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2.4 A Revolução Cultural

2.5.2 Os limites impostos às massas

O regime chinês foi marcado por ser consideravelmente repressivo e as massas não usufruíram das liberdades mais elementares(expressão, reunião, associação), que, quando exercidas, o eram apenas a nível local275. Por mais que Mao Tsé-tung declarasse sua preocu- pação com esse problema, a realidade era de repressão física e ideológica, de maneira a garan- tir a “uniformização mais absoluta de acordo com as pautas impostas pela classe dominan- te”276, ainda que esta se assumisse como “revolucionária”.

Sob o discurso de limitar o poder da burguesia – que em “1949 era quase inexistente, e não tinha atividade política / econômica, apenas tinha posses”, sendo que a maioria das em- presas já tinham sido estatizadas” – nega-se o poder àqueles que possuem “ideias burguesas” e são “reacionários”, “ou seja, àquelas pessoas que são conceituadas como tais por quem de- tém o poder para fazê-lo”. Tratava-se de um poder monopolizado pelo Estado, em detrimento dos trabalhadores277.

Todos os avanços com relação à crítica de massas tinham como limite a resistência defensiva da própria ordem posta marcada pela reprodução da dominação política dirigida por uma nova burguesia alojada no poder do Estado. Por exemplo, “quando alguns setores colo- cavam com maior ou menor fortuna a necessidade de uma autêntica revolução, o poder quali- fica tal pretensão de „esquerdista‟”278. Assim, “o núcleo dirigente da revolução cultural adota posições muito avançadas com respeito às vigentes anteriormente, mas puxa o freio quando essas posições evoluem no sentido de reivindicar uma verdadeira revolução”279.

Não obstante a defesa da necessidade de muitos movimentos como os da Revolução Cultural, de campanhas para retificar as posições e avançar no socialismo, ao longo da revo- lução chinesa a “tensão revolucionária seguirá um curso descendente”, tanto por parte da bu- rocracia partidária, receosa de empreender outras “aventuras” como essas e desejosa de “res- tabelecer a ordem”, quanto por parte das massas frustradas280.

274 Ibidem, p. 146-147. 275 Ibidem, p. 149. 276 Ibidem, p. 150.

277 Ibidem, p. 150 – tradução nossa. 278 Ibidem, p. 132.

279 Ibidem, p. 133. 280 Ibidem, p. 133.

84 2.5.3 O papel do Partido e do Estado

Silvia Calamandrei afirma que:

A relação partido-massas que se configura na Revolução cultural constitui indubita- velmente um passo adiante em relação à experiência bolchevique e tem seus funda- mentos no caráter específico do processo revolucionário na China: 1) uma guerra popular de longa duração na qual os quadros de partido se transformam em uma só- lida experiência de enraizamento nas massas e, ao mesmo tempo, de organização das mesmas, em especial dos agricultores; 2) a existência de uma difusa rede orga- nizativa do proletariado rural e dos agricultores pobres, os quais conduzem em pri- meira pessoa a luta de classe no campo, seja quanto à reforma agrária, ao movimen- to cooperativo ou no que diz respeito ao avanço das comunas; 3) a presença de um exército popular no qual é combatida a profissionalização e a especialização, salva- guardando nele o caráter de “povo em armas” bem como os níveis de consciência política adquiridos no curso da guerra revolucionária281.

Mas, se “O partido, enquanto consciência geral do proletariado,é o momento dirigen- te do estado de ditadura proletária, mas não deve confundir-se com os próprios organismos estatais, perdendo a sua conotação de classe, nem se substituir às massas lá onde seja possível operar momentos de gestão direta”282, pôde-se verificar, não obstante, que na Revolução Cul- tural o PCCh adotou uma posição apontando em sentido diverso.

Exemplo bastante claro sobre o papel do Partido frente aos possíveis avanços da re- volução cultural encontra-se na sua posição – incluindo a de Mao – frente às iniciativas para levar a diante órgãos de poder similares aos da Comuna de Paris. Tais organismos se desen- volveram quando e onde o partido estava enfraquecido, e eram tratados com “cautela e des- confiança, senão com hostilidade”, ou eram simplesmente interrompidos e reprimidos pelos órgãos dirigentes283. Assim, são refreados por uma concepção de poder entre os dirigentes que buscam “preservar o Partido, enquanto tal como órgão dirigente da revolução”284, impedindo “a generalização de tais organismos” pois poderiam “colocar em perigo o papel do Parti- do”285. Bettelheim também afirma que a preservação do partido é o principal problema apon- tado por Mao para justificar o abandono da forma comuna286.

Bem nos demonstra Márcio Naves que:

(...) não houve uma real transferência de poder, que permaneceu sendo exercido pe-

lo Partido, isto é, por uma burguesia de Estado, e não pelas massas populares. Ora, a experiência da Revolução Cultural – assim como a da revolução soviética – mostra que, se o partido é um instrumento capaz de organizar e dirigir um movimento revo- lucionário, desde que certas condições, geralmente excepcionais, ocorram, ele não é

em absoluto capaz de organizar e dirigir o processo de transformação socialista após a tomada do poder. Ao contrário, o Partido é um dos principais obstáculos à

281CALAMANDREI, S.Per un‟analisi del contributo del PCC alla teoria della dittatura del proletariato. op. cit., p. 145 – tradução nossa.

282 Ibidem, p. 144.

283NAVES, M. Mao: o processo da revolução, op. cit., p. 105. 284 Ibidem, p. 105.

285RIO, E. op. cit., p. 142.

85 apropriação do poder pelas massas e à transformação efetiva das relações sociais.

De fato, é no Partido que a burguesia de Estado encontra o meio mais propício para organizar o seu domínio de classe287.

Assim, o Partido acaba excluindo a possibilidade de um exercício direto de poder pe- las massas, pois, ao se tornar gestor deixa de organizar e dirigir as forças revolucionárias para transformar as relações sociais de produção, mas submete-se à lógica do Estado e garante sua reprodução, perpetuando, com isso, as formas sociais de dominação capitalista.

Como nos ensina Lênin, o Estado proletário deveria acabar com as classes, e então definhar e “morrer”, porque deixaria de ser necessária sua existência, na medida em que não haveria mais classes a reprimir. Sua permanência se justifica apenas quanto ao período transi- tório em que ele se constitui como uma “força especial de repressão” da burguesia pelo prole- tariado. Assim, a ditadura do proletariado, ou seja, “o proletariado organizado como classe dominante", após constituir-se em classe dominante e derrubar poder político da burguesia, se organiza para acabar com as formas de exploração e constituir uma nova forma de poder e de

autogoverno dos trabalhadores. “Não basta a classe operária apoderar-se da máquina do Esta-

do para adaptá-la aos seus próprios fins”. Isso significa que “a destruição da máquina burocrá- tica e militar do Estado é a “condição prévia de qualquer revolução verdadeiramente popu- lar””. Trata-se, segundo Lênin da “grande lição do marxismo a propósito do papel do proleta- riado revolucionário com relação ao Estado”288. Esta questão fundamental para a teoria revo- lucionária é rejeitada pelo PCCh.

Bettelheim complementa a análise sobre os porquês de a experiência de Shangai não tere sido levada adiante.As diferentes organizações revolucionárias tinham uma dificuldadede se unir - como já tratado no item anterior -, apresentando uma “tendência a opor-se frequente e violentamente, e a entregar-se a promessas exageradas”, produzindo a “confusão e a elimi- nação maciça de quadros honestos e devotados”. Além disso, como a “ala revolucionária” era minoria no Partido, isso imporia a necessidade de realizar alianças com setores “moderados” sob pena de colocar em risco a unidade do Partido. Setores mais antigos do Partido que luta- ram na revolução também eram hostis à iniciativa popular de destituição de quadros, levando- os a propor “designar alvos pessoais” para “estreitar a frente de ataque”. Com isso, se fortale- ce o papel do Exército de Libertação, que passa a ser aquele responsável por reconhecer os “verdadeiros” comitês revolucionários, legitimando-os a partir dessa instância acima das mas- sas, orientando-os de maneira a “impor sua – do Exército - hegemonia sobre o movimento de

287NAVES, M. Mao: o processo da revolução, op. cit., p. 106-107. 288LENIN, Vladmir. O Estado e a Revolução. op. cit., p. 58, 59 e 60.

86 massas”, limitando-o e empobrecendo-o289.