• Nenhum resultado encontrado

Os diferentes níveis da regulação educacional

No documento ANA PAULA DE MATOS OLIVEIRA (páginas 85-92)

CAPÍTULO 2: AVALIAÇÃO NACIONAL PROVA BRASIL COMO INSTRUMENTO DE

2.1 Regulação: concepções e objetivos

2.1.1 Os diferentes níveis da regulação educacional

Com base na discussão empreendida até esta parte do trabalho, percebemos que a regulação do sistema educacional exercida pelo “Estado avaliador” emerge no amplo e complexo campo das reformas estatais e da mundialização da economia. Diante disso, não podemos restringir nosso olhar sobre a regulação educacional efetivada neste modelo estatal a uma perspectiva binária na qual: se mais Estado, menos mercado ou se mais mercado, menos Estado. Isto porque, no interior desse modelo de Estado podem existir diferentes formas e modos de regulação. A esse propósito, Barroso (2006) elucida que em função da origem do processo regulatório é possível identificar três níveis distintos, porém complementares, de regulação: (i) regulação transnacional; (ii) regulação nacional; e (iii) microrregulação local. No primeiro nível temos a regulação transnacional definida pelo autor, como um

[...] conjunto de normas, discursos e instrumentos (procedimentos, técnicas, materiais diversos, etc.) que são produzidos e circulam nos fóruns de decisão e consulta internacionais, no domínio da educação, e que são tomados pelos políticos, funcionários ou especialistas nacionais, como “obrigação” ou “legitimação” para adoptarem ou proporem decisões ao nível do funcionamento do sistema educativo. (p. 44-45)

Em princípio, depreendemos que este tipo de regulação é aquela que ocorre no âmbito das reuniões, acordos de cooperação técnica ou financeira com os organismos internacionais, tais como BM, OCDE, Unesco, dentre outros. No entanto, além desta constatação, existem outras modalidades de regulação transnacional, todas decorrentes dos chamados “efeitos da globalização”.

O autor elucida que a origem desse primeiro nível se localiza nos países do capitalismo central e integra o sistema de dependência gerado entre os países periféricos ou semi-periféricos pelo desenvolvimento da globalização. Neste sentido, a partir desta relação entre países centrais e periféricos, podemos perceber outra possibilidade de regulação

transnacional a partir da existência de estruturas supra-nacionais, como é o caso da União Européia, que acaba assumindo um poder de decisão para a definição das políticas educacionais de toda Europa.

Assim, a primeira modalidade de regulação transnacional possível é a que inicialmente constatamos, ocasionada por meio das relações e acordos estabelecidos com os organismos internacionais. Estes, por sua vez, encaminham seus especialistas e técnicos aos países para realizarem estudos sobre a realidade dos sistemas educacionais e proporem programas para correção ou ajustamentos. Segundo Barroso (2006), estes programas “sugerem (impõem) diagnósticos, metodologias, técnicas, soluções (muitas vezes de maneira uniforme), que acabam por constituir uma espécie de “pronto-a-vestir” a que recorrem os especialistas dos diferentes países [...].” (p. 45)

A influência dos organismos internacionais acaba gerando certa “contaminação” na forma de entendimento dos problemas educacionais, na definição de conceitos, elaboração de políticas e ações pelos Estados. Diante disso, tendemos a considerar que existe certa imposição feita nos acordos firmados, porém, o autor esclarece que nem sempre trata-se de algo imposto, mas sim uma espécie de “empréstimo de políticas educacionais”.

O “empréstimo de políticas” pode ser entendido como a segunda modalidade da regulação transnacional. Ele ocorre porque alguns chefes de governo se deparam com políticas ou programas que funcionam com sucesso em outros países, especialmente nos centrais, e os transportam para sua realidade como uma solução rápida para o enfrentamento de dificuldades. Essa medida, em alguns casos, é adotada pelas autoridades estatais porque as políticas estão de acordo com os objetivos traçados para a realidade nacional. Em outros, ainda, é utilizada porque os governantes não encontram referências nacionais capazes de justificar determinadas reformas introduzidas, sendo necessário buscar exemplos internacionais que as legitimem ou justifiquem. O autor explica que esse empréstimo de políticas pelos países, são medidas que

[...] tanto podem obedecer (e serem justificadas), de um ponto de vista mais técnico em função de critérios de modernização, desburocratização e combate à “ineficiência” do Estado (“new public management”), como serem justificadas por imperativos de natureza política, de acordo com projectos neo-liberais e neo-conservadores, com o fim de “libertar a sociedade civil” do controlo do Estado (privatização), ou mesmo de natureza filosófica e cultural (promover a participação comunitária, adaptar o local) e de natureza pedagógica (centrar o ensino nos alunos e suas características específicas). (BARROSO, 2006, p. 48)

Inferimos que o sistema educacional brasileiro se insere dentro deste contexto de regulação transnacional, sofrendo seus efeitos em menor ou maior grau que outros países. Uma prova disso é a criação do Saeb a partir das experiências do Naep, conforme discutimos no capítulo 1. Além disso, percebemos que as justificativas para a implementação de programas internacionais transpassam mera incorporação de medidas neoliberais. Frente a este fato, devemos considerar que a elaboração das políticas públicas brasileiras não são genuinamente nacionais, pois diante da presença dos acordos e programas coordenados pelos organismos internacionais, também estamos “contaminados”. Porém, cabe destacar que este fenômeno não é padronizado, pois no momento em que se encontra com determinado contexto social, político e econômico, ele sofre “mutações”.

Segundo Barroso (2006), a influência internacional é mais incisiva no âmbito da decisão política e no controle de sua execução do que na incorporação de projetos ou pacotes de soluções. Assim, alguns dos exemplos que podemos citar são: i) a adoção de políticas de descentralização; ii) a intensificação da avaliação educacional externa; iii) o controle social sobre a escola; dentre outros.

O segundo nível de regulação identificado por esse estudioso é o da regulação nacional. Este processo regulatório está relacionado às formas institucionalizadas de ação do Estado, sendo definido como o modo que

[...] as autoridades públicas (neste caso o Estado e a sua administração) exercem a coordenação, o controle e a influência sobre o sistema educativo, orientando através de normas, injunções e constrangimentos o contexto da acção dos diferentes actores sociais e seus resultados. (p. 50)

Conforme a definição apresentada, reconhecemos que a regulação nacional compreende todas as ações empreendidas pelas autoridades públicas, de cada Estado nacional para gerir o sistema educacional. Podemos pensar, então, em todas as legislações, projetos e programas educacionais.

O autor menciona que a regulação nacional está associada ao aparecimento da regulação burocrático-profissional, marcada pela tensão entre “racionalidade administrativa” e a “racionalidade pedagógica”, tal como explanado na seção 2.1. A racionalidade administrativa, própria do governo central, elabora uma intricada estrutura burocrática, com normas legais e rede de funcionários (diretores, supervisores locais, entre outros), que devem ser obedecidos. A racionalidade pedagógica diz respeito aos educadores que, conscientes de seus deveres e direitos, trabalham de forma cooperativa e exigem melhores condições para o

exercício profissional. Com a presença dessas duas racionalidades, os projetos idealizados e normatizados para a melhoria escolar acabam por não se concretizar, pois cada unidade escolar, ante a autonomia que lhe foi conferida, desempenhará as ações a seu ritmo e forma.

Diante das mudanças econômicas, políticas e sociais vividas no período de reforma de vários países, no século XX, a regulação nacional, pautada nas duas racionalidades descritas, perde terreno para a regulação transnacional. Os Estados, perante os acordos firmados no cenário das relações internacionais, deviam se empenhar em alcançar um padrão de qualidade que os introduzisse no mercado competitivo global e, para isso, orientaram suas ações aos dos países centrais. Temos, assim, o estabelecimento de outra tendência da regulação nacional, que está associada ao modelo pós-burocrático, também discutido na seção 2.1.

Na análise de Barroso (2006), podemos dizer que as duas tendências, a burocrático- profissional e a pós-burocrático, se inscrevem na regulação nacional. A primeira, a partir de uma perspectiva diacrônica, realiza uma mera sobreposição de diferentes regras e orientações às práticas e estruturas antigas, demarcando uma pretensa modernidade nos empreendimentos estatais. Isto quer dizer que apesar das novas metas propostas, o predomínio continua sendo da regulação burocrático-profissional: o governo determina e as escolas fazem da maneira que podem ou que acham que devem fazer.

A segunda tendência, partindo de uma perspectiva sincrônica, se refere aos efeitos ocasionados pela interferência da regulação transnacional. As propostas internacionais acabam sendo mediatizadas pelo contexto nacional, gerando um “hibridismo”59, diante da

mescla de diferentes lógicas e práticas que estão em jogo na definição das ações políticas. Esse hibridisno, de acordo com o autor, pode se manifestar em dois patamares: (a) na relação entre os países; e (b) na utilização, por um mesmo país, de formas de regulação procedentes de modelos diferentes. O primeiro coloca em questão a ideia de que as ações, políticas ou programas “emprestados” de outros países sejam implementados sem questionamento, passivamente. Neste sentido, revela que uma “política importada” de outro país pode produzir diferentes efeitos, positivos ou não, para determinado sistema educacional. Por sua vez, o segundo patamar apresenta a coexistência de diferentes modelos de regulação na condução das políticas públicas. Temos, então, uma mescla de diferente regulações, com

59 A expressão hibridismo ou hybridization, segundo Barroso (2006) é trabalhada pelo estudioso Popkewitz

(2000), dentre outros, para destacar o caráter plural e misto das reformas educativas e de seus pressupostos e procedimentos.

intensidades variáveis, que ora possuem uma maior intervenção estatal, ora maior intervenção do mercado.

Por fim, o terceiro nível de regulação identificado por Barroso (2006), é o da microrregulação local, que está relacionado a um complexo

[...] jogo de estratégias, negociações e acções, de vários actores, pelo qual as normas, injunções e constrangimentos da regulação nacional são (re) ajustadas localmente, muitas vezes de modo não intencional. Neste sentido, a microrregulação local pode ser definida como o processo de coordenação da acção dos actores no terreno que resulta do confronto, interação, negociação ou compromisso de diferentes interesses, lógicas, racionalidades e estratégias em presença quer numa perspectiva vertical entre “administradores” e “administrados”, quer numa perspectiva horizontal, entre os diferentes ocupantes dum mesmo espaço de interdependência (intra e inter organizacional) – escolas, territórios educativos, municípios etc. (p. 56-57)

Comparando os três níveis de regulação, percebemos que o da microrregulação é o que mais sofre influências, pois carrega, em certa medida, os efeitos dos anteriores. Para ilustrar essa assertiva vamos direcionar o olhar para o nosso objeto de estudo – a Prova Brasil e suas implicações para a regulação da rede de ensino pela SEE/DF. O governo central, ao delinear a política de avaliação nacional esteve sob a influência do contexto internacional e, assim, da regulação transnacional. Dessa forma, no momento em que a Prova Brasil foi disseminada como política pública, para as outras esferas governamentais, apresentava traços tanto da regulação nacional, como da transnacional. Posteriormente, cada Secretaria de Estado de Educação teve de se articular internamente, para concretizar a avaliação nacional. No caso da SEE/DF, as orientações foram repassadas para as suas DRE, que coordenam as atividades junto às instituições escolares. Nesse trajeto do governo central até a SEE/DF, possivelmente, a política nacional sofreu a interpretação de distintos atores. Por fim, quando chegarem às escolas, via DRE, mais uma vez foram reinterpretadas, de acordo com as distintas realidades locais.

A origem da microrregulação local, tal como menciona o autor, é difícil de precisar, mas podem ser localizadas a partir da maior participação e protagonismo da sociedade civil nos espaços públicos. Sendo assim, são processos complexos e imprevisíveis tendo em vista os números de intervenientes que estão em cena. Todavia, existe uma estrutura comum entre as microrregulações, que é a existência de redes de comunicação e decisões dinâmicas e fluidas dentro da organização local.

Neste sentido, podemos comparar as redes mencionadas por Barroso (2006) à regulação autônoma a qual se refere Reynaud (1988). Isto é possivel porque as relações e trocas de informações e conhecimentos que ocorrem no interior de uma unidade escolar refletem os distintos interesses dos indivíduos que a constituem e não podem ser definidas a priori.

Para demarcar e interpretar a evolução do processo de regulação local da escola no decorrer do século XX, Barroso (2005a, p. 73) apresenta um esquema interpretativo que reproduzimos na Figura 1.

Figura 1 – Modos de “regulação local” da escola

Os pólos do triângulo também exercem uma força de atração que acaba formatando uma determinada tendência das políticas públicas educacionais: (i) a estatização, simbolizada pelo “Estado educador”; (ii) a profissionalização, simbolizada pela “república dos professores”; e (iii) a privatização, simbolizada pelo “Mercado educativo”.

Além disso, diante das características do modo de regulação nacional característico de cada pólo do triângulo, alianças bipolares são realizadas entre: (i) Estado e professores; (ii) Estado e pais de alunos; (iii) professores e pais de alunos; resultando no que o autor denomina

de terceiro excluído. A este respeito, Barroso (2005a, p. 73) realiza uma sistematização, a qual apresentamos na Figura 2.

Figura 2 – Alianças bipolares e o terceiro excluído

Nesse quadro, dentre os modelos de regulação discutidos, temos também a regulação comunitária. Tal como podemos notar, as duas primeiras regulações fazem parte da regulação nacional e a última faz parte da microrregulação, na qual ocorre a relação dos professores com os pais de alunos e a comunidade local.

Diante dessa explanação, desfazemos a ideia de que a regulação é um processo simplesmente imposto de cima para baixo por meio do governo central. O processo regulatório é complexo e podemos visualizá-lo como uma teia de relações dinâmicas e em constante transformação. Segundo Barroso (2006), a regulação do sistema educacional é um processo plural e, por vezes, imprevisível. Desta forma, quando nos reportamos ao sistema educacional devemos falar de um processo de “regulação das regulações”. Isto porque o seu funcionamento decorre da interação de uma diversidade de dispositivos reguladores e não da aplicação hierárquica e linear de regras e orientações. Desta forma, seria mais adequado falarmos de uma

[...] “multirregulação” já que as acções que garantem o funcionamento do sistema educativo são determinadas por dispositivos reguladores, que muitas vezes se anulam entre si, ou pelo menos, relativizam a relação causal entre princípios, objetivos, processos e resultados. Os ajustamentos e reajustamentos a que estes processos de regulação dão lugar, não resultam de um qualquer imperativo (político, ideológico, ético) definido a priori, mas sim dos interesses, estratégias e lógicas de acção de diferentes grupos de actores, através de processos de confrontação, negociação e recomposição de objectivos e poderes. (p. 64)

Uma vez que a regulação do sistema educacional é na realidade um processo de “multirregulações”, o autor aponta a necessidade de reconhecer que se trata de um “sistema de regulação”. Consideramos, que à medida que esta realidade for reconhecida pelas autoridades

– Estado + professores – pais dos alunos = regulação burocrático-profissional – Estado + pais dos alunos – professores = regulação pelo mercado

públicas, as ações dos diversos atores passará a ser valorizada, tendo em vista que o papel desempenhado pelos indivíduos dentro do sistema terá um significado e importância.

Sendo assim, Barroso (2006) enfatiza que o papel do Estado deve ser o de “regulador das regulações” ou de “metarregulação”. Esta mudança no papel do Estado que deixaria de exercer a regulação para empreender uma “metarregulação”, proporcionaria uma nova organização e condução de suas estratégias e políticas públicas, pois seria necessário reconhecer a importância de abrir diferentes canais de comunicação e decisão.

Nesta perspectiva, inferimos que para ocorrer uma possível mudança na forma do Estado regular o sistema educacional, seria necessário reorientar e romper com a estrutura e condução hierarquizada da própria política de avaliação por ele coordenada. Existindo uma negociação da avaliação entre governo federal, estadual, municipal, distrital e escolas, a Prova Brasil, ao invés de acabar centrada na classificação das melhores ou piores instituições, buscaria estratégias para se articular com todos os atores educacionais, no intuito de instaurar, em parceria com as instâncias gestoras, uma prática pedagógica de qualidade, a partir da investigação das especificidades de cada escola e rede. Desta forma, tal como aponta Esteban (2003), as avaliações deixariam de ter como meta um ideal homogêneo de escola e passaria a valorizar a heterogeneidade real.

Com base nessas reflexões, consideramos que para entendermos como a Prova Brasil despontou no contexto da regulação do “Estado-avaliador brasileiro” e, mais precisamente, da SEE/DF, é relevante discutirmos aspectos da própria ação avaliadora. Sendo assim, nas seções seguintes nossa intenção é abrir um debate sobre o conceito de avaliação e as características da avaliação educacional.

No documento ANA PAULA DE MATOS OLIVEIRA (páginas 85-92)