• Nenhum resultado encontrado

Os efeitos das estruturas sociais de pertença nas relações sociais de investigação.

No documento Maria Celeste Monteiro Fortes (páginas 54-61)

CAPÍTULO 2. Por onde se entra na antropologia? Pelo terreno e pessoas

2.2. Autoridade etnográfica revisitada: etnografia multi-si tuada entre “mulheres cabo verdianas” em Portugal e Cabo Verde.

2.2.2. Os efeitos das estruturas sociais de pertença nas relações sociais de investigação.

Considerando que a participação das minhas interlocutoras no processo de pesquisa, foi decisivo para o rumo que a minha investigação tomou, creio que faz sentido, aprofundar mais, a questão dos efeitos das estruturas sociais de pertenças nas relações sociais de investigação. Se ficou claro essa participação ativa dos “nossos informantes”, capaz de produzir antropologias outras, não fica claro o lugar que o antropólogo, aquele que chegou ao terreno com essa posição, passa a ocupar. Mais ainda como consegue legitimar o seu trabalho, para muitos de tradutor e de produtor de conhecimentos, dos Outros?

Tenho vindo a falar do encontro etnográfico como um jogo (Viveiros de Castro, 2002). Podemos acrescentar à discussão a perspetiva de Bourdieu (2007), que defende que essa relação é à priori uma relação não assimétrica. Bourdieu justitica o seu posicionamento, argumentando que o pedido para a colaboração na investigação, geralmente parte do investigador que tem já os seus interesses, objetivos e métodos previamente estabelecidos e por conseguinte, ele dirige o jogo, sabendo que terá de ganhar (Bourdieu, 2007:695).

Por outro lado, acrescenta Bourdieu (2007), esta relação assimétrica é cada vez mais evidente e profunda nos contextos relacionais em que o investigador possui maiores capitais culturais, intelectuais, sociais, etc., do que aqueles que o investigador possui. O autor prossegue e defende que uma das diferenças visíveis nessa relação social, ocorre sobretudo, no mercado dos bens linguísticos e simbólicos (Bourdieu, 2007), significando que a interação se dá num contexto de manejos dos capitais linguísticos, por parte do entrevistador e entrevistados.

Para Bourdieu é o entrevistador quem dá inicio a essa interação. O que podemos disso retirar, é que ele recusa a ideia de possibilidade de negociações prévias entre os dois, ao contrário do que venho sugerindo. Inclusive, o guião usado com as minhas interlocutoras, teve uma base negocial, já que a primeira versão do mesmo,

55

construído durante a fase exploratória, comtemplava apenas as “minhas questões”. A construção negocial do guião respeitou assim a proposta de continuidade epistémica.

Essa relação social, de acordo com Bourdieu (2007), é marcada pela possibilidade de ocorrer situações de violência simbólica. Uma das melhores estratégias a adotar, na tentativa de anular os efeitos do desequilíbrio social entre investigador e investigado, passa por “uma espécie de mimetismo mais ou menos controlado, a adotar sua linguagem e a entrar em seus pontos de vistas, em sentimentos, em seus pensamentos, com a construção metódica, forte, do conhecimento das condições objetivas, comuns a toda uma categoria.” (Bourdieu, 2007:695).

Embora se tenha dado uma colaboração epistémica, se considerarmos que um dos elementos diferenciadores das mulheres com quem tenho vindo a trabalhar é a educação e que tal ferramenta, conforme já referenciado, constitui um elemento central para a mobilidade social ascendente entre os cabo-verdianos, importa refletir sobre a presença desse recurso no contexto das relações etnográficas. Ou seja, trata- se de assumir que os manejos dos capitais são guiados por estratégias de instrumentalização dos mesmos, sobretudo, dos capitais culturais, conforme diz Bourdieu.

“Hoje aconteceu uma situação que de facto me deixa cada vez mais convencida de que as relações, que ocorrem no campo, são feitas de poder. Depois de algum tempo insistindo com uma estudante para me conceder uma entrevista, ela aceitou ser entrevistada, mas não para hoje. Depois digo-te quando. Agora não me apetece, não estou inspirada - disse-me ela. Insisti com ela, até porque já tínhamos combinado que seria - então já tínhamos marcado, disseste que podia ser hoje -, disse-lhe ao que ela respondeu ‘ sim tinha dito que podia ser hoje mas relaxa, já te disse que te vou dar uma entrevista. Relaxa, vou ajudar-te, só que agora não me apetece, marcamos para outro dia’. Marcamos para a próxima semana, mas ficou combinado que eu teria de lhe ligar a lembrar, porque como disse ‘quero ajudar-te, mas posso esquecer-me”.(CF, Diário de Campo, outubro de 2009).

Uma instrumentalização que por seu lado tem como objetivo posicionar-se perante o Outro (entrevistador ou entrevistado) a fim de controlar a situação da

56

entrevista e o próprio encontro etnográfico. Durante a pesquisa entre as mulheres estudantes em Portugal, ficou claro essas tentativas de instrumentalização, que se traduz numa frase chave: “Ok Celeste, eu ajudo-te.”

E essa instrumentalização incita-me a dialogar com autores que têm argumentado que o trabalho dos cientistas sociais, particularmente aqueles que trabalham com as questões de género, tem como tarefa principal o resgate da voz dos subalternos, nesse caso das mulheres (Spivak, 1988). Isto é, podemos problematizar, a partir da minha experiência de pesquisa, o conceito de subalterno, proposto por Spivak (1988).

Nesse contexto particular em que entre “investigadora” e “investigadas” existem traços de identificação e de diferenciação, são colocados desafios ao uso de conceitos e cateogorias como sublaternos. Como fica claro pela definição de Spivak (1988), trata-se de um conceito político, que por conseguinte politiza o investigador perante aqueles que investiga e perante outros Outros, que fazem parte de todo o percurso da investigação (autoridades, governos, instituições sociais, os outros que ficaram de “fora”, como sejam os homens que foram indiretamente referenciados e por conseguinte diretamente ausentados).

Perante a ideia que as mulheres têm, de que o papel delas é o de ajudarem-me na pesquisa ou que haverá questões mais pertinentes a trabalhar, creio que, sobreutdo no caso das mulheres em Portugal, fica ou ficou claro, que elas não se posicionam como mulheres cujas vozes precisam ser resgatadas, portanto não se consideram como subalternas.

Com efeito, não posso considerar as mulheres com capital académico como sendo subalternas, quando elas próprias não se posicionam como tal e quando produzem discursos de si, que pretendem distanciar-se da biografia de outras mulheres cabo-verdianas, por exemplo as suas mães.

A atitude dessas mulheres ao longo do encontro etnográfico, durante as tentativas de marcação das entrevistas, nas sessões de entrevistas e em outros espaços ou contextos relacionais, deixa-me mais convencida desse

57

autoposicionamento contra a categoria de subalternas, ao contrário das mulheres sem capital académico, com quem trabalhei em Cabo Verde.

As interlocutoras com capital académico referiram-se às outras mulheres cabo- verdianas como sendo submissas e dependentes dos homens, isto é, consideram-nas como subalternas.

A impressão com que fiquei dessas sessões é que a posse de capitais culturais e académicos das jovens mulheres, permite-lhes ter mais informações para produzirem suas caracterizações, sobre o que significa ser investigadora, participar numa investigação enquanto “investigado”, contribuir para uma pesquisa, e mais ainda os ganhos que podem retirar dessa relação.

Mais uma vez recorro ao meu diário de campo para exemplificar.

“Numa segunda sessão de entrevista com a S. já em Cabo Verde, depois do seu regresso definitivo, falamos sobre a escrita da tese. S. perguntou-me em que estado estava a escrita, se já estava prestes a concluir, ao que lhe respondi que tenho estado a trabalhar, mas ainda falta fechar o terreno. Perguntei-lhe porque queria saber sobre o estado da escrita da tese, ela entre risos disse-me: é para saber se já fizeste a parte dos agradecimentos. Não te esqueças de colocar o meu nome nos agradecimentos. Já te dei duas entrevistas, sem contar com as nossas conversas menos formais.´” (CF, Diário de Campo, Cabo Verde, depois da entrevista com a S.).

Uma atitude que nunca encontrei nas outras mulheres, não que tivessem tido menos consciência do que é fazer uma entrevista e uma pesquisa, mas porque a forma como ao longo da nossa interação me colocava perante elas e elas perante mim, levou a que por parte delas houvesse uma valorização maior da minha participação enquanto voluntária da Morabi, do que como antropóloga.

Podemos desta forma entender essas relações no terreno enquanto sistemas de dádivas e contra dádivas (Silva, 2006)37 que sem dúvida desestabilizam as nossas

37 Silva (2006) afirma: “Vale notar que a cortesia com que me receberam [Timor.Leste, 2002] tinha também como contrapartida algum tipo de contradádiva, que durante a pesquisa tive que honrar...tive como função dar aulas de português aos funcionários locais, traduzir correspondências oficiais para a língua portuguesa em alguns momentos, agilizar o contato informal entre autoridades timorenses e brasileiras.” (Silva, 2006:242 - 243).

58

pretensões de trazermos de lá (do terreno) apenas respostas para as nossas questões, que levamos daqui (pré-terreno, academia, etc.).

Trata-se ainda de considerar os espaços onde ocorreram esses encontros. Em Lisboa realizei entrevistas, por exemplo nas casas das estudantes, universidades, miradouros de São Jorge e da Graça, por indicação de uma das entrevistadas que me informou que os dois miradouros são os lugares que ela frequenta quando quer pensar na vida. Lugares escolhidos por elas.

Nas entrevistas que realizei com as mulheres sem capital académico, o único espaço de entrevista foi a Morabi, por ser ali o espaço que me acolheu durante a minha pesquisa em Cabo Verde, e onde fiz os primeiros contactos com as mulheres que vieram a ser entrevistadas. Apesar de ter explicado às mulheres que estava lá para fazer uma pesquisa para o meu doutoramento, a responsável apresentava-me38, referindo-se ao facto de eu ser voluntária da Morabi, e que tinha contactado a instituição para fazer uma pesquisa sobre mulheres cabo-verdianas.

Mantive contacto com todas as mulheres que entrevistei, para seguir o curso das suas vidas e porque continuei a fazer voluntariado, pelo que a nossa referência passou a ser a Morabi. Ainda hoje, quando nos encontramos e ocorrem situações em que têm de apresentar-me a outras pessoas, fazem referência ao facto de eu ser “voluntária da Morabi”.

Esses trabalhos incluíram sessões de sensibilização e esclarecimento sobre temáticas que tocam questões de género e violência doméstica, género e sexualidade, género e doenças sexualmente transmissíveis, género e empowerment.

Durante os encontros com estas mulheres, nunca ficou claro o que realmente esperavam do meu trabalho. Se as mulheres com quem trabalhei em Lisboa, perguntavam constantemente quando ia entregar a tese e se tinha mencionado o nome delas na tese, as mulheres na Morabi, quando me encontravam perguntavam- me pelas atividades na Morabi ou aproveitavam para tirar dúvidas, sobre por exemplo, “próximas consultas com a psicóloga voluntária”. Houve inclusive uma mulher que no

38 Ela teve o papel de apresentar-me às mulheres, considerando, segundo ela, que talvez fosse mais fácil para o sucesso do trabalho. Ganharia a confiança das mulheres porque seria introduzida por alguém que além de ter autoridade na instituição é respeitada.

59

encontro casual na rua, à frente de um Banco, perguntou-me se tinha o número da conta da Morabi, porque ela tinha saído de casa para fazer o depósito das prestações do microcrédito que havia recebido, mas tinha-se esquecido de levar o número da conta.

Recuperando a questão do resgate da voz dos subalternos, senti por várias vezes, sobretudo nas sessões com a comunidade, que essas mulheres proferiam desabafos, esperando que eu e as outras colaboradoras da Morabi, as escutasse e pudessemos fazer alguma “coisa”, para a melhoria das situações relatadas.

Além de receber por parte dessas mulheres, colaborações durante a pesquisa de terreno, para que entrasse nas suas vidas, importa refletir sobre os efeitos que em mim tiveram as suas vidas. Por um lado, o modo como as suas narrativas produziram um conhecimento maior sobre a “realidade cabo-verdiana”, a partir das relações de género, do meu contexto de vida, e por outro lado, as influências que algumas “histórias de vida” tiveram sobre as minhas relações, sobretudo com as mulheres e homens que fazem parte do meu quotidiano.

Falo sobretudo, de episódios de violência contra a mulher e contra os filhos, da transmissão de doenças pela via de relações sexuais, que não consegui esquecer nos meus momentos de socialidade e relações íntimas e que durante algum tempo foram inclusive motivo de conflitos em casa.

O que significa que, durante a minha pesquisa na Morabi, foi difícil separar o meu trabalho enquanto antropóloga, voluntária e a minha vida pessoal. Por algum tempo fazia um esforço para não misturar e comparar o curso das minhas relações pessoais, com o curso das relações que as minhas entrevistadas tinham com os seus respetivos companheiros e com as suas famílias no geral.

Mas essas mulheres, de forma indireta tranquilizaram-me sobre a possibilidade de eu ter a mesma “má sorte” que tiveram:

“Hoje conversei com a Ana. Depois de ter desligado o gravador, continuamos a conversar. Perguntou-me se tinha filhos; respondi-lhe que não; perguntou-me se tinha namorado; disse-lhe que sim, mas que queria ter filhos só depois de terminar o doutoramento, ao que ela me respondeu: ‘Graças a Deus que tens escola: Tens

60

possibilidade de não deixar nenhum homem abusar de ti. Vocês que têm escola não devem levar chatices de homem, não têm de depender de homem nenhum. Podem ter o vosso trabalho, a vossa vida, decidir quando vão ter filhos. Eu, se pudesse não teria tantos filhos, só para agradar um homem, que depois me abandonou’…” (Diário de Campo, Cabo Verde, depois da entrevista com a Dona Ana, outubro de 2009).

Saindo desta primeira hospedagem mais metodológica, levo na bagagem, outras vontades de descoberta e de reflexão. Escolho entrar e parar no (s) país (es) de múltiplas colinas de reflexão sobre o género.

61

CAPÍTULO 3. Trajetória do género como objeto de estudo da

No documento Maria Celeste Monteiro Fortes (páginas 54-61)