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OS DETERMINANTES DAS TRANSFORMAÇÕES IDENTIFICADAS NOS TEXTOS E ILUSTRAÇÕES

DOS LIVROS ANALISADOS

Na primeira etapa da pesquisa, quando investiguei a existên- cia de transformações na representação do negro nos livros didáti- cos selecionados para análise, identifiquei mudanças significativas, que poderão contribuir positivamente para a identificação étnico- -racial e autoestima das crianças afro-brasileiras. Contudo, cha- mou-me a atenção a semelhança dos traços fisionômicos de grande parte dos personagens negros aos traços fisionômicos dos persona- gens brancos, bem como uma igualdade de status socioeconômico e de valores culturais atribuídos aos personagens brancos, que su- gerem uma equalização ou assimilação da representação social do negro nos textos e ilustrações.

No decorrer das entrevistas, os determinantes dessa possível equalização ou assimilação foram se explicitando, na medida em que os entrevistados confirmaram, em diversas situações, a ausên- cia de percepção das diferenças culturais dos afro-descendentes, como se não as houvessem percebido no convívio cotidiano com eles. A representação social dos afro-descendentes nos livros ana- lisados apresenta o segmento negro humanizado e com direitos de cidadania. Até que ponto esses atributos de humanidade e cidada- nia, reconhecidos nos afro-descendentes, originam-se do reconhe- cimento e aceitação das suas diferenças étnico-culturais e raciais? Ou esse reconhecimento resulta da aceitação de uma representa- ção construída pelos afro-descendentes como uma estratégia de inclusão?

Por outro lado, cabe observar que categorias que obtiveram frequência mínima, como a família e o Movimento Negro, numa análise mais profunda dos dados, são as que determinam, em gran- de parte, as demais categorias.

Apresento, a seguir, as categorias que contêm os determinan- tes de transformação da representação social do negro no livro di- dático, conforme apontado pelos entrevistados, com a interpreta- ção dos dados à luz da teoria e da experiência anterior.

A CONVIVÊNCIA

A convivência foi o determinante de transformação com maior frequência (8) identificado pelos ilustradores e autores e diz respeito à vivência de brancos com negros em situações diversas, que teriam permitido um conhecimento maior do cotidiano ne- gro. A aproximação, o diálogo, a convivência, podem eliminar os preconceitos e juízos negativos do outro, reduzindo ou mesmo eli- minando a discriminação e exclusão desse outro, porque o convívio diário, a participação nas mesmas experiências cotidianas, permite romper o conceito do outro, eivado de objetos recalcados do real.

No que tange aos esforços de parte do segmento negro, es- pecificamente o de classe média, para aproximar-se dos valores do branco e auferir em consequência os bens econômicos e de prestí- gio a ele atribuídos, podemos observar nos depoimentos dos en- trevistados que conviveram, em sua maioria, com afro-brasileiros de classe média, “[...] que está muito mais distante da pobreza do que da elite, tanto em seus mores, como em seus princípios [...]” (AZEVEDO, 1996, p. 175), indícios que corroboram essa hipótese, tais como:

A vivência com negros de atitudes corretas, amigos há mais de 30 anos, pessoas super-honestas, com um conceito de família espetacular,concorreu para não fazer diferença entre os seres hu- manos, porque, para mim são todos iguais[...]1(Grifo nosso)

Essa igualdade aparente a que o entrevistado alude pode estar fundamentada numa representação de atitudes e valores constru-

ída pelos afro-brasileiros quando em presença dos brancos ou de pessoas de outro status social.

[...] temos que ser os melhores porque somos negros, temos que ser mais morais, mais generosos, mais éticos, mais perfeitos, não podemos errar, temos de ser melhores alunos [...]. (CARNEIRO, 2000, p. 24)

O aprendizado transmitido pelos pais ou familiares mais ve- lhos, e ainda por muitos de hoje, a respeito de como se comportar perante estranhos, para confirmar atitudes de limpeza, honestida- de e boas maneiras, tais como: não coma “de mão”, não fique descal- ço, não fale e não ria alto, não se intrometa na conversa dos adultos, não coma e não beba tudo que está no prato e no copo, para não di- zerem que você está com fome, não aceite comida e, principalmen- te, não ande requebrando ou gingando, para não dizerem que você é “nigrinha” ou “moleque” constrói uma representação do padrão de atitudes aceito, que não corresponde ao real vivido. Contudo, todas essas tentativas de “ser igual” não conduzem ao respeito e direitos ambicionados, porque, para solucionar o problema não é necessário imitar o modelo branco e sim lutar para desconstruir as barreiras sociais impeditivas do ingresso do povo negro aos direitos humanos e de cidadania. (MUNANGA, 1986b)

Toda essa diferença cultural de atitudes, que são interditadas por nossos pais quando estamos em presença de estranhos étnico- -raciais e sociais nas relações de infância, pode perpetuar-se em grande parte, na vida adulta, nas relações sociais mais amplas, como no convívio com os amigos, na igreja, no trabalho. Também a expectativa da vizinhança, em face do mau comportamento pre- visto para os negros, contribui para a construção dessa represen- tação ideal de atitudes corretas, no intuito de não afirmá-lo (GO- MES, 1995). Esse falso real cotidiano é acrescido, muitas vezes, da orientação bem intencionada, porém cruel em suas consequências, como: “você não pode errar, você tem que ser o melhor”. Essas or- dens são dadas com a intenção de poupar os filhos do estigma da incapacidade e da exclusão. Dessa forma, a realidade percebida dos

afro-brasileiros pode corresponder a uma falsa realidade construí- da, que é real para quem observa e convive, porém não para quem está representando, porque na maioria das vezes somos educados para a autonegação, para obter a aceitação, principalmente nos ter- ritórios de classe média, onde nos são impostos os limites de com- portamento, visando ser igual ou melhor que os outros (GOMES, 1995; SANTOS, 1983).

Porém, quando a convivência transforma-se em intimidade pelo casamento, amizade muito íntima ou origem social comum, na maioria dos casos, essa representação desaparece e toda diver- sidade de hábitos, atitudes e valores vêm à tona e então a boa con- vivência vai depender de como esse outro realmente contempla as diferenças étnico-culturais. A convivência com os não negros que veem a diferença como desigualdade pode tornar-se penosa, mes- mo que essa convivência seja entre iguais em status e nível intelec- tual. Uma experiência de convivência de apenas quatro dias, em viagem com colegas acadêmicos de pele clara, confirmou como a igualdade de status econômico e intelectual não impede que se- jamos motivos de brincadeiras, zombarias e agressões verbais ex- plícitas, a nós e à nossa cultura, por um outro que se superestima e não consegue conviver com diferenças, por pouco tempo que seja, sem tentar mostrar, de todas as formas, que está tratando com al- guém que considera inferior. O seguinte depoimento de Fernandes corrobora como o olhar de quem convive com o cotidiano do outro concorre para a compreensão e respeito desse outro:

Como criança de origem lumpen, vivi em porções e cortiços de vá- rios bairros e comecei a trabalhar com pouco mais de 6 anos. Os ne- gros eram companheiros de privações e misérias: eu podia manejar a “perspectiva do oprimido” e, por aí, desmascarar a hipocrisia rei- nante sobre o assunto [...]. (FERNANDES, 1989, p. 103)

Contudo, não pretendo reduzir essa representação identificada a tentativas, por parte dos autores, de equalização e assimilação in- tencional. Eles estão representando alguém a partir da percepção e do conceito que constroem a partir dessa percepção. Os objetivos que foram colocados nessa percepção podem ter sido construídos pelo

próprio representado, bem como podem ser objetos que estavam na consciência dos autores, tais como o outro tem que ter a minha imagem e semelhança, para ser igual e não um outro, porque temo a alteridade, a aceitação e a convivência com a diferença. (LUZ, 1996)

Por outro lado, a convivência dos autores com subalternos negros, empregados e agregados da família pode determinar a na- turalização de determinados papéis e funções desempenhados por estes. Naturalização que significa ver como lugar do negro deter- minados papéis e funções, “[...] porque no Brasil o negro tinha um lugar certo e sem ambigüidades dentro de uma totalidade hierar- quizada muito bem estabelecida [...].” (DA MATTA, 1987, p. 79)

Maria Xará, que “cozinhava como ninguém”, uma agregada da família da avó de um dos ilustradores entrevistados, pode vir a ser a responsável pela dificuldade de representar a mulher negra em papéis e funções diversificadas, além de doméstica. No livro Porta de papel (BRAGANÇA et al., 1996, p. 115), no texto A Doceira, Dona Nana é uma mulher negra, empresária, dona de uma doceria e suas cocadas são famosas em todo o quarteirão. Embora empresária, não mais doméstica, sua função ainda é a de fazer doces e cocadas apreciados por todos. Convém acrescentar que esse livro não foi ilustrado pelo entrevistado citado. Nos livros analisados, as mu- lheres brancas e negras não foram representadas exercendo outros papéis e funções além de donas de casa, professoras, empresárias e dona de doceria.

Sem dúvida, a convivência com subalternos, empregados e agregados, geralmente pessoas idosas e negras, contribui, em gran- de parte, para a aculturação dos brancos, na medida em que nesse convívio cotidiano, com as experiências do dia-a-dia, são passados os valores culturais do povo negro, através das cantigas de ninar, das histórias, dos provérbios, das músicas, das adivinhações, dos trava-línguas, do vocabulário entremeado de palavras de origem africana, dos hábitos alimentares, da medicina caseira à base de chás, xaropes, unguentos, cataplasmas, da religião, traduzida nas benzeduras, nas rezas, nos banhos, nas promessas e oferendas.

Essa aculturação não se realiza de uma forma linear e deter- minista, uma vez que esses subalternos também adquirem hábitos, atitudes, habilidades, valores e ideologias dos brancos e seus asse- melhados, no convívio e experiências diárias. Gilberto Freire, ana- lisando a reciprocidade de influências entre brancos e negros, no período escravocrata e logo após ele, atribui à herança portuguesa os hábitos dos brasileiros, negros e brancos de proteção aos recém- -nascidos, tais como o de atirar o cordão umbilical ao fogo ou ao rio, ou ainda enterrá-lo na terra, para que os ratos não comam e a crian- ça, ao crescer, se transforme em uma ladra; a de usar no pescoço das crianças um vintém ou uma chave, para curar os sapinhos causados pelo leite, ou ainda, a de não apagar a luz do quarto enquanto o me- nino não for batizado, para que a bruxa, a feiticeira ou o lobisomem não lhe venham a chupar o sangue no escuro. (FREIRE, 1981)

Ainda em relação à troca de valores entre os negros e brancos, Koster (apud FREIRE, 1981) observou que, além da convivência, não se usou de nenhum constrangimento para que os africanos escravi- zados adotassem os costumes dos senhores, mas em contrapartida, “[...] os senhores ao mesmo tempo contraem alguns hábitos dos seus escravos e dessa sorte o ‘superior’ e o ‘inferior’ se aproximam [...].” (KOSTER apud FREIRE, 1981, p. 357)

Por outro lado, Freire admite que a ação educativa da religião católica sobre os escravizados, abrasileirante e moralizadora, não pode ser negada. (FREIRE, 1981)