Capítulo 2 -‐ A construção do conhecimento sobre felicidade 24
2.5 Os contributos para o estudo da felicidade em Portugal 65
2.5 Os contributos para o estudo da felicidade em Portugal
Em Portugal, não há ainda uma tradição no estudo científico da felicidade, e só recentemente foram incluídos indicadores nas estatísticas oficiais38. Contudo, nos últimos anos efectuaram-‐se alguns estudos no domínio da Sociologia que passamos a apresentar.
As provas de doutoramento em Sociologia de Rui Brites incidem sobre Os valores e felicidade no século XXI, propondo um retrato sociológico dos portugueses em comparação europeia.
A sua tese tem como objectivo avaliar e quantificar o bem-‐estar subjectivo e relacioná-‐lo com um conjunto de valores (Brites, 2011). Para tal, constrói um índice de bem-‐estar subjectivo, considerando as dimensões que influenciam a percepção de felicidade, bem como, as auto-‐avaliações de felicidade e satisfação com a vida39.
É um trabalho inovador a nível nacional, quanto à proposta de medição de bem-‐estar subjectivo40, dos portugueses e em comparação com outros países.
Em relação aos seus resultados, destaca-‐se a análise comparativa que faz da relação entre as medidas de Bem-‐Estar Subjectivo (BES), Produto Interno Bruto (PIB) per capita, Índice de Desenvolvimento Humano (HDI) e Índice de Gini. Partindo da constatação que o PIB tem uma correlação fraca (ainda que positiva) com a percepção de felicidade, o autor faz uma analise comparativa da posição que cada país ocupa nos rankings de felicidade, PIB, HDI e Gini. Conclui que a correlação, entre a ordenação de cada um dos indicadores e a ordenação de felicidade, é positiva (e estatisticamente significativa) e que Portugal tem a pior
38 Em 2014, o INE passou a organizar indicadores de bem-‐estar.
39 Recorre, para efeitos de análise, aos dados do projecto bienal European Social Survey que, desde
2002, recolhe informação sobre os europeus (amostras representativas a nível nacional), incluindo sobre Portugal.
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Segue as recomendações para medição de bem-‐estar subjectivo propostas pela Comissão Stiglitz (Stiglitz et al., 2009).
posição relativa nos vários indicadores no conjunto dos cerca de 30 países analisados (Brites, 2011).
Estes resultados sustentam a nossa hipótese de diferenciação social associada ao sentir felicidade e de que a felicidade é um recurso socialmente desigual, cuja estrutura assenta em desigualdades sociais mais vastas e cujas relações importa compreender.
Brites apresenta-‐nos ainda o perfil dos portugueses com maior bem-‐estar subjectivo: são homens, jovens, a viver com cônjuge/companheiro, sem prática religiosa, com maior participação cívica, que se auto-‐posicionam politicamente ao centro/centro direita, e que estão mais confiantes nas pessoas e nas instituições. Refira-‐se ainda que os seus resultados indicam que o bem-‐estar subjectivo decresce de norte para o sul do país e que os homens apresentam maiores níveis de bem-‐estar subjectivo em todos os grupos etários considerados. Conclui o autor que o bem-‐estar subjectivo é desigualmente distribuído uma vez que é influenciado pelo rendimento, saúde, nível de instrução e relações sociais (Brites, 2011).
Este é o primeiro estudo, com recurso a uma amostra extensa e representativa da população portuguesa, sobre a felicidade em Portugal. Os resultados permitem conhecer os primeiros contornos e as características do bem-‐estar subjectivo, em comparação com outros países europeus. Mais especificamente, os seus resultados mostram que os níveis médios de bem-‐estar subjectivo dos portugueses são bastante inferiores aos da média europeia (6,6 para os portugueses e 7,5 para o conjunto dos países, numa escala de 0 a 10) e bastante abaixo dos países que apresentam os valores mais elevados (Dinamarca com uma média de 8,3 e Suíça com 8,1) (Brites, 2011).
Com base nestes resultados, é possível pensar noutras propostas, nomeadamente centradas na análise das condições de vida (tal como são experienciadas) que fornecem o contexto objectivo para a percepção de felicidade, para as práticas a ela associada e para a construção dos significados sociais da felicidade, tal como pretendemos desenvolver.
Ainda no domínio da Sociologia, o trabalho de mestrado anteriormente realizado explora semelhanças e regularidades no envolvimento que cada um faz na construção e orientação da sua felicidade (Roque Dantas, 2007). O ponto de partida desse trabalho foi uma inquietação pessoal com os processos de mudança de vida de pessoas que, apesar da sua aparente boa inserção (social, familiar), largam tudo e procuram novos caminhos, novos modos de vida e novas ocupações. Esta proposta centrada na felicidade enquanto construção social e nos factores que condicionam e distinguem diferentes acções na sua relação com a felicidade distingue-‐se de outras abordagens centradas na medição de felicidade. De facto, nesse trabalho não se pretendeu medir felicidade (avaliar se as pessoas são ou não felizes) mas perceber se a preocupação com a felicidade estava presente enquanto motor da acção. Mais especificamente, o objectivo foi conhecer o papel que a felicidade assume na estruturação de opções de vida: como é que se foi construindo e contribuindo para estruturar as condutas dos actores sociais ao longo da sua vida.
Ainda que o ponto de partida da estratégia de operacionalização desse trabalho tenham sido os processos de ruptura, a análise não ficou circunscrita a estas situações, incidindo sobre diferentes trajectórias sociais, percursos e valorizações de felicidade, de homens e mulheres, com idades compreendidas entre os 30 e os 45 anos.
Assim, a estratégia metodológica privilegiou as entrevistas em profundidade, pois permitem analisar o significado que os entrevistados dão às suas acções, reconstruindo trajectórias e conhecendo as expectativas e sentimentos que orientam a acção. As entrevistas foram analisadas com recurso a análise de conteúdo com um duplo objectivo: identificar os elementos comuns, estruturadores e condicionadores da acção social que emergem dos discursos; mas também analisar compreensivamente os discursos dos actores sociais e os significados dados à acção.
Os resultados permitiram validar a hipótese central do trabalho de que a felicidade assume importância diferenciada na acção destes actores sociais, nas suas trajectórias sociais e modelos de vivência.
As conclusões remetem para diferentes significados sociais de felicidade que se traduzem em acções de concretização diferenciadas: a representação de felicidade e a forma como ela condiciona a acção é produto de uma construção social, diferenciada em função do sexo, idade, processos de socialização e trajectórias sociais e revela diferentes graus de reflexividade da ideia de felicidade. Assim, a felicidade adquire diferentes significados sociais e traduz-‐se em diferentes necessidades de concretização. Para uns actores sociais é uma dimensão estruturadora, para outros é um objectivo a atingir. Quanto à sua prática, uns optam por viver uma vida “feliz”, outros esperam ou planeiam o dia em que serão felizes (Roque Dantas, 2007).
Estes resultados apoiaram a formulação da hipótese de que a percepção e expressão de felicidade, bem como a produção e reprodução dos seus significados e práticas são socialmente diferenciadas, mas só por si não permitem conhecer as diferenças sociais subjacentes.
A actual proposta pretende assim, partir destes resultados e ir mais longe teórica e metodologicamente, relacionando a percepção dos actores sociais quanto à sua forma de sentir e viver, com as suas condições de vida, na forma como orientam a construção de significados e práticas sociais e recorrendo a uma amostra mais extensa41.
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Refira-‐se ainda outros investigadores portugueses que se dedicam ao estudo da felicidade. No âmbito da Economia, Gabriel Leite Mota (2008) explora os efeitos directos da qualidade da governação sobre felicidade, recorrendo a dados do World Values Survey. A sua contribuição situa-‐ se na discussão das determinantes de felicidade, seguindo um enfoque comum à sua área disciplinar, sendo que os seus resultados reforçam a importância da percepção de justiça e confiança nas instituições para a percepção de felicidade. Refira-‐se que não analisa dados sobre a realidade portuguesa.
Por sua vez, nos últimos anos, a Psicologia positiva ganhou visibilidade em Portugal, essencialmente devido ao impulso dado a esta área temática por Helena Marujo e Luís Miguel Neto (Marujo, Neto, Caetano, & Rivero, 2007; Rivero & Marujo, 2011). Esta corrente centra-‐se nas potencialidades de mudança colocando o ónus na capacidade individual para superar dificuldades e melhorar a forma de sentir. Estes autores têm trabalhado a aplicação do Inquérito Apreciativo,
Ao longo deste capítulo, apresentámos os principais contributos para o estudo da felicidade.
Em relação ao contributo da Sociologia – e sendo poucas as abordagens directas à felicidade – importa considerar a importância atribuída às condições sociais de existência. Ainda que os vários autores apresentados se afastem em diversos pontos das suas teorias, em todos encontramos subjacente uma preocupação com a melhoria das condições de vida e com os processos sociais que lhe estão associados.
Da mesma forma, discutir estes contributos sociológicos leva-‐nos a um percurso histórico e social, onde a ideia de felicidade foi sendo moldada e construída, apoiando-‐nos na compreensão das suas especificidades actuais. A forma como vivemos, sentimos e procuramos felicidade, actualmente, tem por base transformações sociais profundas que marcam a expressão dos sentimentos e os significados que lhes são atribuídos.
Durkheim procura no desejo de felicidade a causa para a divisão social do trabalho. Ainda que Durkheim tenha concluído o contrário, pensamos que a procura de felicidade influencia a acção social, ou seja, tem a capacidade de alterar os significados sociais, e constituir-‐se como motor da acção, tal como nos ajuda a perceber a Sociologia das Emoções.
Outro exemplo disso, poderá ser a dúvida levantada por Mcmahon em relação à justificação da importância do dever individual para o espírito de capitalismo em Max Weber. No entender de Mcmahon, o principal impulso do capitalismo seria, não a religião, mas o desejo de felicidade e liberdade (possíveis na terra prometida). Também Barbalet situa na origem histórica do capitalismo a generalização da implementação prática do auto-‐controlo das emoções (Barbalet, 2008).
on-‐line, fazendo a sua divulgação através das redes sociais (http://inqueritoapreciativo.com/). A metodologia seguida defende o carácter transformativo do processo, ou seja, o processo de investigação e a participação no estudo tem um impacto positivo, contribuindo para o inquirido redefinir os seus objectivos e promovendo assim a mudança. Aproxima-‐se por isso da literatura de gestão emocional orientada para o condicionamento das emoções.
Parece-‐nos importante reter que a evolução da Sociologia (e mais tarde da Sociologia das Emoções) acompanha as transformações sociais e o processo de construção da modernidade que tem associadas alterações profundas nos modos de vida e na expressão dos sentimentos.
Por sua vez, os Happiness Studies deram um importante contributo na caracterização da felicidade. Mais especificamente, criaram mecanismos para medição e monitorização das percepções de felicidade, permitindo avaliar a sua evolução e variações e assim começar a perceber as suas causas e consequências. Os resultados levantam questões, que estas abordagens não permitem aprofundar, quanto às especificidades contextuais que influenciam a percepção de felicidade. Importa pois conhecer os contextos sociais em que se moldam estas percepções e se constroem os significados sociais associados às mesmas.
Tendo presente a importância que as condições de vida assumem na criação de expectativas e formas de sentir, iremos em seguida reflectir sobre o significado social que a felicidade assume na actualidade, começando assim a apresentação da nossa proposta para o estudo sociológico da felicidade.