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CAPÍTULO II Ruth Rocha: olhares sobre a vida e a obra da autora

2.3 Os livros de Ruth Rocha selecionados para o estudo

Como expusemos na seção: metodologia e estratégias de ação, para a realização da pesquisa foram selecionados pelos colaboradores, por meio de votação, quatro obras de Ruth Rocha indicadas pelo PNBE nos anos de 1999, 2001, 2005, 2008 e 2010, sendo que uma das obras foi indicada e distribuída durante dois anos. Essa seleção aconteceu durante o primeiro encontro para a definição de datas para as nossas Oficinas75, realizadas professores de Biblioteca, de Literatura, algumas regentes dos anos iniciais do ensino fundamental, no CEMEPE, em 2012.

Os livros selecionados para nossa pesquisa foram:

1) Livro: As coisas que a gente fala76

Imagem 4- Capa do livro “As coisas que a gente fala”.

Fonte : A autora

75 Os dados sobre as Oficinas serão registrados no próximo capítulo.

76 Texto completo está disponível: http://www2.uol.com.br/ruthrocha/historias_14.htm. Acesso em:

O tema do livro atrai pela linguagem poética e pelas alegorias simples a que a autora recorre. Nessa obra, Ruth Rocha aproveita a história de uma menina, Gabriela, que quebrou um vaso de sua mãe e afirmou ter sido Filisteu, seu vizinho, o responsável pelo fato, para alertar sobre a necessidade de se tomar cuidado com o que se diz. Na história, depois que Gabriela acusou Filisteu, os moradores da cidade onde viviam ficaram indignados com a proeza do menino. Quando o pai de Filisteu ficou sabendo do acontecido, colocou-o de castigo: não tinha mais TV, coca-cola, futebol etc. Chateado com as proibições, o menino procurou Gabriela, que repensou suas atitudes e tentou resolver a situação. Depois de muito tentar, a menina conseguiu recolher algumas mentiras que estavam soltas no ar. Com isso, a autora mostra que, depois de ditas, as palavras ganham vida própria, como escreveu em Rocha (1998, p. 6):

Por isso, quando falamos, temos de tomar cuidado. Que as coisas que a gente fala, vão voando, vão voando, e ficam por todo lado. E até mesmo modificam o que era nosso recado.

O enredo faz-nos lembrar da facilidade de as pessoas serem mal interpretada. O texto, em forma de poesia, deixa uma mensagem sobre os danos que a mentira (mesmo que inocente) pode causar. A importância da verdade e o poder de nossas palavras são descritos no texto.

Na matéria “A mentira é o tema do último livro da excelente Ruth Rocha”, publicada no Jornal Folha de São Paulo de 08 de março de 1982, a escritora Tatiana Belinky posiciona-se sobre o livro “As coisas que a gente fala”:

Para “As coisas que a gente fala”, de Ruth Rocha (Editora Rocco), eu poria como epígrafe o velho provérbio russo que ele me faz lembrar: “uma palavra é um pardal, se voar não se pega mais”. O tema deste delicioso livro é justamente este: o peso e a importância da palavra, a palavra que a gente diz sem pensar (ou por malícia), e que sai voando, se espalhando e aprontando... (BELINKY, 1982, p.27, grifo da autora).

Destacamos, a partir dessa história, que a criança constrói sua linguagem por meio das interações que vivencia em seu meio social. É na interação com os outros que

os significados das palavras vão se construindo: quanto mais ricas as possibilidades de interação que a criança tiver, maiores suas possibilidades de construir conhecimentos sobre o mundo que a cerca. Embora sejam processos distintos, pensamento e linguagem se relacionam. É a partir do momento em que pensamento e linguagem convergem que a criança descobre a função simbólica das palavras.

As instituições escolares têm um importante poder na construção da linguagem. Ou seja, na construção da subjetividade pela criança. É, portanto, fundamental que essas instituições sejam espaços que beneficiem as trocas interpessoais e as múltiplas linguagens; do contrário acabarão sendo espaços de silêncio.

2) Livro: Atrás da porta

Imagem 5- Capa do livro “Atrás da porta”.

Fonte: A autora

A obra “Atrás da porta”, descreve como a morte da avó de Carlinhos, pelas lembranças dele em relação a ela, torna-se inspiradora das suas aventuras. Movido pelas lembranças e pela saudade, Carlinhos revisita o quarto da avó, mexendo em suas coisas, nos seus objetos antigos. O contato de Carlinhos com os objetos da avó é uma passagem importante da obra, pois representa uma proximidade com esta por intermédio das coisas que ela deixou. Esses objetos representam um elo familiar com o passado e cada objeto configura uma experiência vivida, uma aventura afetiva do seu possuidor. Os objetos, por ela denominados "objetos biográficos", são insubstituíveis, pois representam o seu possuidor. É o desejo de Carlinhos ao eternizar os objetos da avó. Conforme Bosi (2003, p. 26), “Só o objeto biográfico é insubstituível: as coisas que envelhecem conosco nos dão a pacífica sensação de continuidade”. Ali, no quarto de D. Carlotinha, Carlinhos descobriu uma porta misteriosa que dava para uma enorme biblioteca.

Esse encontro do passado com o presente de modo atemporal retrata os conhecimentos, costumes e cultura que uma geração deixa de herança para a outra e que tem, como alicerce para essa transmissão, a família. Assim, a avó é retratada nessa obra como detentora da sabedoria e introdutora do protagonista ao mundo da leitura, do conhecimento e da imaginação. A própria biblioteca descoberta por Carlinhos representa uma herança, não em forma material, mas simbólica, cultural. "Para Carlinhos, aquela era uma coisa mágica, era como se fosse um sonho, um espaço desconhecido" (ROCHA, 1997, p. 10). E ainda: "Ele achava que aquela sala era um milagre que a sua avó tinha preparado para ele" (ROCHA, 1997, p. 14). Aos poucos, as crianças vão tendo acesso à biblioteca, sempre à noite e à luz de velas, até os pais de Carlinhos descobrirem o que se passava e obrigarem a escola, à qual a biblioteca pertencia, a reabri-la para uso das crianças. Como declarou Bosi (2003, p. 69) “uma história de vida não é feita para ser arquivada ou guardada numa gaveta como coisa, mas existe para transformar a cidade onde ela floresce”.

A biblioteca, herança deixada por D. Carlotinha para a comunidade infantil, representou um avanço, pois as crianças passaram a ter a liberdade de ir à biblioteca escolher o livro que quisessem ler.

A obra mostra uma preocupação com o hábito da leitura, discute e critica a educação formal, o contexto em que se dá o conhecimento, contemplando o incentivo à leitura e à educação mais prazerosa, em que o educando se sinta aguçado em sua curiosidade e busque o conhecimento por meio dos livros. Desta forma, entendemos, como Zamboni e Guimarães (2010, p. 351):

O trabalho pedagógico com textos literários (nas aulas de História) pode oferecer-nos pistas, referências sobre o modo de ser, viver e agir das pessoas, os valores, os costumes, histórias de uma determinada época, de determinados grupos. Estas obras são fontes, evidências que nos auxiliam a desvendar e compreender a realidade, as mudanças menos perceptíveis, detalhes sobre lugares, ambientes, paisagens, culturas, modos de vestir-se, enfim, detalhes de uma época.

Acrescentamos que as obras de literatura infantil podem facilitar o processo de ensino e aprendizagem nas diferentes aulas, nas várias etapas do ensino fundamental. Consideramos que as práticas de leituras são sociais e, portanto, tendem a variar e a se diferenciar em contextos diversos, da mesma forma como o tipo de leitor necessário em diferentes momentos históricos e a participação da ação pedagógica na formação desses

leitores. Por meio da leitura, tornamo-nos pessoas mais críticas, indivíduos capazes de fazer uma leitura do mundo que nos cerca, de nosso tempo, de sua história contextualizada, mas, para formarmos leitores capazes de compreender e interpretar textos, é importante concretizarmos o incentivo da leitura desde os primeiros anos de escolaridade, para que sintam o desejo de ler, pois o livro carece ser valorizado como objeto de prazer e conhecimento.

3) Livro: Quem tem medo de quê?

Imagem 6 - Capa do livro “Quem tem medo de quê?”

Fonte: A autora

Na obra “Quem tem medo de quê?”, Ruth Rocha questiona os medos internos e latentes que moram dentro do inconsciente do ser humano.

O personagem, cujo nome não é identificado, dialoga com o leitor sobre seus medos: medo de escuro; de lagartixa; de injeção; e de vampiro. O livro narra vários casos de medo que trazemos desde a nossa infância, inclusive das histórias de lobisomem. Porém, percebemos a preocupação da autora em salientar que os medos são menores que os seres humanos: “Pelo que vemos, pessoal, ter medo não é vergonha. Todo mundo tem um medo, que a gente nem mesmo sonha” (ROCHA, 2003, p. 20).

Salientamos que cada cultura possui seus medos e ferramentas próprias para se defender deles e que é também na infância que os medos sofrem processo de intensificação pela sociedade. Como explica Bosi (2003, p.119), “confiamos nas instituições que nos socializam: eis a razão das nossas primeiras crenças e atitudes”. As famílias ou sociedade criam dispositivos de amedrontamento de suas crianças: lobisomem; bicho-papão; homem do saco; monstros; bruxas; boi-da-cara-preta; mulas sem cabeça; dentre outros. Esse elenco de personagens apavorantes faz parte da adaptação social de uma criança. Trata-se de dispositivos de segurança e de

doutrinamento. Eles auxiliam na inconsequência que vem do espírito infantil, que não consegue distinguir todos os perigos, pois o instinto do medo alerta o ser humano a não enfrentar o fogo, ou a água, mas, quanto aos medos sociais, são necessários outros conjuntos de símbolos para se defender.

Ressaltamos, ainda, que, por exemplo, a partir desta leitura experimentamos papéis, descobrimos possibilidades nunca antes pensadas, refletimos sobre determinadas situações coletivas e individuais e somos impulsionados a sonhar e recriar a vida. O livro é um objeto transformador, que torna possíveis ações impossíveis; que transporta o leitor para um mundo fictício, onde pode encontrar respostas para muitas de suas perguntas do mundo real.

Além disso, há o estabelecimento do vínculo que se constrói a partir do momento em que um adulto lê para uma criança. Cria-se aí um espaço de cumplicidade e troca afetiva, onde os dois estão juntos, compartilhando e sendo afetados, de diferentes maneiras, pela mesma história.

4) Livro: O trenzinho de Nicolau

Imagem 7- Capa do livro “O trenzinho de Nicolau”.

Fonte: A autora

Na obra “O trenzinho de Nicolau”, de Ruth Rocha, o personagem Nicolau, um homem que manobrava um trenzinho e via todas as pessoas passarem, toda a agitação do mundo, um dia, cansado, resolve se aposentar. A partir desse momento, passa a cultivar flores, leva uma vida típica de trabalhador aposentado, mas sente, com o passar do tempo, a angústia crescer. Ele descobre que seu trenzinho, já todo enferrujado, iria ser vendido e resolve comprá-lo: “Então Nicolau se resolveu: Comprou o trenzinho! E nunca mais ficou sozinho!” (ROCHA, 2009c, p. 24-25). A velha máquina passa a ser instrumento de brincadeira para as crianças que fazem companhia a Nicolau.

A velhice é o foco dessa obra. A relação de amizade, a saudade, o ficar sozinho, a importância dos amigos, das pessoas e o ficar velho são aspectos também destacados. Há uma ênfase na interação social, na autonomia, na responsabilidade e na curiosidade. Essa obra trabalha com conceitos, símbolos universais e situações problemas sobre os quais se pode refletir, discutindo temas como: a sensibilidade; a utilidade do idoso na sociedade; as ações para o prolongamento do tempo de vida; o direito de vivenciar uma nova etapa relativamente longa; o tempo de lazer em que se elaboram novos valores coletivos. É possível, também, a partir da obra, dialogar sobre os preconceitos e estereótipos negativos usualmente relacionados ao velho e ao envelhecimento.

Acreditamos que a literatura infantil é uma forte aliada do professor na formação do público leitor, na construção do gosto pela leitura e que os trabalhos com tal literatura poderão se tornar momentos de prazer e aprendizagem para os alunos, professores e pesquisadores, levando-os a estabelecer conexões afetivas com os livros. Nesses trabalhos, a leitura poderá, também, suscitar várias atividades de linguagem, possibilitando o crescimento dos sujeitos leitores. Como argumentam Zamboni e Guimarães (2010, p. 350),

As narrativas literárias endereçadas às crianças, como produtos culturais de um tempo histórico marcado pelo acelerado desenvolvimento tecnológico dos meios de informação, articuladas a outras produções visuais, textuais, às fontes orais, constituem ricas bases de significações das tramas das experiências humanas nos diversos tempos e espaços.

No entanto, pensar como o espaço escolar pode ser organizado para garantir a eficácia das práticas de leitura, fundamentais à formação da cidadania, é um desafio. Isso porque refletir sobre questões políticas, sociais, econômicas, elaborar opiniões, questionar, debater e participar de decisões demanda um sistema escolar que eduque o cidadão. Canivez (1991, p. 33) parte do princípio de que “a escola, de fato, institui a cidadania”. Considera ainda que a educação para a cidadania é a forma ideal de educação para a democracia. Ao discutir o sistema escolar, resume:

Em uma democracia, a escola deve educar cidadãos ativos. Não deve preocupar-se em ensinar aos indivíduos como defender seus interesses materiais, sociais e profissionais. Não deve também treiná-los para as lutas políticas, para a competição pelo poder, para as manobras partidárias. Seu papel, em outros termos, não é inicia-los à vida política. Essa iniciação, que passa pela participação em debates,

assembleias, campanhas de todo tipo, é incumbência dos partidos. A tarefa da escola também não é fornecer aos indivíduos todos os conhecimentos que permitem a elaboração de projetos políticos dignos de confiança. [...] Decerto não deve orientar as preferências partidárias dos cidadãos, mas deve dar-lhes a cultura e o gosto pela discussão, que lhes permitirão compreender os problemas, as políticas pretendidas e debater sobre isso. (CANIVEZ, 1991, p.156-157).

Essa participação e gosto pela discussão são primordiais para a formação da cidadania, pois esta implica uma luta dos seres humanos para se tornarem mais seres humanos. Luta por seus direitos civis, sociais e políticos.

Essa cidadania ativa deve fundamentar-se no princípio do diálogo. “O diálogo caracteriza a prática das humanidades, de todos esses conhecimentos (arte, literatura, história, filosofia etc) que tratam do homem, de sua maneira de viver, de pensar, de „ver as coisas” (CANIVEZ, 1991, p. 158). A relação entre educação e cidadania consiste no fato de que “a cidadania, e sobretudo o acesso à cidadania, depende então da adesão a uma certa maneira de viver, de pensar ou de crer” (CANIVEZ, 1991, p.33). Entendemos que o diálogo traz consigo o caráter problematizador, inerente à ação humana, e consequentemente possibilita a reflexão, o confronto de saberes, o que pode se dar, por exemplo, por meio da leitura. Assim, é oportuno reconhecer que a leitura é condição indispensável ao desenvolvimento social e à realização individual e, nesse sentido, é necessário saber ensinar o prazer da leitura. Para Yunes e Pondé (1989), pouco adiantará o esforço de multiplicar a produção de livros se o homem não estiver convencido das vantagens de ler.

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