar que essa tarefa não se estende à identificação dos efeitos tributários da norma, o que deve se dar a partir da legislação tributária, tendo

por base, evidentemente, a repartição constitucional da competência impositiva.

Ato contínuo, dispôs o legislador complementar, no artigo 110 do Código Tributário Nacional, que

[…] a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal […] para definir ou limitar competências tributárias.

Nota-se que o legislador complementar reconheceu a recepção, pelo Texto Constitucional, de conceitos preexistentes, utilizados na linguagem jurídica e oriundos do direito privado. Vedou, assim, qualquer ação do legislador infraconstitucional tendente à alteração de sentido de tais conceitos com vistas a modificar as competências tributárias.

Pensamos que tal vedação não precisaria estar expressa no Código Tributário Nacional. De um lado, a Constituição brasileira, sobre ser minuciosa em matéria tributária, é rígida e inflexível, não sendo permitido ao legislador infraconstitucional interferir, direta ou indiretamente, na repartição da competência tributária; de outro lado, os conceitos constitucionais devem ser respeitados na forma como recepcionados, inexistindo no sistema qualquer norma que prescreva autorização diversa.237 Ademais, seria incompatível com

237 No sentido do exposto é o voto do Ministro Sepúlveda Pertence, no RE 116.121-3/SP:

“Sr. Presidente, o art. 110 do Código Tributário Nacional prescreve: “a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias”. Trata-se de uma disposição de valor puramente didático, expletivo: a meu ver, ele está implícito na discriminação constitucional de competências tributárias. Sem leva-lo estritamente em conta, a discriminação constitucional de competências se torna caótica, quando não ociosa” (STF,

o direito admitir-se, para o signo propriedade, um sentido no Direito Civil e outro sentido no Direito Tributário. O direito é uno – tais divisões são feitas tão somente para fins de estudo –, de tal sorte que o signo deve conter um único sentido, comum na linguagem jurídica.

Nesse sentido são as lições de Rubens Gomes de Sousa, ao comentar o aludido artigo 110 do Código Tributário Nacional:

Se a Constituição se refere a uma figura de direito privado, sem ela própria a alterar para efeitos fiscais, incorpora ao direito tributário aquela figura de direito privado que, por conseguinte, se torna imutável para o legislador fiscal ordinário, porque se converteu em figura constitucional.238

Ao legislador infraconstitucional tributário é permitido tão somente aclarar o sentido recepcionado pela Constituição na repartição da competência tributária; jamais alterá-lo. Consoante o mestre Geraldo Ataliba, “[…] o legislador não pode manipular a própria competência”.239 Vimos, no

tópico anterior, que as tentativas do legislador infraconstitucional de alterar os conceitos constitucionais de faturamento e de serviço foram amplamente rechaçadas pelo Supremo Tribunal Federal.

A norma do artigo 110 do Código Tributário Nacional foi o principal fundamento da decisão da Corte Suprema em caso que envolvia o conceito constitucional de serviço, para fins de exigência do Imposto sobre

Tribunal Pleno, RE 116.121-3/SP, Rel. Min. Octavio Gallotti, Rel. para acórdão Min. Marco Aurélio, j. 11.10.2000, DJ 25.05.2001).

238 Normas de interpretação no Código Tributário Municipal. In: ATALIBA, Geraldo.

Interpretação no direito tributário. São Paulo: EDUC, Saraiva, 1975, p. 379.

239 ICMS – não incidência na ativação de bens de fabricação própria. Revista de direito

tributário. São Paulo: Malheiros, n. 63, 1993, p. 201.

Serviços (RE nº 116.121-SP240). Os Ministros que votaram pela

inconstitucionalidade da exigência de ISS sobre a locação de bem móvel justificaram o seu posicionamento no artigo 110 do Código Tributário Nacional, aduzindo que a definição de locação de bem móvel no Direito Civil não pode ser modificada para fins tributários. O voto vencedor do Ministro Marco Aurélio bem demonstra o exposto:

Em face do texto da Constituição Federal e da legislação complementar de regência, não tenho como assentar a incidência do tributo, porque falta o núcleo dessa incidência, que são os serviços. Observem-se os institutos em vigor tal como se contêm na legislação de regência. As definições de locação de serviços e locação de móveis vêm-nos do Código Civil e, aí, o legislador complementar, embora de forma desnecessária e que somente pode ser tomada como pedagógica, fez constar no Código Tributário Nacional o seguinte preceito:

Art. 110 […]

O preceito veio ao mundo jurídico como um verdadeiro alerta ao legislador comum, sempre a defrontar-se com a premência do Estado na busca de acréscimo de receita.

Essas lições nos trazem à mente a forma como deve o intérprete construir a significação do artigo 32 do Código Tributário Nacional241,

segundo o qual

[…] o imposto, de competência dos Municípios, sobre a propriedade predial e territorial urbana tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município.

240 STF, Tribunal Pleno, RE 116.121-3/SP, Rel. Min. Octavio Gallotti, Rel. para acórdao

Min. Marco Aurélio, j. 11.10.2000, DJ 25.05.2001.

241 Vale registrar que, com o advento do Decreto-lei nº 57/66, passou a prevalecer o critério da

destinação do imóvel, para fins de incidência do IPTU. Sobre o tema, ver Aires Barreto (Curso de Direito Tributário Municipal. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 199-204).

Considerando que o constituinte valeu-se do conceito preexistente no direito civil do signo propriedade, forçoso seja construída uma norma compatível com esse sentido, sob pena de modificação da competência tributária. Se assim é, a posse de bem imóvel a que se refere o legislador deve ser entendida como a posse ad usucapionem, ou seja, aquela que pode levar ao domínio, por ser a posse direta incompatível com o conceito constitucional de propriedade. Entendimento diverso tem sido propugnado pelos Municípios, a exemplo do Município de Santos, ao pretenderem exigir o IPTU dos arrendatários de área portuária. Contudo, também esse entendimento tem sido rechaçado pelos Tribunais, tal como ocorreu com os outros dois exemplos de que nos valemos.242

Feitas essas considerações, passaremos a discorrer sobre a mutação do conceito constitucional de mercadoria, inexorável diante da realidade atual.

242 Ver, nesse sentido, dentre as várias decisões existentes: STJ, Segunda Turma, AgRg no

REsp 1350801-DF, Rel. Min. Humberto Martins, j. 21.02.2013, DJe 05.03.2013; STJ, Primeira Turma, AgRg no Ag 1341800-SP, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 27.11.2012, DJe 03.12.2012; e STJ, Segunda Turma, AgRg no REsp 1173678-SP, Rel. Min. Castro Meira, j. 23.08.2011, DJe 30.08.2011.

6 A MUTAÇÃO DO CONCEITO CONSTITUCIONAL DE MERCADORIA