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Os interesses recíprocos entre a moda e as artes cênicas

No documento A roupa depois da cena (páginas 31-37)

1 A ROUPA COMO OBJETO DE REFLEXÃO

1.1 Os interesses recíprocos entre a moda e as artes cênicas

Ao abordarmos a criação e o uso de um figurino, entendemos sua importância em relação à metamorfose que o ator precisa viver para que encontre seu personagem. Esse objeto-traje14, como uma segunda pele particular, passa a emitir

sinais que tocam o ator e permitem que seu corpo se integre plenamente com o lugar da cena, dentro do espaço dramático ficcional, como também com as diferentes épocas retratadas no espetáculo (BIET, 2014, p. 15).

Sendo o teatro tão antigo quanto a humanidade e a transformação numa outra pessoa uma das formas arquetípicas da expressão humana, segundo Berthold (2001), a diferença essencial entre as formas de teatro mais primitivas e as mais avançadas é o numero de acessórios cênicos à disposição do ator para expressar sua mensagem. Conforme nos relata a autora:

O artista de culturas primitivas e primevas arranja-se com um chocalho de cabaça e uma pele de animal; a ópera barroca mobiliza toda a parafernália cênica de sua época. Ionesco desordena o palco com cadeiras e faz uma proclamação surda-muda da triste nulidade da incapacidade humana. O século XX pratica a arte da redução. Qualquer coisa além de uma gestualização desamparada ou um ponto de luz tende a parecer excessiva (BERTHOLD, 2001 p. 1).

O traje de cena começa a revelar uma preocupação com a adequação entre o espetáculo e a roupa usada pelo ator a partir do final do século XVIII. Durante muitos séculos, o ator subiu ao palco com suas próprias roupas, não havendo distinção entre a roupa social e o figurino, nem, muitas vezes, a mínima coerência entre o tema, a época ou o local onde se desenvolviam as histórias.

Podemos explorar os encontros e desencontros da roupa social com os trajes de cena nas encenações teatrais ao longo dos séculos com base na reflexão de Cyro Del Nero, um profundo conhecedor da cultura e do teatro grego 15. Assim ele nos sugere, a partir da nomenclatura usual:

14 O termo existente originalmente em francês é “objet-costume” (tradução nossa).

15 Cyro Del Nero (1931-2010) atuou como cenógrafo, diretor de arte e figurinista, em teatro e televisão, sendo uma referência no universo teatral brasileiro, principalmente em cenografia. Atuou também na área de moda durante dez anos, nos desfiles da Rhodia Feira Nacional da Industria Têxtil (FENIT), em parceria com Livio Rangan. Foi professor titular do Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da USP.

Costumes: roupas usadas pelos atores, de acordo com o vestuário da época retratada na peça e a interpretação com ela relacionada. Figurino; indumentária. São os elementos mais antigos do teatro: mais velhos que os cenários e mais novos que as máscaras. No teatro grego, as roupas eram a princípio simples, mas se tornaram, ao longo de dois séculos, mais e mais ricas , com o surgimento, por exemplo, de ombreiras e coturnos para exaltar a figura do ator. Durante a Idade Média, a Renascença e o Barroco, os costumes refletiam a própria época da representação, não havendo preocupação em reconstituir o estilo da época refletida no texto. Eram fantasiosas e riquíssimas – um espetáculo em si mesmas (DEL NERO, 2009, p. 337).

Portanto, quando Del Nero faz referência aos períodos da Idade Média, Renascença e Barroco, é em função de os próprios atores levarem suas roupas para as encenações, pois não havia preocupação em reconstituir figurinos relacionados a uma época . Dentro dessa realidade, o ator recebido em uma trupe, no século XVII, fornecia seu próprio guarda-roupa, fazendo assim a demonstração de seus gostos e de suas condições (BORDET, 2014, p. 5).

Anteriormente a esse período, nos primórdios do teatro ocidental na Grécia, o público participava ativamente do ritual teatral. Sendo assim, quando os ritos dionisíacos se desenvolveram e resultaram na tragédia e na comédia (BERTHOLD, 1968, p. 103), as roupas usadas16 eram simples, sendo as ombreiras e coturnos, citados por Del Nero, uma maneira de “exaltar a figura do ator” em relação ao enorme espaço cênico. A identificação do personagem era feita basicamente pelo uso de máscaras e cabelos postiços, com formas e cores características.

A roupa social (que, a partir do Renascimento, será tratada como moda) e os figurinos, ou o que se usa em cena, encontram-se e desencontram-se ao longo dos séculos, em função da adequação do figurino ao contexto e à época em que se desenvolve a encenação teatral.

16 A roupa, antes de pertencer ao que ficou denominado como “sistema da Moda”, sempre foi um diferenciador das camadas sociais nas grandes civilizações, do Egito a Bizâncio, sendo os aspectos vestimentares durante a antiguidade quase imutáveis, permanecendo os mesmos por longos períodos, por vezes séculos. Portanto, esse tipo de roupa que é denominada indumentária, através da história linear da moda, pertenceu a um período anterior à época moderna, ficando relacionada a determinada época ou povo. Ou seja, indumentária é a roupa (e toda a sua aparência) característica de um período histórico ou de uma representação étnica, de uma cultura ou certa tradição regional. Nesta pesquisa, vamos usar o termo “roupa”, uma tradução mais atual dos termos “dress” (inglês) ou “costume” (francês ). Nos procedimentos museológicos de catalogação INDUMENTÁRIA é uma das categorias ( tipologia) de objetos e coisas, assim como existem outras tipologias como armaria, mobiliário, pintura, etc.

O termo “moda” surgiu entre o final da Idade Média e o princípio da Idade Moderna, segundo alguns autores (LIPOVETSKY, 1989; LAVER, 1989; REMAURY, 1997), devido a certas circunstâncias e com algumas características peculiares, tais como: designar, de fato, um diferenciador social, um diferenciador de sexo (uma vez que homens e mulheres vestiam-se com aparências muito semelhantes até então), expressar um fator resultante da busca da individualidade e, principalmente, assinalar o caráter de sazonalidade das ideias em vigência, ou seja, indicar que elas tinham um certo período de duração para as ideias em vigência.(BRAGA, 2005, p. 35).

A necessidade de novidade e de mudança nas aparências que ocorreu a partir desse período fez com que as roupas usadas pela aristocracia europeia fossem uma referência mundial para as futuras cópias, apesar dos Éditos Suntuários17.

Em seu livro sobre a cultura das aparências nos séculos XVII e XVIII18, Daniel Roche relata o modo de se vestir da sociedade francesa do Antigo Regime, período em que esteve no auge o costume de cour, usado como figurino, na vida social e nos teatros:

Em contrapartida, os profissionais e os exegetas da moda exaltavam o desejo dos privilegiados, verdadeiros ou falsos, de se distinguirem dos simples mortais. As roupas se transformaram em armas de batalha das aparências. Elas eram usadas para erguer uma barreira, para eliminar a pressão dos imitadores e seguidores, os quais era preciso manter a distância, e que estavam sempre atrás, de algum detalhe na escolha de uma cor, no modo de dar nó numa fita ou numa gravata. Num mundo pautado pelas convenções da moda, inúmeros sinais ajudavam cada um a encontrar o próprio caminho (2007, p. 22).

17 Os Éditos Suntuários foram as leis criadas para restringir o uso de tecidos, aviamentos e trajes a algumas camadas sociais, vigorando até a Revolução Francesa.

18 É curioso perceber que o termo vêtement, do título original em francês La culture dês apparences:

une histoire du vêtement (XVII-XVIII siècle), foi traduzido por “indumentária”. Na nossa avaliação, a

palavra mais adequada seria “vestimentas” ou “vestuário”. Em alguns estudos, a palavra “indumentária” pode até ser usada como sinônimo de traje ou figurino, mas, em um estudo tão específico da roupa, o termo pode levar a uma confusão de conceitos.

Os trajes de cena deveriam ter, nessa época, uma aparência luxuosa, pois os espetáculos eram destinados às cortes; portanto, as referências eram os trajes sociais usados pelos nobres19.

19 Devemos abrir aqui um parêntese para abordarmos os figurinos do teatro Nô, criados desde o século XIV, e a importância de sua conservação no Japão. Sendo esse tipo de espetáculo ligado às famílias aristocráticas e guerreiras do Japão, adotando a estética refinada de seus “clãs”, os figurinos do Nô sempre representaram esse esplendor até o final do século XIX, quando tiveram sua autonomia artística. Como nos relata Claude Fauque: “a expressão japonesa ‘esplêndido como um costume Nô’, é uma homenagem à excelência dos tecidos, à qualidade das sedas, dos fios de ouro e das tinturas, criando refinados motivos. A importância histórica e as referências necessárias para a compreensão dos códigos existentes estão em um museu inteiramente dedicado aos figurinos e acessórios do Teatro Nô em Kyoto, no Yamaguchi Noh Costume Research Center” (FAUQUE, 2011, p. 12, tradução nossa).

Figura 1.

Roupa do século XVIII, em veludo e seda, bordado de paetês e fios de ouro.Esse tipo de vestimenta passou da vida social a cena. Faz parte dos figurinos de “repertório” da Comédie-Française. Serviu e serve ainda para representações de peças de

Marivaux, Beaumarchais, Mussef... Coleção Comédie-

Quando Jean-Baptiste Poquelin fundou a companhia L’ Ilustre Théâtre (O Teatro Ilustre) em 1643, juntamente com a atriz Madeleine Béjart20, assumindo o

nome artístico de Molière21, o artista recebeu do Duque de Guise a doação de parte de seu guarda-roupa. Esse foi um presente inestimável, que também foi uma bênção em tempos de escassez, despertando, às vezes, escárnio de seus colegas menos afortunados (BORDET, 2014, p. 5).

Os atores que possuíam seus guarda-roupas pessoais se deslocavam de um teatro a outro com sua mala de vestimentas. Os figurinos, muitas vezes, não tinham nenhuma relação com o enredo. O mais significativo era o luxo que eles traziam em sua confecção, realizada com tecidos refinados, bordados, laços, fitas e botões.

Sobre esse período, Claude Fauque, nos traz um panorama do quanto os trajes luxuosos e pesados dificultavam o desempenho dos atores:

20 Molière, Béjart e Beys eram considerados, na época, os principais comediantes de Paris.

21 Molière e sua trupe tornaram-se uma companhia de atores oficiais, recebendo primeiramente o palco do Petit Bourbon e, mais tarde , em 1661, o do Palais Royal, do então Rei Luís XIV.

Figura 2

Vestimentas masculinas francesas do século XVIII, composta por três peças.

Casaco, colete e calça curta até o joelho, onde ela é ajustada (la culotte).

As peças fazem parte do acervo do Musée de la Mode et du Textile, Paris.

O traje de cena francês, do Grande Século, foi o mesmo para a tragédia e a alta comédia: roupas da corte, perucas longas, penteados com plumas, luvas brancas, calças curtas, meias de cetim e saltos vermelhos. As couraças trágicas foram substituídas por espartilhos com laços e echarpes nos ombros. As heroínas portavam enormes saias que deixavam pesado seu andar, atrapalhando muito sua interpretação em cena (FAUQUE, 2011, p. 34, tradução nossa).

O traje de cena começou um lento processo de mudança, visando distanciar- se da roupa social, a partir do Iluminismo. Com seus novos valores, que tendiam para a reflexão e o sentimentalismo,quando o teatro assumiria uma nova função. Nesse período, a Comédie-Française já havia introduzido uma reforma cujos inícios haviam causado um grande choque: a renúncia ao absurdo lastro do figurino barroco.

Algumas iniciativas individuais começaram a ser feitas pelas próprias atrizes a partir dessa época. Pouco a pouco as bailarinas também foram abandonando as máscaras em cena, que, até esse período, eram obrigatórias.

Houve quem sentisse “como uma impertinência que a atriz Clairon, no papel de Idamé, em 1755, se atrevesse a aparecer em uma indumentária em estilo chinês, sem anquinhas” (BERTHOLD, 2001, p. 387). Com esse posicionamento, Mlle Clairon foi a primeira a ousar alterar o robe à la française, ao retirar os volumes de sua saia, tentando dar ao seu “figurino-fantasia” um estilo chinês, com um pouco mais de coerência em relação ao seu personagem para a encenação de L´Orphelin de la Chine, de Voltaire.

Figura 3.

Atriz Mlle. Clarion, nesta gravura feita pelo desenhista da corte Sarrazin,que manteve os volumes da saia, pois seu ato foi

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