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2 AS LEITURAS NA CANÇÃO

2.2 Os discursos na canção

Em sua tese, Peter Dietrich (2008) descreve a importância de que, em uma análise semiótica da canção, façamos a distinção entre discurso musical e discurso de produção musical, visando evitar confusões desnecessárias e, desta forma, dar maior confiabilidade aos resultados obtidos pela análise. O autor relaciona os problemas epistemológicos nos trabalhos de semiologia da canção às dificuldades inerentes à semiotização das estruturas puramente musicais, que leva os pesquisadores a confundirem ambos os discursos. Considera que essa confusão esteja relacionada a uma má interpretação do papel da partitura na produção musical e sua relação com o discurso musical.

Dietrich argumenta que na análise da canção, tentar levar a semiótica a um evento anterior à enunciação, coloca o pesquisador em um terreno de hipóteses impossíveis de serem comprovadas. O problema está justamente na forma de circulação da informação musical, ou seja, qual será o tipo de leitura que veiculará essa informação.

28 Canção midiática: Termo empregado por Heloísa Valente em seu artigo Os giros (do mundo) do disco voz na voz

Historicamente, a música29 teve duas formas de circulação de informação musical, sendo a primeira e mais antiga a transmissão oral, e posteriormente, a transmissão via registro escrito, seja em notação neumática, alfabética, tablatura ou em partitura30. As novas tecnologias desenvolvidas no século XX permitiram uma outra forma de transmissão de informação musical que não somente a oral e a escrita: a gravação. Não obstante, qualquer uma das formas de circulação de informação musical citadas não permite o registro fidedigno da obra em toda sua dinamicidade e pluralidade. A transmissão oral provoca modificações nas estruturas melódicas e harmônicas, nas letras, andamentos, ritmos e dinâmicas. A transmissão escrita, por mais detalhada que seja, tem suas limitações enquanto estrutura formal, além do fato que “ignora” o fator intérprete, que nunca é o mesmo (uma única pessoa não interpreta duas vezes da mesma forma). A gravação, que teoricamente teria a capacidade de registrar o maior número de fenômenos musicais de uma performance, deixa de ser um registro do discurso musical e se torna também um “texto musical” no momento em que se transforma em objeto de análise.

Márcio Coelho (2007) reflete sobre os problemas inerentes ao registro do discurso musical, argumentando que independentemente da escolha da forma de registro, este sempre será insuficiente. Para o autor:

A única maneira de registrar virtualmente esse núcleo de identidade é por meio da partitura musical, embora saibamos de antemão que a notação em partitura é insuficiente para registrar todas as nuanças de uma canção manifestada. Por que, então, não registrá- la por meio de gravação eletromagnética ou digital? Podemos, sim, registrar canção, no entanto, nunca o seu núcleo de identidade virtual, pois, caso registrássemos a letra e o contorno melódico de uma canção em um gravador, aquilo o que era núcleo de identidade virtual já seria manifestação, ou seja, o que era discurso, nesse caso, passaria a ser texto. (COELHO, 2007, p. 62)

Para Coelho, a partitura se constitui como a única forma de se registrar o “núcleo de identidade da canção”, que seriam o binômio letra e melodia. Luiz Tatit define o “núcleo de identidade da canção” como sendo a letra e a melodia que a sustenta, e afirma que nem todos os valores investidos se manifestam em todas as interpretações. Conforme o autor:

29 Até o final da Renascença, não existia distinção entre música e canção, pois a música instrumental estava necessariamente associada à canção e à dança.

30 Até o advento da partitura musical, tal como a conhecemos atualmente no ocidente, foram criados inúmeros modelos de notação musical.

Acontece que, dos diversos valores investidos numa obra pela atividade de composição, apenas alguns se manifestam durante o processo de execução. Uma canção acelerada proporciona em geral grande proximidade a seus elementos melódicos de modo que as similaridades e os contrastes tornam-se flagrantes. Quase não há percurso porque quase não há necessidade de busca. São conjunções (ou mais raramente disjunções) relativamente estáveis que vão repercutir nos momentos da letra em que o sujeito manifesta satisfação pela integração com o objeto sob a forma de exaltação de suas qualidades. A mesma canção, interpretada sob a influência da desaceleração, tem suas durações físicas naturalmente ampliadas criando tensões de percurso mais compatíveis com os sinais de desejo, da espera e do próprio itinerário narrativo. Imediatamente, os conteúdos da letra camuflados na primeira versão vêm à tona, muitas vezes ressaltando sentimentos de falta ou dramatizações até então insuspeitados dentro da obra. (TATIT, 1997, p. 23)

Ironicamente, seria justamente a “incapacidade” da partitura musical de registrar todos os aspectos sonoros envolvidos na performance musical que a qualificaria como registro do “núcleo de identidade da canção”, pois se lhe fosse permitida tamanha pluralidade, ela deixaria de ser o registro do discurso musical se tornaria o próprio discurso. Peter Dietrich entende que, caso a partitura tivesse a capacidade de registrar a pluralidade de uma situação musical, estaria automaticamente atualizando a performance, deixando por esse motivo de ser registro para se tornar a performance em si. Segundo o autor: “Se a partitura não tivesse tais 'insuficiências', e fosse capaz de registrar 'todas as nuances', ela já estaria atualizando e realizando o objeto que – na economia da teoria ali esboçada – ainda precisaria estar em estágio virtual”. (DIETRICH, 2008. p. 27)

Para Dietrich, partindo-se da lógica de que a partitura seria o meio de registrar apenas o “núcleo de identidade”, então ela precisaria se constituir como um “discurso sem texto”. A partitura se configuraria como um recurso para resolver algo que não precisaria ser resolvido, caso a distinção entre discurso de produção musical e discurso musical fosse considerada. (DIETRICH, 2008).

Segundo o autor, o conceito de “núcleo de identidade”, tanto no discurso musical quanto no discurso de produção musical, só pode ser aceito se identidade for tomada no sentido estrito de identificação, e complementa que letra e melodia são “nucleares” apenas se tomadas como forma de identificação, pois tais elementos da canção são tão portadores de sentido quanto qualquer outro aspecto musical. (DIETRICH, 2008, p. 35) A enunciação encontra-se em todos os

elementos musicais da canção, motivo pelo qual é impossível extrair uma enunciação fragmentada. Conforme Dietrich:

Vimos que a canção, tomada como objeto de análise, é sempre um texto acabado, sendo impossível extrair dele uma enunciação fragmentada, em etapas. As marcas da enunciação estão inseridas na letra e em todos os elementos musicais, não apenas na melodia. Separar a atividade do compositor e do intérprete é algo que só pode ocorrer no discurso de produção musical. (DIETRICH, 2008, p. 33)

Utiliza-se como referência nesta investigação a análise do discurso de produção musical construída por Peter Dietrich; porém, as canções que compõem o acervo do Cancioneiro Popular da Imigração Italiana têm especificidades que as diferenciam do modelo de canção que embasou a construção analítica do autor. Da mesma forma, não trabalharei com o conceito de “núcleo de identidade da canção” estabelecido por Tatit e utilizado por Coelho. As referências ao referido núcleo estão aqui colocadas no intuito de problematizar as diferentes abordagens no que se refere ao registro e à análise do discurso musical.

Conforme dito anteriormente, as canções que são objeto de análise têm caráter tradicional, foram transmitidas por gerações através da oralidade, não possuindo, desta forma, a figura de um compositor. O que se tem, sim, é a figura do arranjador e do intérprete. Sobre o arranjador, é interessante comentar que seu papel foi acrescentado na prática das canções de imigração italiana por causa da formação coral. Este é um dado bastante interessante se levarmos em consideração que as canções são atualmente interpretadas quase que exclusivamente através de coros, o que implica na atuação de um arranjador.

Uma vez compreendida a impossibilidade de se realizar uma análise da canção de forma fragmentada, já que as marcas da enunciação estão em todos os elementos que compõem a performance musical; e, da mesma forma, reconhecendo que toda canção, uma vez submetida à análise, constitui-se como texto, é preciso esclarecer as limitações de uma análise semiótica da canção, por mais plural que seja sua abordagem.

Utilizam-se como recursos de análise a notação musical ocidental (partitura), assim como alguns gráficos. Esses recursos serão utilizados apenas com o intuito de exemplificar o processo de formação de sentido na prática das canções; no entanto, tais recursos serão sempre

insuficientes para transmitir a dinâmica da performance do Cancioneiro Popular da Imigração Italiana.

Enquanto informação musical, a partitura só permite transmitir uma parte do discurso musical, justamente pelo fato de que não lhe é possível registrar fielmente todos os elementos do fenômeno sonoro. A partitura é um método de transcrição dos elementos sonoros baseado principalmente na duração e altura dos sons. Os demais elementos sonoros como intensidade, andamento, timbre, efeitos, dentre outros, até podem ser representados, mas suas leituras serão sempre abstratas. Por exemplo: um intérprete irá identificar, a partir de seu universo cognitivo/musical, a sua concepção de “timbre metálico”. Esta certamente terá alguma semelhança com a concepção do referido timbre por outros intérpretes, mas nunca será a mesma concepção. Ao contrário da duração e altura dos sons, que exigem do leitor uma resposta precisa (em uma leitura de partitura, não é possível tocar “mais ou menos uma semínima” ou “praticamente um dó”), os demais elementos sonoros, quando transcritos para partitura (nem sempre o são), têm caráter abstrato.

Conforme se comentou na seção 1.3 sobre o acervo Cancioneiro Popular da Imigração Italiana, a prática das canções na região da Serra Gaúcha mudou consideravelmente desde seu primeiro registro, na década de 1980. O que antes acontecia em praticamente qualquer forma de agrupamento social, agora acontece em uma situação de destaque, nos corais, e de forma previamente organizada. O regente coral se faz presente em praticamente todos os coros, mesmo que a figura do regente e cantor se confundam eventualmente.

Essa mudança na prática das canções provoca uma mudança na leitura das canções. Em um primeiro momento, o registro das canções em notação musical era muito incomum, visto que as músicas eram interpretadas por qualquer pessoa que conhecesse alguma canção, esta aprendida, na maioria das vezes, por transmissão oral. Os poucos casos de registro em partitura que se teve conhecimento estavam relacionados ao acervo de igrejas (os padres e freiras geralmente tinham educação musical), ou aos casos excepcionais de pessoas que tiveram alguma formação musical e que reconheciam a importância de registrar e resgatar as canções, como foi o caso da família Panozzo, citado anteriormente. Esse cenário teve uma mudança significativa na contemporaneidade: a maior parte dos corais que interpreta o repertório de canções da imigração

italiana produz partituras com arranjos das canções. Ou seja, após trinta anos de prática do Cancioneiro, a “leitura musical iletrada” se transformou em uma “leitura musical letrada”.

É difícil afirmar a causa dessa mudança na forma de transmissão das canções. Poderíamos pensar, em um primeiro momento, que teria havido uma redução no analfabetismo musical na região da Serra Gaúcha, e que isso provocou um aumento no número de registros de canções em partituras. Mas não creio que seja a causa. Mesmo que tenha acontecido uma melhoria na formação musical na região, tal melhoria não seria significativa a ponto de gerar tamanha mudança na prática e registro das canções. O que provavelmente provocou essas modificações foi, como se discutiu anteriormente, a mudança na performance do cancioneiro: o número de pessoas que interpretava esse repertório se restringiu a um pequeno número de grupos corais; o cantar intuitivo e espontâneo deu lugar ao canto organizado, em situação de destaque; antes não havia público, agora há. A proporção do número de pessoas com formação musical no decorrer desses trinta anos não deve ter aumentado. Por outro lado, o número de pessoas que interpretam o repertório, assim como a quantidade de situações de performance do Cancioneiro, se restringiu.