• Nenhum resultado encontrado

2 DOLO (EVENTUAL) E CULPA (CONSCIENTE) NO HOMICÍDIO PRATICADO SOB A INFLUÊNCIA DE ÁLCOOL NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR

2.4 Os limites e as possibilidades do direito penal na redução da violência de trânsito

Consoante bem trabalhado há alguns capítulos, o direito penal “é o segmento do ordenamento jurídico que detém a função de selecionar os comportamentos humanos mais graves e perniciosos a coletividade e descrevê-los como infrações penais” (CAPEZ, 2003, p. 1). Logo, sem dúvidas que exerce papel importante na redução da violência, não só em relação ao trânsito, mas na violência em sentido amplo. Ora, pois, nesse norte, se ocupa em destacar as condutas consideradas perigosas e prejudiciais do homem, de modo a responsabilizá-lo pelos seus atos.

Como já se viu, para cada fato descrito como típico, uma sanção à ele destinada. No entanto, é de se lembrar que uma das balizas do mundo do Direito Penal é o princípio da intervenção mínima. Segundo este princípio:

Por ser um violento meio de controle social, o uso do Direito Penal deve ser reservado apenas para as situações onde ele seja imprescindível. Vale dizer: sempre que puder ser evitado seu uso, deve-se então prescindir do Direito Penal. Deste modo, se reconhece que apenas uma parcela dos interesses sociais vai ser merecedora da tutela penal. O princípio da intervenção mínima relaciona-se, assim, com a idéia de dignidade penal do bem

jurídico. Portanto, o Direito Penal só deve ser utilizado quando exatamente necessário, devendo ser subsidiário e fragmentário (AGUIAR, 2015, s/p).

Além disso, conforme também já trabalhado, por muitas vezes a punição asseverada apenas cumpre um papel simbólico, ou seja, apenas resolve aparentemente determinado problema, sendo que essa efetividade não se perpetua no tempo. Apenas a título de retomada, consoante se verificou há alguns tópicos, quando do endurecimento das penas para os motoristas que conduziam veículos automotores embriagados, nos primeiros momentos houveram resultados positivos. Entretanto, em um curto lapso temporal, novamente os índices de acidentes voltaram a crescer.

No campo do direito penal simbólico, os delitos de perigo abstrato representam um dos instrumentos legislativos mais típicos e expressivos da chamada sociedade de risco. As legislações modernas assistem a um aumento da quantidade dos delitos de perigo, sobretudo os de modalidade abstrata. Conforme leciona Mendonza Buergo (apud MACHADO, 2017, p. 8):

A expressão “delito de perigo abstrato” advém do alemão “abstrakte Gerfährdungsdelikte” que, segundo Mendoza Buergo (2001a, p.33), contém uma contradição interna. A tradução literal seria “colocação em perigo abstrata”, logo se há de fato uma colocação em perigo, esta não poderia se dar de forma abstrata e sim concreta, haja vista que requer a entrada do objeto da ação no raio de eficácia da “fonte do perigo”. No entanto, essa nomenclatura já está consolidada na doutrina internacional e nacional.

Nesse contexto, há quem entenda que o Direito Penal é destinado, a bem da verdade, à sociedade não transgressora das leis, ou seja, aos chamados cidadãos de bem, pois vem como uma resposta imediata supostamente dada aos criminosos. Conforme Alessandro Baratta (apud HAUSER, 2015, p. 22):

Observa-se um novo interesse com relação às funções simbólicas sobre as quais eram baseadas as clássicas teorias declaratórias da pena, a partir de Émile Durkheim e que agora são outra vez propostas no âmbito da teoria da prevenção geral positiva ou da prevenção-integração, principalmente na Alemanha. Segundo esta teoria, a função da pena não se dirige nem aos infratores atuais nem aos potenciais. Ela se dirige sobretudo aos cidadãos fiéis a lei, aos que supostamente manifestam uma tendência “espontânea” a

respeitá-la. Em relação a estes, a previsão de aplicação de penas não tem a função de prevenir delitos (...), senão a de reforçar a validade das normas (...): isto significa também restabelecer a “confiança institucional” no ordenamento, quebrada pela perspectiva do desvio (....). A teoria da prevenção geral positiva é, portanto, uma teoria da função simbólica do direito penal, no sentido de que as funções indicadas se relacionam diretamente com a expressão dos valores assumidos pelo ordenamento e com a afirmação da validade das normas, confirmação esta simbólica e não empírica, por ser independente da quantidade de infrações e de sua redução.

Além desse entendimento, também é importante colacionar a construção de ideias acerca do direito penal simbólico feita por Ester Eliana Hauser (2015), a qual compartilha de ideia de que este tem seus prós e contras. Um direito penal simbólico pode atuar no reforço aos valores protegidos pelo ordenamento e encaminhar à sociedade importante mensagens de reafirmação destes valores. Mas também pode, em contrapartida, cumprir com uma função negativa, especialmente nas situações em que a resposta se situe exclusivamente no campo penal e não se construam outras alternativas para resolver as questões que estão na raiz dos delitos. Nestes casos, amplia-se o repressivismo, subtraem-se garantias, sem a produção de reais efeitos no sentido do controle da violência e da proteção das vidas humanas.

Surge, a partir daí, uma espécie de simbiose entre funções instrumentais e simbólicas que na prática mostra-se complexa e contraditória. Em nível teórico, a perspectiva simbólica da pena não a concebe como um sistema de produção de segurança real de bens jurídicos, mas somente como instrumento de resposta simbólica as exigências de pena, de segurança e de estabilidade social e normativa por parte do público e da política. (HAUSER, 2015, p. 12) O que se verifica, a bem da verdade, é que há uma falácia de que o “ser humano só funciona quando atinge o bolso”, como popularmente ouve-se dizer. A verdade é que, embora existam penalidades severas, a realizada da violência somente será revertida (definitivamente) por meio da educação.

Na opinião de Jorge Amaral dos Santos (2017, p. 01):

Nessa questão – acidentalidade de trânsito envolvendo alcoolemia - os esforços dispendidos pela Nação (enquanto Estado e sociedade) não têm sido suficientes para modificar esse cenário. Nesse sentido, o presente trabalho sugere a formatação de políticas públicas

voltadas para uma participação mais ativa do motorista - enquanto cidadão - como forma de mudança dessa realidade.

Logo, para o autor o meio mais adequado para tratar da violência viária é através de políticas públicas de prevenção à violência, especialmente as educativas, uma vez que o punitivismo estatal puro e simples já demonstrou não surtir efeitos a longo prazo.

Por conta disso, Carlos Henrique Ribeiro de Carvalho (2016) formou sua opinião nesse sentido. Isso, pois, usando de exemplo normas mais severas como a chamada Lei Seca, comparou dados, verificando que, de imediato, houve uma redução de mortes no trânsito, no entanto, com o decurso do tempo, esses índices tornam a crescer. Assim narrou Carvalho (2016, p. 10):

(...) após a implementação de legislação de trânsito mais rígida, como o novo CTB em 1998 (Lei n 9.503, de 23 de setembro de 19973 ) e a nova lei de consumo zero de álcool de 2008, chamada popularmente de Lei Seca (Lei no 11.705, de 19 de junho de 20084 ), há uma resposta imediata de queda nas ocorrências de mortes, mas posteriormente há a volta às tendências anteriores de crescimento. Pode-se inferir que há certo relaxamento por parte dos gestores e da própria sociedade algum tempo após a mobilização inicial criada com a introdução da nova legislação, com o aumento das campanhas e da fiscalização.

E o entendimento acerca dos limites e possibilidades do direito penal giram em torno, primeiramente, do que se pretende com essa área de direito. Seria a punição como resposta imediata à sociedade, no intuito de manter um falso controle social, ou seria, cuidar do problema desde as suas raízes? Por óbvio que deve ser a última opção a acertada. O direito penal cumpre papel extremamente importante, no entanto, há de se ter cuidado com o punir por punir, pois dessa maneira, a violência se perdurará no tempo.

O que pode ser feito, portanto, é o investimento na educação no trânsito desde o início da vida do indivíduo em sociedade. Isso, porque, como já é de conhecimento, infelizmente a violência está intrínseca nas relações interpessoais. O que se pode, para tentar diminuir esses índices, é investir em educação básica de

trânsito, utilizando-se de meios de prevenção que se mostra, sem dúvidas, mais eficaz em relação a punição.

Em se tratando, ainda, dos limites e possibilidades do Direito Penal, há de se frisar que é preciso ter cuidado com o seu uso excessivo, o que pode conduzir a uma lógica do inimigo, com supressão de garantias mínimas e desrespeito à legalidade instituída. O Direito Penal do Inimigo é reflexo de um direito penal meramente simbólico, que pretende apenas resgatar a confiança e a estabilidade do sistema normativo sem compromisso efetivo com a proteção de bens jurídicos, também conduzindo, em alguns casos, a flexibilização de garantias clássicas do direito penal, permitindo intervenções desmedidas ou arbitrárias, tendo por objetivo exclusivo de atender os anseios da opinião pública negando à pessoas envolvidas em situações delitivas as garantias mínimas próprias ao direito penal. Verifica-se que os movimentos de política-criminal repressivistas não atendem ao princípio da intervenção mínima. Conforme lecionado no Livro Texto Política Criminal (HAUSER, 2016, p. 42):

Para estes movimentos, as proibições penais e as penas surgem não como última, mas como prima ratio (ou como primeiro instrumento a ser utilizado em favor da proteção de bens jurídicos ou de manutenção da ordem social). Deste modo, defendem um modelo de Política criminal que tem por base um sistema penal máximo (mais proibições, maior rigor punitivo, redução de garantias penais e processuais).

Nesse norte, embora seja dada a devia importância ao Direito Penal, faz-se mister lembrar a importância de um direito penal mínimo, ao qual toda sociedade deve se socorrer em última instância. Assim, cabe a todos a responsabilidade de intentar esforços para possibilitar a inserção da educação como meio de redução definitiva da violência, seja ela viária, ou de qualquer outra forma.

CONCLUSÃO

O presente trabalhou perseguiu elucidar a possibilidade ou não do reconhecimento do dolo eventual nos crimes de homicídios de trânsito em casos de embriaguez ao volante, fazendo, para tanto, cotejos a partir da promulgação da Lei 13.5467/2017, cujo teor alterou o Código de Trânsito Brasileiro.

Para que fosse possível chegar a atual conclusão, inicialmente foi feita uma abordagem acerca do tratamento jurídico penal nos casos de homicídio de trânsito, bem como fez-se um levantamento de dados acerca da violência viária, a fim de demonstrar a seriedade do tema, uma vez que, conforme analisado, os acidentes de trânsito estão entre as causas que mais matam no país.

Para isso, traçou-se um caminho no intuito de fornecer subsídios para compreensão da temática, partindo de conceituações tanto acerca da violência, sobre trânsito e no que tange ao direito penal. Ao final do primeiro capítulo, é possível se deparar com grande conteúdo informativo, essencialmente no que diz respeito aos índices de violência no trânsito, lesões e mortes. Ainda, a título de informação e criando um cenário para melhor elucidar o tema, o primeiro capítulo conta com um importante e completo apanhado histórico acerca do Código de Trânsito Brasileiro.

Foram feitas breves explanações acerca do modo como esse Código está formulado, informando que não conta somente com questões administrativas, mas também é composto por uma parte penal, na qual são tipificados crimes de trânsito. Ademais, fez-se a importante constatação de que o atual Código de Trânsito Brasileiro é reconhecido como um Código de Paz, fazendo jus a Constituição Cidadã, que é Magna Carta de nosso ordenamento jurídico. Findando o primeiro capítulo, foram feitas pontuações acerca das mudanças trazidas pela Lei 13.546/2017, focando essencialmente nas implicações trazidas diante da criação do “novo homicídio de trânsito”.

Num outro momento, por meio do segundo capítulo, direcionou-se o estudo para a área do direito penal, fazendo, ainda, importantes conceituações essencialmente no que tange aos institutos de dolo e culpa dentro da Teoria do Delito, trazendo, ainda, concepções acerca do direito penal e seu objeto.

Ainda no referido capítulo, foi analisado o entendimento de autores renomados no que tange ao dolo eventual e culpa consciente. Isso se fez, visando a possibilitar o posterior entendimento da incidência, ou não, do dolo eventual nos crimes de homicídio de trânsito cometidos por condutores embriagados.

Finalmente, chegou-se aos ponto principal de toda a pesquisa, que era imergir no estudo e análise da incidência do dolo eventual nos crimes de homicídio de trânsito em casos de embriaguez ao volante, trazendo o cenário pré e pós promulgação da Lei 13.546/2017.

Para isso, diversos entendimentos foram trazidos, sendo os de quem defende a facilidade no reconhecimento do dolo eventual e, posteriormente, trazendo a lume os entendimentos mais recentes dos Tribunais acerca do tema.

O que se pôde compreender, é que, embora a referida Lei tenha criado uma figura “qualificada” do homicídio culposo de transito, a qual tem a embriaguez do condutor como uma causa de aumento de pena, ela não excluiu por completo a possibilidade do reconhecimento do dolo eventual. O que se tem, portanto, atualmente, são maiores critérios para possibilitar a incidência do Código Penal nesses casos. Ou seja, atualmente, a embriaguez por si só não tem o condão de demonstrar que o agente tenha ao menos assumido o risco de produzir o evento danoso. Para que isso seja reconhecido, é preciso que se tenha, no caso em concreto, uma soma de elementos à situação de embriaguez do condutor do veículo.

Por fim, visando atuar de forma eficaz na diminuição da violência viária, pôde- se entender que é possível subsidiar-se do direito penal, no entanto, é imprescindível manter a obediência ao princípio da intervenção mínima, utilizando-o como ultima racio. Assim, outro meio, senão o mais eficaz, é o investimento na educação no trânsito desde o início da vida do indivíduo em sociedade.

REFERÊNCIAS

AGUIAR, Leonardo. Princípio da intervenção mínima. – Jus Brasil - . Disponível em < https://leonardoaaaguiar.jusbrasil.com.br/artigos/333120482/principio-da- intervencao-minima > Acesso em 18 de outubro 2019.

ASSUNÇÃO, Igor: Não! Não houve alteração da pena do crime de embriaguez

ao volante. 2018. Migalhas. Disponível em: <

https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI271654,21048-

Nao+Nao+houve+alteracao+na+pena+do+crime+de+embriaguez+ao+volante> Acesso em 20. set 2019

BARROS, Francisco Dirceu. O “novo” homicídio culposo na direção de veículo automotor e existência versus inexistência do dolo eventual. Gen Jurídico, 2018. Disponível em: <http://genjuridico.com.br/2018/02/05/novo-homicidio-culposo- direcao-veiculo-automotor-pt-1>/. Acesso em 20 abr. 2019.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 17ª ed. rev., ampl. e atual. de acordo com a Lei n. 12.550, de 2011. São Paulo: Saraiva, 2012. CAPEZ, FERNANDO. Curso de direito penal: parte geral: volume 1. São Paulo: Saraiva, 2003.

CARVALHO, Carlos Henrique Ribeiro. Desafios da mobilidade urbana. Brasília: Ipea, maio 2016. (Texto para Discussão, n. 2198). Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=2822 3&catid=390&Itemid=406>. Acesso em 10. Out. 2019.

CASTRO, Raimundo Roberto. As mudanças no Código de Trânsito Brasileiro com o advento da Lei 13.546. Consultor Jurídico, 2018. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-mai-16/raimundo-castro-mudancas-ctb-advento-lei- 1354>. Acesso em 12 mar. 2019

FRANZ, Cristine Maria. A história do trânsito e sua evolução,2012. Disponível em: <http://www.transitobr.com.br/downloads/a_historia_do_transito_e_sua_evolucao.pdf .> Acesso em: 20 mai. 2019.

GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito penal: parte geral. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

GONÇALVES, Adriano Augusto Placidino: Tipicidade, ilicitude e culpabilidade. Maxi Educa. Disponível em: < https://blog.maxieduca.com.br/tipicidade-ilicitude- culpabilidade/>. Acesso em: 10 nov. 2019.

HAUSER, Ester Eliana: Política Criminal.Coleção Educação a Distância – Série Livro Texto. Editora Unijuí. 2016.

HAUSER, Ester Eliana: Violência contra a mulher, direito penal simbólico e a nova lei do feminicídio. 2015.

LEITÃO JÚNIOR, Joaquim Leitão Júnior Leitão. As repercussões jurídicas práticas trazidas pela Lei nº 13.546/17 – que alterou o Código de Trânsito Brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5304, 8 jan. 2018. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/63212>. Acesso em: 29 abr. 2019.

MARTINELLI, João Paulo. Novo capítulo sobre a discussão entre culpa consciente e dolo eventual. 2018. Conjur. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-jan-25/opiniao-capitulo-culpa-consciente-dolo- eventual> Acesso em 20.out.2019.

MODENA, Maura Regina. Conceitos e formas de violência. 2016. Disponível em: https://www.ucs.br/site/midia/arquivos/ebook-conceitos-formas_2.pdf. Acesso em 14. mar.2019.

OMS. Organização Mundial da Saúde. Relatório mundial de violência e saúde. Genebra: OMS, 2002.

PINHEIRO, Rafael Magalhães Abrantes; MACHADO, Fábio Guedes de Paula. sociedade de risco e crimes de perigo abstrato. Uberlândia: Horizonte Científico, 2017. Disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.php/ horizontecientifico/article/ view/4387/6672. Acesso em: 28. Set.2019.

Documentos relacionados