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3 A INTERPRETAÇÃO DA NORMA JURÍDICA

3.5 Texto e contexto

O texto normativo, objeto da interpretação, é posto no sistema em determinada circunstância histórica, que não pode ser ignorada pelo intérprete na busca pela norma jurídica. Da mesma forma, não pode o intérprete desprezar o momento atual em que a norma convive no sistema. O momento em que o enunciado prescritivo foi criado, a razão que o motivou, bem como o comportamento atual da sociedade diante de determinadas situações são aspectos importantes na identificação da norma jurídica. Todos esses fatores conformam o chamado contexto.

Como bem destacara Paulo de Barros Carvalho, “[…] não há texto sem contexto, pois a compreensão da mensagem pressupõe necessariamente uma série de associações que poderíamos referir como linguísticas e extralinguísticas”.97 E continua o autor:

[…] podemos mencionar o texto segundo um ponto de vista interno, elegendo como foco temático a organização que faz dele uma totalidade de sentido – operando como objeto de significação no fato comunicacional que se dá entre emissor e receptor da mensagem – e outro corte metodológico que

97 Direito tributário – linguagem e método. 5. ed. São Paulo: Noeses, 2013, p. 190.

centraliza suas atenções no texto enquanto instrumento da comunicação entre dois sujeitos, tomado agora como objeto cultural e, por conseguinte, inserido no processo histórico- social, onde atuam determinadas formações ideológicas.98

Deveras, por texto entende-se não somente o suporte físico, como também os fatores que compõem o contexto, dado serem passíveis de interpretação, ainda que indiretamente. Todos os aspectos sociais, culturais e ideológicos que dão rumo à interpretação da norma jurídica também são tidos como textos.99

Fabiana Del Padre Tomé afirma que o estudo do direito positivo demanda a presença do contexto, relacionando-o aos elementos da cultura de uma comunidade. “Esse contexto decorre de relações intersubjetivas, formando pré-compreensões em determinadas condições de espaço e de tempo. Eis a cultura, realizada no âmbito do historicismo social”.100

Não se pode negar que a realidade social apresenta papel relevante no processo de interpretação. Como bem advertira Eros Grau, “tudo andará bem, harmonicamente, se a coerência interna do texto normativo for observada na sua necessária atualização à realidade”.101 O modo de agir da

sociedade, as suas crenças e os seus valores, aos olhos do intérprete, conduzem à atribuição de certa significação para um dado enunciado, porém não a mesma a ser atribuída por outro intérprete.

98 Direito tributário – linguagem e método. 5. ed. São Paulo: Noeses, 2013, p. 190-191.

99 Cf. Tácio Lacerda Gama (Sentido, consistência e legitimação. In: HARET, Florence;

CARNEIRO, Jerson (Coord.). Vilém Flusser e juristas. São Paulo: Noeses, 2009, p. 243- 244).

100 Ibid., p. 342.

101 Atualização da Constituição e mutação constitucional (art. 52, X da Constituição).

Revista acadêmica da escola de magistrados da Justiça Federal da 3ª Região. São

Paulo: Escola de Magistrados da Justiça Federal da 3ª Região, n. 1, jun./ago. 2009, p. 11.

Luis Alberto Warat bem demonstra a importância do contexto na construção da norma com o exemplo da placa que contém o enunciado “é proibido usar tanga”:

O sentido da mensagem, no entanto, mudará se essa expressão figurar em um cartaz da praia de Ipanema ou na porta de entrada de um campo de nudismo. A situação, em ambos os casos, indicar-nos-á a adoção de diferentes comportamentos em relação à tanga. Numa das hipóteses, usar uma peça de banho maior; em outra, nada usar.102

Eis a importância do contexto fático no processo de interpretação. A mensagem construída pelo intérprete pode variar diante da realidade social. Nesse sentido são, ainda, as lições de Aurora Tomazini de Carvalho:

Trabalhando com os pressupostos da teoria comunicacional o que aproxima os sentidos e consequentemente as realidades significativas construídas (textos em sentido amplo) é o contexto comum e o fato dos intérpretes vivenciarem culturas próximas. Muda-se o contexto, modifica-se a significação. Muda-se o intérprete ou seus referenciais culturais e modifica-se a significação.103

Acreditamos ser tão forte a influência do contexto na atividade do intérprete que ela poderia até justificar a alteração de sentido dos conceitos fechados utilizados pelo constituinte na repartição da competência tributária, conforme pretendemos demonstrar no presente trabalho.

Inclusive, todos esses fatores relacionados com o agir da sociedade oferecem maior legitimação ao discurso jurídico. Evidentemente, a

102 O direito e sua linguagem. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995, p. 67.

103 Curso de teoria geral do direito. O constructivismo lógico-semântico. 3. ed. São Paulo:

Noeses, 2013, p. 232.

percepção do comportamento da sociedade e de seus valores confere maior credibilidade ao discurso apresentado pelo intérprete. A argumentação do autor pautada nas formas de comunicação existentes no momento em que foi editada uma determinada norma, por exemplo, mostra-se mais convincente diante da argumentação do réu, que se resume a propugnar pela não aplicação dessa norma. Para o aplicador do direito, uma proposta de interpretação inserida num dado contexto apresenta maior aceitação.104

Deveras, a interpretação de qualquer texto jurídico deve levar em consideração, além de outros textos também jurídicos, as circunstâncias de sua edição. Os contextos fático, histórico e até moral não podem ser ignorados pelo intérprete, sob pena de o discurso produzido não ser persuasivo.

José Souto Maior Borges já chamara atenção para o método da hermenêutica histórica, na interpretação da norma jurídica. Refere-se o jurista não à análise da evolução de um dado conceito ao longo do tempo (método da hermenêutica histórico-evolutiva), mas ao retorno da origem. Propugna que a análise contextual segundo o elemento histórico influencia fortemente na interpretação do direito positivo.105

Nas palavras de Lourival Vilanova, a hermenêutica histórica corresponde, pela volta ao passado, a uma ruptura epistemológica fundamental. É radical porque vai à raiz do conhecimento dos fenômenos normativos que o jurista pretende descrever e explicar.106

104 Cf. Tácio Lacerda Gama (Sentido, consistência e legitimação. In: HARET, Florence;

CARNEIRO, Jerson (Coord.). Vilém Flusser e juristas. São Paulo: Noeses, 2009, p. 245).

105 Teoria geral das isenções tributárias. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 134.

106 Lógica Jurídica. São Paulo: Bushatsky, 1976, p. 72.

Adverte, ainda, José Souto Maior Borges:

Propõe-se um novo método de exegese para as normas tributárias. E não o único correto e verdadeiro. Não aspira, a hermenêutica histórica, substituir os outros métodos exegéticos, mas pretende conviver com eles como um instrumental valioso para o progresso da ciência do Direito Tributário.107

A interpretação histórica apresenta inequívoca relevância para os fins do presente trabalho, que requer o ingresso nos planos semântico e pragmático para a análise do sentido e alcance do signo mercadoria. Consoante as lições de Paulo de Barros Carvalho,

[…] o critério de interpretação denominado tradicionalmente pela doutrina de histórico ou histórico-evolutivo encontra-se tanto no nível semântico como no pragmático da linguagem, auxiliando na fixação das denotações e conotações dos termos jurídicos, bem como na sua aplicação pelo intérprete. Análise desse jaez requer investigações das tendências circunstanciais ou das condições subjetivas e objetivas que cercaram a produção da norma, esmiuçando a evolução do substrato de vontade que o legislador depositou no texto da lei.108

Em suma, todo texto de lei é introduzido no sistema jurídico num dado contexto. Inexoravelmente, esse contexto vai influenciar na construção da norma jurídica. Um intérprete que desconhece o momento histórico em que determinada lei foi editada ou, ainda, que desconhece a motivação dessa lei certamente exercerá juízo de valor diverso de outro intérprete que tem conhecimento dessas variáveis.

107 Direito tributário – linguagem e método. 5. ed. São Paulo: Noeses, 2013, p. 134.

108 Parecer exarado sobre a incidência do ICMS na entrada, no território nacional, de

aeronaves importadas com suporte em contratos de arrendamento operacional. São

Paulo, 2007 [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por

<simone@airesbarreto.adv.br> em 21 mar. 2008, p. 11.

O preâmbulo da Constituição e a exposição de motivos109 são

exemplos de enunciados – frutos da enunciação-enunciada – que apresentam o contexto em que determinado texto de lei foi editado.110 O preâmbulo da

Constituição funciona como um vetor valorativo, de forte influência para as demais regras do sistema. Segundo o escólio de Paulo de Barros Carvalho:

[…] o Preâmbulo constitucional é portador de carga prescritiva como qualquer outra porção do direito posto. Distingue-se, porém, pela hierarquia. É a palavra do legislador constituinte que remete à própria instância da enunciação do Texto Maior, anunciando valores que funcionam como verdadeiros dêiticos para localizar, no tempo e no espaço, o momento e o lugar cultural em que se implantou a Constituição de 1988.111

Tal como o preâmbulo da Constituição, a exposição de motivos possui força prescritiva. Não raras são as vezes em que o intérprete se depara com informações valiosíssimas sobre o alcance de uma norma jurídica na exposição de motivos da lei.112 Ainda segundo Paulo de Barros Carvalho:

109 Ao discorrer sobre o preâmbulo, a ementa e a exposição de motivos, Paulo de Barros

Carvalho afirma que “[…] o tom prescritivo, todavia, está igualmente presente nas três figuras, porquanto quem legisla não está credenciado a manifestar-se de outra maneira que não seja a ordenadora de condutas. Ainda que o autor empregue meios sintáticos que sugiram a forma de relato descritivo, como é comum, sua função é, fundamentalmente, disciplinadora de comportamentos intersubjetivos” (Derivação e positivação no direito

tributário. V. I. São Paulo: Noeses, 2011/2012, p. 20).

110 Pensamos que o contexto engloba a intenção do legislador ao editar determinado texto de

lei, a qual se torna relevante para o processo interpretativo quando vertida em linguagem prescritiva. É o caso da exposição de motivos. Por essa razão, parece-nos que o critério teleológico de interpretação, o qual busca o objetivo da norma, não é propriamente um critério, mas um aspecto a ser levado em consideração na construção da norma jurídica.

111 Ibid., p. 23.

112 Paulo Fernando Souto Maior Borges qualifica a justificação como requisito

constitucional de validade do ato legislativo. São suas palavras: “Assim sendo, propomos a utilização de um conceito alternativo para a mens legislatoris, sendo esta entendida não como um desejo íntimo do legislador, mas como um requisito constitucional de validade do ato legislativo (normativo), sua fundamentação devidamente objetivada, pela forma que melhor aprouver ao legislador na persecução do fim constitucionalmente delimitado

[…] a exposição de motivos costuma dar ênfase ao clima histórico-institucional em que o diploma foi produzido, discutindo, muitas vezes, as teses em confronto na circunstância da elaboração, para justificar (dar os motivos) a eleição de determinada tendência dogmática.113

Em se tratando de prescrições que conformam o ordenamento jurídico114, o seu intercâmbio na atividade interpretativa decorreria da

intertextualidade, a evidenciar que, em algumas situações, o contexto e a intertextualidade estão intimamente relacionados.

Destarte, a vontade do legislador não pode ser considerada de forma isolada na interpretação da norma jurídica. A vontade do legislador é só um dos aspectos que conformam o contexto. Deve, assim, estar associada a esses outros aspectos – a exemplo da realidade fática – que também interferem na atividade do intérprete.

de atribuir publicidade à motivação, seja por intermédio das exposições de motivos, seja pelos considerandos legislativos, seja pelas justificativas de proposições, seja pelos anais legislativos, etc.. Algum dentre esses elementos há de espelhar as discussões travadas a respeito de determinado projeto de lei e o entendimento congressual prevalecente, que fez com fosse aprovada ou rejeitada determinada parte do texto originalmente proposto, as razões do veto parcial, etc.” (Sobre o princípio democrático na fundamentação da

atividade tributária. Uma proposta hermenêutica de utilização de seus desdobramentos

no âmbito do direito tributário. 2008. Tese (Mestrado me Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008).

113 Derivação e positivação no direito tributário. V. I. São Paulo: Noeses, 2011/2012, p. 20-

21.

114 É inconteste a importância da justificação ou da exposição de motivos para o Direito,

não apenas ao Direito Tributário.

Em todos os ramos do Direito, a motivação da edição de uma norma revela-se imprescindível à compreensão de seu alcance. Nesse sentido são as seguintes decisões: STF - ADI-MC 2034/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sidney Sanches, DJ 19.09.2003; STJ - AgRg no Ag 1166891/RJ, Rel. Min. Luiz Lux, DJe 18.11.2009, e HC 150892/RS, Rel. Min. Nilson Naves, DJe 07.06.2010.

Nesse sentido, Ezio Vanoni já destacara que a busca pela vontade do legislador, com vistas à regulamentação de uma relação nova, pode não se mostrar adequada. São suas lições:

Quando, em face de uma relação nova da vida social, procura- se, não a vontade de um legislador imaginariamente em condições de avaliar os elementos novos da própria relação, mas a vontade do legislador que criou o dispositivo que se pretende aplicar, chega-se ao resultado de confrontar uma necessidade nova da vida social com princípios decorrentes da vontade de um legislador anterior às condições sociais, econômicas, éticas, que inspiram a nova relação. Dessa maneira, realiza-se o absurdo de uma vontade legislativa supostamente inalterável e superior aos próprios fatores da vida que criam e modificam o direito.115

Portanto, a vontade do legislador que produziu o enunciado, considerada isoladamente, nem sempre se mostrará adequada para a interpretação da norma jurídica. Outros elementos do contexto, como a comportamento atual da sociedade, devem ser a ela conjugados. Dessa conjugação poderá até decorrer o desprezo pela vontade pretérita do legislador, a fim de prevalecer a disciplina das relações firmadas diante das circunstâncias fáticas atuais.

Conclui-se, pois, pela inequívoca relevância do contexto na construção da norma jurídica. O produto da atividade do intérprete – a norma jurídica – pode variar diante dos aspectos por ele considerados. Uma interpretação que despreza o momento histórico da edição do enunciado, bem como a realidade atual que se visa a regulamentar, não se mostrará satisfatória.

115 Natureza e interpretação das leis tributárias. Trad. Rubens Gomes de Souza. Rio de

Janeiro: Financeiras, 1932, p. 184-185.