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Os Diálogos Socráticos sobre o Conhecimento

Martha de Aratanha Simonsen Leal

1. Os Diálogos Socráticos sobre o Conhecimento

Ainda que a Teoria do Conhecimento apareça em vários diálogos socráticos, vamos nos ater, dada a sua relevância, aos diálogos Teeteto e República. No diálogo Teeteto, para pesquisar se conhecimento é sensa- ção, opinião verdadeira ou opinião verdadeira adicionada de explicação racional, Sócrates lança mão de várias analogias, por exemplo, tábua de cera, viveiro de pássaros, letras e sílabas, para tentar chegar a uma con- clusão. Ou seja, ao discutirem essas analogias está se discutindo, realmen- te, a possibilidade de se conhecer as essências (a realidade) por detrás das coisas visíveis.

Na A República, Platão apresenta três outras analogias para exem- plificar como chegar ao conhecimento do real.

Um pouco da história dos filósofos refutados por Sócrates:

a) Heráclito3, filósofo da physis, afirma a existência de uma força viva, que é verdadeira e permanente, se revelando em vários fe- nômenos sem permitir que tenham permanência, mantendo as coisas em perpétuo movimento e mudança. E esse devir é um conflito contínuo dos contrários que se alternam, seguindo uma lei e uma ordem, e que se revelam como harmonia ou síntese dos contrários. Pode-se perceber a ideia de fundo da dialética hege- liana. Aliás, Hegel escreveu expressamente: “Não há proposição de Heráclito que eu não tenha acolhido na minha lógica4”. b) Protágoras5, discípulo de Demócrito, parte da teoria de Heráclito

de que tudo está em movimento, onde “da translação das coi- sas, do movimento e da mistura de umas com as outras coisas é que se forma tudo o que dizemos existir, pois em rigor nada é ou existe, tudo devém6”. Portanto, só há movimento, e que há duas espécies de movimento, ambas de número infinito: uma de for- ça ativa e outra de força passiva. E que tudo isso se movimenta havendo lentidão ou rapidez nessa movimentação.7 Protágoras

3 SMITH, A Dictionary of Greek and Roman Biography and Mythology, vol. 2, 1860. 4 HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, vol I.

5 SMITH, A Dictionary of Greek and Roman Biography and Mythology, vol. 3, 1860. 6 Teeteto, 152d.

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afirma que as coisas são na relação recíproca entre elas8, que há

um agente ativo e outro passivo, e que esses agentes podem ser ativos ou passivos dependendo de que modo se relacionam com outras coisas. Portanto, “se conclui que nada existe em si e por si mesmo, e que cada coisa só devém por causa de outra”, em rela- ção à outra9.

Tanto Heráclito, quanto Protágoras afirmam a impossibilidade de se conhecer a verdade por trás das aparências, um por afirmar um movimento permanente que impossibilitaria o conhecimento, e o outro, pelo relativis- mo onde as coisas são segundo aparecem para cada homem. Concluindo que o conhecimento, a aletéia, o desvelamento do real por trás das aparên- cias é ou impossível (para Heráclito), ou relativo (para Protágoras).

1.1.Teeteto

Vamos examinar o nosso primeiro diálogo: O diálogo de Teete- to, datado de 369aC, começa definindo o conhecimento do real como

percepção através dos sentidos10. Sócrates nos relembra que segundo Protágoras, “o homem é a medida de todas as coisas, então há perfeita identidade entre conhecimento e sensação11”. Sócrates contra argumenta que se sensação fosse conhecimento então qualquer animal senciente te- ria conhecimento12. Contudo, apesar de todo animal ter sensação, ele não possui conhecimento. O conhecimento do real, a episteme, começa com as noções comuns, que não são apenas percepções, mas envolvem o uso da mente (psiqué13). É isso que Kant vai chamar, na Crítica da Razão Pura, de poder de síntese do entendimento, condicionado pelos conceitos puros ou formas categoriais a priori14.

Sócrates argumenta que o conhecimento das coisas sensíveis tem que refletir o conhecimento das coisas inteligíveis. O argumento evolui 8 Teeteto, 160b. 9 Teeteto, 160c. 10 Teeteto, 151d-e. 11 Teeteto, 160d-e. 12 Teeteto, 161c. 13 Teeteto, 186a.

para definir conhecimento como opinião verdadeira15, pois envolve um raciocínio interno da mente, porém, esbarra no argumento da pos- sibilidade existir uma crença falsa, ou de uma crença verdadeira achada por acaso.

Teeteto tenta uma terceira definição, e define o conhecimento do

real como uma opinião verdadeira acompanhada de uma explicação racional16. Mas Sócrates ainda põe isso em dúvida, e abre uma nova in- vestigação a partir de uma afirmação de Protágoras:

“...parece-me ter ouvido de certa pessoa que os denominados elemen- tos primitivos de que somos compostos, como tudo o mais, não admitem explicação. A cada um poderás dar nome, sem nada mais acrescentar, nem que é nem que não é, pois isso já implicaria atribuir- -lhe existência ou não-existência...17”.

“Os elementos primitivos, de que somos compostos, como tudo

o mais, não admitem explicação”. Protágoras está se referindo ao conhe-

cimento do real, e Sócrates vai examinar essa proposição se baseando numa analogia sobre letras e sílabas. Começando com as sílabas, analogia usada pelo próprio Protágoras, Sócrates afirma que quando falamos, usamos síla- bas, e elas admitem definição. As sílabas são compostas de letras, que não admitem definição pois as letras são simples ruídos, são elementos sem

Unidade. Teeteto concorda que as letras não admitem definição, que “são irracionais, ..., pois nada têm além do som, não sendo, portanto, passíveis de ulterior explicação.”18

Contudo, Sócrates argumenta que se não conhecemos as letras, como podemos conhecer a sílaba? Se não conhecemos as partes, como vamos conhecer a unidade? Pois para conhecer a unidade, precisamos co- nhecer suas partes. Vamos nos recordar que Sócrates está falando de co- nhecimento do ser, a aletéia, o desvelamento da realidade. Existe algo (os elementos, as letras) que não é passível de logos19, de explicação racional pela linguagem, que permanece incognoscível, mas que é perceptível pe- 15 Teeteto, 187b.

16 Teeteto, 202c. 17 Teeteto, 201e. 18 Teeteto, 203b. 19 Teeteto, 203a.

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los sentidos e nomeável. Como o composto (a sílaba) é um formado de elementos (as letras), e como os elementos (as letras) podem ser nome- ados, mas não cognoscíveis, o homem até pode ter algum conhecimen- to através do logos (uma série de palavras). Porém, como não podemos conhecer os elementos, ficamos impossibilitados de conhecer o real. Ou seja, por causa da limitação da linguagem, o conhecimento do real (a ale- téia, o desvelamento de realidade) estará sempre fora de nosso alcance.

O Logos é mutável e inconstante, ao passo que a essência da re- alidade não muda, possui estabilidade. Sócrates avança com a tese de que as coisas em si possuem uma essência estável, ou seja, real, e que não estão mudando, como as aparências no mundo sensível, portanto é passível de conhecimento. Sócrates afirma que a realidade (o real por trás das aparências) não pode ser conhecida pela linguagem, e deve-se buscar outros meios para que haja conhecimento.

Sócrates termina o diálogo afirmando que o conhecimento não pode ser nem percepção, nem opinião verdadeira, nem a explicação adi- cionada a essa opinião verdadeira20, pois a linguagem humana fica sem- pre aquém do conhecimento do real.

1.2. A República

Na República, escrita por volta de 380aC, Sócrates vai além, e de- senvolve três analogias para explicar como o homem pode chegar ao des- velamento da realidade pela razão, pela ciência intuitiva.

Sócrates argumenta que explicar o Ser é extremamente difícil, portanto faz três tentativas de explicar a ideia do Ser, por analogia. Pois é essa noção, o conhecimento do ente, que Sócrates vai elaborar com a Analogia do Sol, a Analogia da Linha Dividida e a Alegoria da Caverna. Es- sas três analogias são equivalentes e visam explicar como o homem pode apreender a realidade.

Vamos aqui examinar apenas a Analogia da Linha Dividida, pois o objetivo é fazer um paralelo com Spinoza e os três gêneros do conheci- mento.

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1.3. A Analogia da Linha Dividida

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A linha é dividida em quatro segmentos:

Sócrates exemplifica, através de uma analogia, como alcançar o co- nhecimento da realidade, aquilo que está por trás das aparências. A ana- logia é entre o que apreendemos com os sentidos e o modo como a mente entende o mundo. Sócrates pede para desenharmos uma linha, e dividi-la em duas partes, no primeiro segmento colocamos o mundo visível (apa- rências), e no segundo segmento o mundo incognoscível (realidade, ser, substância). Em seguida, ele pede para dividir cada segmento em dois. Portanto, temos dois segmentos no mundo visível, e dois segmentos no mundo invisível aos sentidos. Como vimos, Sócrates divide a linha em quatro segmentos:

a) primeiro segmento (1): assim como vemos com os olhos as som- bras e os reflexos das coisas, entendemos com a mente (psiqué) as coisas de modo confuso.

b) segundo segmento (2): assim como vemos as coisas no mundo (plantas, animais) de modo mais nítido do que no segmento 1, entendemos com a nossa mente de modo mais nítido. É o estágio da doxa, da opinião verdadeira.

c) terceiro segmento (3): se refere ao conhecimento pelas causas, a psiqué procura conhecer as causas daquilo que é visível, dos eventos, dos efeitos, através da razão, mas ainda baseada nas coisas sensíveis. Portanto, é o conhecimento, que baseado na opinião verdadeira, procura uma explicação racional através do logos, da linguagem. Sócrates vai argumentar, no diálogo Crátilo, que opinião verdadeira adicionada de explicação racio- nal ainda não é suficiente, devido à incapacidade da linguagem de dar conta do real.

21 República, 509d.

Vamos aqui examinar apenas a Analogia da Linha Dividida, pois o objetivo é fazer um paralelo com Spinoza e os três gêneros do conhecimento.

1.3 A Analogia da Linha Dividida21

A linha é dividida em quatro segmentos:

Mundo Visível aos sentidos  Mundo Invisível aos sentidos

_suposição____opinião verdadeira______entendimento_______inteligência_______ reflexos seres e coisas hipóteses matemáticas ideias puras

Sócrates exemplifica, através de uma analogia, como alcançar o conhecimento da realidade, aquilo que está por trás das aparências. A analogia é entre o que apreendemos com os sentidos e o modo como a mente entende o mundo. Sócrates pede para desenharmos uma linha, e dividi-la em duas partes, no primeiro segmento colocamos o mundo visível (aparências), e no segundo segmento o mundo incognoscível (realidade, ser, substância). Em seguida, ele pede para dividir cada segmento em dois. Portanto, temos dois segmentos no mundo visível, e dois segmentos no mundo invisível aos sentidos. Como vimos, Sócrates divide a linha em quatro segmentos:

a) primeiro segmento (1): assim como vemos com os olhos as sombras e os reflexos das coisas, entendemos com a mente (psiqué) as coisas de modo confuso.

b) segundo segmento (2): assim como vemos as coisas no mundo (plantas, animais) de modo mais nítido do que no segmento 1, entendemos com a nossa mente de modo mais nítido. É o estágio da doxa, da opinião verdadeira.

c) terceiro segmento (3): se refere ao conhecimento pelas causas, a psiqué procura conhecer as causas daquilo que é visível, dos eventos, dos efeitos, através da razão, mas ainda baseada nas coisas sensíveis. Portanto, é o conhecimento, que baseado na opinião verdadeira, procura uma explicação racional através do logos, da linguagem. Sócrates vai argumentar, no diálogo Crátilo, que opinião verdadeira adicionada de explicação racional ainda não é suficiente, devido à incapacidade da linguagem de dar conta do real.

d) O quarto segmento (4) se refere ao entendimento pela pura luz da razão (ciência intuitiva), sem necessidade do suporte das coisas sensíveis. Esta é a hipótese matemática, a ciência intuitiva, que prescinde do suporte da coisa material para ser pensada. Ela é pensada com o suporte de outras hipóteses matemáticas. Assim, chega-se ao Ser, que é o mesmo que a realidade.

O conhecimento do real progride da suposição, para a doxa, ou opinião verdadeira, em direção à gnose, conhecimento pela razão pura.

Por exemplo, os matemáticos partem de um desenho de um triângulo num papel, e passam a inferir suas propriedades matemáticas, e dessas propriedades, sem mais se apoiarem no desenho, inferem novas propriedades, apenas baseados na intuição matemática, nas ideias

puras. O Universo está escrito em linguagem matemática. Realidade e Ser são uma única e mesma coisa, e podem ser acessados pela linguagem matemática, pela ciência intuitiva, e não pela linguagem humana, pelo logos. Vamos ver abaixo que Spinoza vai concordar, mas vai também colocar o problema do infinito enumerável e do infinito não enumerável. Isso nos faz pensar em outras aporias.

Os Gêneros de Conhecimento em Spinoza

Spinoza escreve sua Opus Magnum, a Ética, segundo a maneira dos geômetras, e desenvolve os três gêneros do conhecimento22:

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d) O quarto segmento (4) se refere ao entendimento pela pura luz da razão (ciência intuitiva), sem necessidade do suporte das coisas sensíveis. Esta é a hipótese matemática, a ciência intuitiva, que prescinde do suporte da coisa material para ser pensada. Ela é pensada com o suporte de outras hipóteses matemáticas. Assim, chega-se ao Ser, que é o mesmo que a realidade.

O conhecimento do real progride da suposição, para a doxa, ou opi- nião verdadeira, em direção à gnose, conhecimento pela razão pura.

Por exemplo, os matemáticos partem de um desenho de um triân- gulo num papel, e passam a inferir suas propriedades matemáticas, e des- sas propriedades, sem mais se apoiarem no desenho, inferem novas pro- priedades, apenas baseados na intuição matemática, nas ideias puras. O Universo está escrito em linguagem matemática. Realidade e Ser são uma única e mesma coisa, e podem ser acessados pela linguagem matemática, pela ciência intuitiva, e não pela linguagem humana, pelo logos. Vamos ver abaixo que Spinoza vai concordar, mas vai também colocar o problema do infinito enumerável e do infinito não enumerável. Isso nos faz pensar em outras aporias.

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