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Os diferentes contrabandos, seus agentes e estratégias

4 OS CRIMES DE CONTRABANDO – por fora e por dentro da

4.4 Os diferentes contrabandos, seus agentes e estratégias

Assim como foi pertinente localizar os diferentes contextos da prática do contrabando, a fim de que não se caísse na armadilha de pensá-lo como algo estanque no tempo, também é preciso identificar que diferentes tipos de contrabando ocorriam em um mesmo momento. Assim como havia contrabandos enormes munidos de grandes aparatos para sua introdução, que abasteciam reconhecidas casas de comércio da província, havia aqueles contrabandos menores que visavam a um ganho rápido com sua revenda ou apenas ao provimento pessoal de víveres. Reconhecer essas diferenças aponta para outras questões relevantes, como a diferença dos agentes (não são os mesmos indivíduos envolvidos com um e com o outro

contrabando) e a diferença das estratégias empregadas (a introdução de um grande carregamento certamente demandava estratégias específicas e distintas das utilizadas na passagem de um pequeno contrabando).

É bastante complicado determinar quais daquelas 45 ocorrências de contrabando constituem-se em contrabandos grandes e quais eram pequenos. Um critério possível de ser utilizado para tal categorização seria o valor total dos contrabandos, uma vez que há contrabandos avaliados entre 16 mil 950 réis até 28 contos 561 mil 609 réis; no entanto, além de esse dado não estar disponível para todos os processos, parece que nem sempre há uma relação simples e direta entre o montante do carregamento aprendido e a dimensão daquele contrabando. Há casos, por exemplo, de reconhecidos contrabandistas que, ao perceberem que serão capturados, livram-se das mercadorias e são pegos sem carregamento algum.

O que parece diferir os contrabandos e os agentes que o empreendem é o fato de estarem vinculados a um bando aparamentado para a sua travessia, que, por sua vez, é contratado por quem encomendou o contrabando, ou de se tratarem de empreitadas de risco e lucro individual, as quais tendem a ser de menor porte em termos das quantidades de mercadorias. Mesmo assim, ainda não é possível qualificar todas aquelas ocorrências em uma dessas duas categorias, pois muitas delas carecem de informações.

No entanto, independentemente de tratar-se de um grande contrabando promovido por uma companhia de comércio ou de um pequeno conduzido por um mascate, vale refletir sobre a conotação criminosa que essa prática tinha entre seus contemporâneos e da imagem romantizada que se tem muitas vezes do comércio ilícito.

Dada sua cotidianidade, poder-se-ia pensar que o contrabando não fosse compreendido propriamente como um crime por aquela sociedade fronteiriça do século XIX, e, nesse sentido, é bastante correta a afirmação de Susana Bleil de Souza de que “o contrabando não pode ser definido unicamente como um ato ilegal em si, ele tem que ser explicado no ambiente sócio-econômico que lhe deu origem e em cujas relações ele se apóia”393.

Por outro lado, compreender esta prática como parte do cotidiano dessas comunidades fronteiriças não pode retirar o fato de ela ser um ato criminoso. Se não, como explicaríamos todas as estratégias e subterfúgios para a passagem dos contrabandos. Desconhecemos se os contrabandistas concordavam ou não com a criminalização de sua prática, o que importa, no

entanto, é que tinham plena ciência de tratar-se de algo ilegal e, por isso, utilizavam-se de todos os meios clandestinos para não serem pegos.

É importante acrescentar nesse ponto que, em se tratando de uma sociedade pré- industrial, a “valoração da honra” constituía um bem inestimável. Dessa maneira, ver-se envolvido em um processo de contrabando poderia ser mais prejudicial que a perda de um carregamento. Segundo Barrington Moore, “o prejuízo à reputação era tão importante quanto o prejuízo material”, embora, muitas vezes, os códigos morais vigentes tendessem a

estabelecer como a sociedade deveria funcionar apesar de pouco revelarem a respeito de como esta sociedade funcionava realmente.394

Um caso emblemático de um comerciante que não quis ver-se envolvido em escândalos de contrabando ocorreu em 1853, quando um grupo, do qual faziam parte alguns funcionários públicos, começou a realizar um “golpe” ameaçando comerciantes com denúncias por crime de contrabando, muitas delas falsas, e cobrando propina para que a denúncia fosse retirada ou não fosse feita. Jorge Matutiehm foi o comerciante alvo desse embuste e cedeu ao pagamento da propina para que ele e seu sócio não fossem processados. Em seu depoimento, o negociante justifica o fato de ter aceitado pagar a quantia:

[...] teve de desembolçar para não ser pronunciado seu sócio, e ver a sua casa envolvida, ameaçada de prejuízos, e assim procedeu não por ter receio algum de uma sentença justa, pois que as mercadorias Aprehendidas forão licitamente introdusidas em sua dita casa , mas porque sem recursos ficava às violencias comsequentes de um processo injusto e premeditado.395 Jorge Matutiehm preferiu claramente desembolsar dinheiro a se ver envolvido em um processo crime de contrabando que, segundo ele, mancharia a imagem de sua casa de comércio, podendo lhe trazer prejuízos. Mesmo que esse comerciante eventualmente fizesse contrabando, ser publicamente tachado de contrabandista, através de uma acusação em um processo judicial, era algo que poderia prejudicá-lo economicamente.

Dessa maneira, pensar o contrabando de forma naturalizada, ausente de conotação criminosa, tende a levar para outro tipo de equívoco que é a romantização desses indivíduos. A visão heróica e romântica do contrabando e dos contrabandistas é bastante comum. Em um trecho, Souza descreve os contrabandistas na passagem do século XIX para o XX da seguinte forma:

394 MOORE, Barrington. Aspectos morais do crescimento econômico e outros ensaios. Rio de Janeiro:

Record, 1999. p. 12-19.

395 APERS. Poder Judiciário. Cível e Crime. Processos Crime. Alegrete. Maço 78, nº 2754. Ano 1853. Grifo

[...] o contrabando supunha a presença de homens de comprovada valentia, [...]. Os homens que praticavam o contrabando tinham o seu código social, seu armamento típico, suas próprias estratégias. Conheciam bem as picadas, adivinhavam os ruídos noturnos, ouviam a respiração dos guardas que os procuravam.396

Da mesma forma, as autoras Medrano e Ricci apontam para outra característica idealizada desse tipo social, o fato de serem sujeitos apátridas:

Los contrabandistas, aunque no permanecían totalmente alejados de la vida civilizada, eran, sin embargo, personajes errantes, como los gauchos, donde, la esperanza de encontrar algún beneficio, los hacia permanecer siempre armados y en marcha, listos para combatir de la misma forma a los soldados, a las milicias e a los guardas fiscales de las dos naciones, como a todos los obstáculos que se les presentasen en su camino.397

Já discutimos em capítulos anteriores a respeito das identidades manejadas na fronteira, em que o sujeito reconhece plenamente a sua identidade, embora saiba que pode dissimulá-la se for de seu interesse. Para os contrabandistas, vale o mesmo pressuposto; em quase todas as ocorrências de contrabando se sabe a “naturalidade” do réu e nunca se coloca a questão de que esses sujeitos não tinham nacionalidade definida, ou melhor, que não se sentiam pertencentes a nenhum dos “lados” da fronteira.

No caso da apreensão do contrabando conduzido pelos correntinos Frederico Ortiz e Ermenegildo Cáceres, a questão da nacionalidade não só foi ressaltada, como serviu de justificativa para os réus tentarem livrar-se da acusação. Segundo eles, por serem estrangeiros desconheciam as leis deste país e, por isso, não sabiam que aquilo que estavam fazendo era ilegal.398

Em demais situações, também se percebe que os contrabandistas sabiam conduzir muito bem a seu favor as questões nacionais. Ao não ignorarem a linha da fronteira que colocava lado a lado soberanias diferentes, os contrabandistas eram capazes, por exemplo, de construírem galpões de armazenamento de mercadorias exatamente em cima da linha divisória, com parte da edificação no Brasil e outra parte no Estado Oriental. Os comerciantes Cuervo Arango & Irmão possuíam duas casas de comércio em Santana do Livramento, com a

396 SOUZA, Susana Bleil de. Os caminhos e os homens..., op. cit., p. 137-138.

397 RICCI. Maria Lucia de Souza Rangel; MEDRANO, Lilia Inês Zanotti de. El papel del contrabando y la

interacción fronteriza del Brasil sureño con el Estado Oriental del Uruguay: 1850-1880, op. cit., p. 258-259.

398 APERS. Poder Judiciário. Cível e Crime. Processos Crime. Alegrete. Maço 93. Caixa 65, nº 3233, 1878.

mesma razão social, que se auxiliavam mutuamente quando faltavam gêneros em uma delas. Porém, uma dessas casas estava situada sobre a linha divisória e, dessa maneira, os produtos eram legalmente introduzidos no estabelecimento pelo lado do Estado Oriental, misturavam- se às demais mercadorias dentro da casa e saíam pelo lado brasileiro da casa de comércio de forma aparentemente lícita.

Segundo o comandante da seção policial,

[h]oje não pequeno numero de carroçadas foram conduzidas de um depósito que estes Sres. [refere-se aos Cuervo] tem junto a linha divisória, e este transporte é feito com muita freqüência, sendo que a casa d’aqueles Sres. junto a linha divisória é considerada com o fim único de embaraçar a vigilância e facilitar o contrabando conforme me informa o sargento d’esta secção.399

Com estratégia semelhante funcionava o matadouro pertencente a Feliciano Correa de Melo, o “Xandico”. Quando o Capitão Victorino Maciel afirmou que havia mercadorias contrabandeadas depositadas no estabelecimento de “Xandico”, pediu que a averiguação fosse breve porque o dito matadouro se localizava junto à linha divisória e, segundo ele, “é sabido que a casa, devido sua localização, funciona como depósito de contrabandos”.400

Valeu-se também da “proteção” da linha da fronteira o grupo de contrabandistas que, numa madrugada de outubro de 1889, trazia contrabandos de Rivera escoltado por mais alguns homens armados. Ao perceberem a aproximação da fiscalização, no entanto, atiraram os fardos no chão e correram de volta em direção a Rivera, juntando-se aos homens da retaguarda e começando um tiroteio com a guarda da linha divisória através da fronteira, já que sabiam que do lado de lá daquela linha imaginária não poderiam ser presos pelos agentes do Império.401

Os contrabandistas eram, portanto, pessoas “de carne e osso”, que não dispunham de habilidades sobre-humanas como “ouvir a respiração dos guardas”, mas que tinham no comércio ilícito um meio de vida, um negócio que o contexto de fronteira possibilitava, e não uma causa moral. Tampouco se tratava de investidas incertas e inconstantes com caráter bravateiro. O contrabando se fazia de forma permanente e dispunha de um aparato organizacional para sua realização. No caso do contrabando empreendido, ou encomendado,

399 APERS. Poder Judiciário. Cível e Crime. Processos Crime. Santana do Livramento. Caixa 730. nº 2108.

1889. Número 41 do Anexo V.

400 APERS. Poder Judiciário. Cível e Crime. Processos Crime. Santana do Livramento. Caixa 731. nº 2115.

1889. Número 42 do Anexo V.

401 APERS. Poder Judiciário. Cível e Crime. Processos Crime. Santana do Livramento. Caixa 731. nº 2122.

por comerciantes regulares, estabelecidos com casas de comércio, ele era um meio permanente e consolidado de se fazer a importação de produtos estrangeiros, não tendo, portanto, caráter circunstancial ou aleatório. A prática do comércio ilícito funcionava como uma empresa.

Zacarias Moutoukias, referindo-se ao contrabando colonial no Rio da Prata no século XVII, alerta para essa questão da “romantização” do contrabando. Mesmo se tratando de outro contexto diferente deste, seu alerta é bastante pertinente. Nas suas palavras, “[c]uando se aborda el tema del contrabando en la historia comercial de la Hispanoamérica colonial, es casi un acto reflejo imaginar a sus protagonistas organizados en bandas antes que en compañías o sociedades comerciales.”402

Os contrabandos aos quais estamos nos referindo como “grandes” não se identificam, portanto, simplesmente pelo valor de seu carregamento, mas sim pelo fato de contarem com uma estrutura organizada para sua condução, sobretudo no que se refere à contratação de bandos de homens armados para garantir sua escolta. Em geral, esses contrabandos eram encomendados por comerciantes que buscavam abastecer suas casas de comércio com os produtos importados por um custo bastante inferior ao que teriam se tivessem passado regularmente pela Alfândega. Eles não eram simplesmente contrabandistas ou comerciantes; eram, justamente, “comerciantes-contrabandistas”, homens que, com a facilidade da condição de fronteira, lançavam mão do recurso do contrabando para incrementar seus negócios, todas as vezes que isso fosse possível. Dispunham de uma grande logística, que envolvia transporte, homens para descarregar mercadorias em lugares escondidos, informantes sobre as orientações da patrulha da fronteira, cúmplices na Alfândega, etc. Era fundamental manter esse aparato de clandestinidade porque, ao mesmo tempo em que tinham cúmplices nas repartições fiscais, também podiam ter inimigos, e, em se tratando de uma prática ilegal, todo o cuidado era pouco para evitar uma apreensão.

Os irmãos Juan e José Comas, estabelecidos com casa de comércio em Uruguaiana, esperavam a introdução de um grande contrabando de cerca de 60 fardos de fazendas importadas na madrugada de 27 de novembro de 1864. Tudo parecia estar acertado: Domingos Quincoza, ex-guarda da Alfândega, havia sido contratado para capitanear o grupo de cerca de 20 homens a cavalo que as buscaria, nas margens do Rio Uruguai, em um bote também contratado, que aguardava o momento apropriado para atravessar as mercadorias de Restauración e entregá-las ao referido grupo em um lugar previamente combinado na margem

brasileira. Domingos Quincoza ainda mantinha bons contatos na repartição e, por isso, soube que a madrugada de 27 de novembro seria a ideal, sobretudo porque era sábado e nos finais de semana o efetivo da guarda ficava reduzido. Além do mais, sabia-se que uma tormenta se aproximava e, por essa razão, aquela noite seria muito escura, o que tornaria mais difícil que o bando fosse visto.

O mesmo Domingos ficou responsável pela contratação dos homens que trariam os fardos presos aos seus cavalos, sendo entre um e três fardos por pessoa. Muitos dos homens que participaram da empreitada envolveram-se circunstancialmente nesse contrabando, eram homens livres, pobres e sem ocupação definida que sobreviviam desses pequenos trabalhos.

Um caso desses foi o de Symão Portilho, 26 anos, casado, peão de carretilhas, natural de Corrientes. Confessou ter participado da introdução do contrabando carregando três fardos em seu cavalo (dois grandes na garupa e um pequeno na mão). Fora convidado por Domingos Quincoza e Manoel “Farrapo” e receberia o pagamento de um patacão por fardo que carregasse. Afirmou que eram entre dezesseis e dezoito condutores e, naturalmente em sua defesa, disse que era a primeira vez que participava de um contrabando. O convite para participar do grupo lhe foi feito na mesma noite da ação, e, assim que aceitou, já saiu na companhia de Domingos e Manoel e juntaram-se a mais pessoas na sanga do Salso. Juntos foram pela costa do Uruguai até a ponta da Ilha Grande aonde chegou o bote que trazia os volumes.

O grupo conduziu o carregamento escoltado por homens armados prontos para a resistência. Por volta da meia-noite, suspenderam a marcha no local denominado “coxilha dos loucos”, e Modesto Oliveira de la Palma, Agostinho Silva Filho e Leopoldo Silva avançaram, servindo de espiões para observar as rondas, patrulhas e transmitir avisos. Ao completarem o percurso, entregaram os fardos de mercadorias pelo muro dos fundos do pátio da casa de negócio de Comas, onde havia cerca de seis pessoas do lado de dentro recebendo os fardos.

Foi nesse momento que foram surpreendidos pelos guardas da Alfândega, com quem entraram em conflito. Alguns dos homens do bando conseguiram fugir, outros foram presos e os irmãos Comas acabaram indiciados como réus no processo de Apreensão de Contrabando. No entanto, as mercadorias não foram apreendidas no ato, porque os guardas careciam de mandado para dar busca na casa dos irmãos Comas.403

Em outras ocasiões, também se pôde perceber que investir em uma escolta armada para guarnecer o contrabando foi vantajoso já que o bando, apesar de entrar em conflito

403 APERS. Poder Judiciário. Cível e Crime. Processos Crime. Uruguaiana. Caixa 310, nº 2535 e 2536. 1864 e

aberto com os guardas, garantiu a introdução e manutenção das mercadorias contrabandeadas. Segundo o ofício de Militão Ferreira da Silva Pinheiro, comandante da polícia, ao juiz municipal Antonio Augusto da Costa Barradas, sua patrulha viu, na noite do dia 8 de março de 1873, uma carreta carregada cruzando a linha divisória vindo de Rivera protegida por um grupo de homens armados e que, por isso, não pôde realizar a apreensão. Quando a patrulha retornou com reforços, já encontraram a carreta descarregada em frente à casa do comerciante, apontado como réu, Ângelo Alvarez, que ameaçava quem se aproximasse. No momento da apreensão, só encontraram duas latas de grampos de arame.404

Entre esses homens contratados para fazer os atravessamentos, portanto, havia aqueles de ocasião, como Symão Portilho, mas havia os de profissão, como o caso de Manoel Cancela. Manoel Cancela foi capturado em fins de fevereiro de 1865 trazendo uma carretilha carregada de fazendas, no valor de 420 mil réis, através do Passo do Batista. Apesar da fuga do réu, junto com as mercadorias foram apreendidas correspondências pessoais que evidenciavam que o mesmo era um atravessador de mercadorias de profissão. As cartas e apontamentos apreendidos apontavam que o réu realizava o serviço de transporte de mercadorias para vários comerciantes de diferentes localidades com quem tinha dívidas ativas e passivas, como com os comerciantes Blanco & Hermanos de San Eugenio, na província de Santa Fé na Argentina, e com Francisco Roman de Tres Cruces, distrito de Montevidéu.405

Em alguns casos, no entanto, percebe-se que quem encomendava o contrabando não era propriamente um comerciante, como José Pereira do Couto, de 50 anos, estancieiro de Alegrete.406 Couto contratou quatro de seus peões, Ramão Flores, de 25 anos, natural de Corrientes, o “piá” Santiago Anastácio de aproximadamente 14 anos, João “Correntino” e Santos Martins, dos quais não se dispõe de mais informações além do nome, para trazerem

404 APERS. Poder Judiciário. Cível e Crime. Processos Crime. Santana do Livramento. Maço 43. Caixa 717. nº

1769a. 1873. Número 26 do Anexo V.

405

APERS. Poder Judiciário. Cível e Crime. Processos Crime. Uruguaiana. Caixa 311. nº 2550. 1865. Número 20 do Anexo V.

406 Segundo Graciela B. Garcia, a tendência da sociedade rural ao longo do século XIX, sobretudo a partir da

segunda metade, foi de se complexificar. Os estancieiros podiam possuir estabelecimentos de criação em diferentes lugares, sendo que alguns passaram a dedicar-se, além da pecuária, a atividades comerciais. Em se tratando de uma realidade de fronteira, a diversificação das atividades pode se dar justamente através do contrabando. Guardadas as devidas diferenças, por estar se referindo ao período colonial, Tiago Gil diz que, frequentemente, os contrabandistas eram também lavradores, soldados, criadores, etc., que se valiam do comércio ilícito como uma alternativa para obter ganhos extras. Ver: GARCIA, Graciela Bonassa. O domínio

da terra..., op. cit., p. 32. Daniel Alberto Virgili também menciona vários casos de estancieiros envolvidos com

comércio. VIRGILI, Daniel Alberto. Las esquinas de la pampa: pulperos y pulperías en la frontera bonaerense (1788-1865). In: MAYO, Carlos (org.). Vivir en la frontera..., op. cit., p. 118. GIL, Tiago. Infiéis

fardos de fazendas em seus cavalos; serviço pelo qual, segundo o “piá” Santiago, receberiam um patacão de seu patrão.407

Frequentemente, portanto, eram grupos de homens a cavalo que traziam as mercadorias amarradas aos seus arreios até seu destino final. Nesses casos, também era frequente que eles buscassem a escuridão da noite para agirem com menos possibilidade de serem vistos pelos guardas. Pelo menos 12 ocorrências de contrabando teriam ocorrido durante a noite ou madrugada408, e esse era um dado importante no julgamento por ser considerado circunstância agravante, já que era proibido conduzir mercadorias nesses turnos.

Algumas vezes esses grupos procuravam caminhos ocultos, ou seja, por onde não passavam estradas conhecidas. No entanto, o relato de um praça do Batalhão de Infantaria, Benedito José Rodrigues, na ocasião em que ele e mais quatro colegas faziam ronda à procura de contrabandos, é bastante elucidativo a respeito da estratégia utilizada por esses grupos de homens a cavalo enquanto percorriam seu trajeto. Segundo Benedito, eram seis homens a cavalo e armados, cada um carregando dois fardos de mercadorias amarrados nos arreios. Era