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A proposta desta abordagem concentrar-se-á, com maior relevância, nas práticas restaurativas com adolescentes em conflito com a lei, pois tais exemplos contribuirão para uma análise mais aprofundada do modelo de Justiça Restaurativa implementado na Justiça da Infância e Juventude de Florianópolis/SC, tema do último capítulo deste trabalho.

Embora com antecedentes mais antigos, a justiça restaurativa, verdadeiramente, tornou-se um movimento social por volta dos anos 1970, ao mesmo tempo em que a comunidade de mediação emergia (WOOLFORD; RATNER, 2008, p. 69, tradução nossa).

Woolford e Ratner (2008, p. 69, tradução nossa) citam como uma das primeiras experiências de justiça restaurativa, o modelo de Kitchener, cidade da província canadense de Ontário, assim nomeada: Programa de Reconciliação Vítima e Ofensor – Victim Offender Reconciliation Program [VORP]. Em 1974, o modelo foi implantado após diversas

práticas de vandalismos por dois adolescentes na região próxima a Elmira, em Ontário. Foi Mark Yantzi, Oficial de Justiça, que propôs ao juiz o encontro entre os adolescentes e as vítimas. Como um menonista, Yantzi estava interessado em uma abordagem de pacificação na justiça criminal. Todavia, o Oficial de Justiça jamais esperou que o juiz concordasse com sua proposta tampouco que lhe atribuiria a tarefa de facilitar o encontro entre os adolescentes e as vítimas. Juntamente com David Worth, que trabalhava para o Comitê Central Menonista, Yantzi aceitaram a função e apresentaram resultados encorajadores. Os adolescentes ficaram face-a-face com as vítimas, assim como repararam os danos causados, o que estimou a criação de um projeto de justiça reparadora (PEACHEY; 2003, apud WOOLFORD; RATNER, 2008, p. 69, tradução nossa)27.

Vezzulla (2004, p. 89), por sua vez, aponta o programa de Barcelona como uma das primeiras experiências de medição na justiça juvenil. Em maio de 1990, pois, a Dirección General de Justicia Juvenil começou a aplicar a mediação.

Ao citar Vidal (1996), Vezzulla (2004, p. 89) destaca as dificuldades iniciais da experiência, em razão da inexistência de previsão legal de procedimentos conciliatórios. Apenas a partir da Lei Orgânica 4/12, que regulamentou os “Juizados de Menores”, foi recepcionada a prática de reparação, em dois momentos distintos:

1. Como alternativa ao processo judicial, como uma forma de parar o procedimento atendendo à pouca gravidade dos fatos, à situação especial do adolescente e à proposta deste de reparar o dano ocasionado;

2. Como suspensão da medida judicial toda vez que, estando já desenvolvido o procedimento judicial, se apresentasse ao adolescente e seus responsáveis a possibilidade de fazer um acordo de reparação extrajudicial.

Esses enunciados inauguraram, com o conceito material de reparação como reparação do dano, reposição do bem ou de seu valor, um espaço à conciliação e, por conseguinte, a um “tratamento direto entre o ofensor e os supostos prejudicados, o que os obriga a dialogar, a trocar sentimentos, dores, mágoas, a repensar o ato violento junto ao outro, desde o outro e junto a ele” (VEZZULLA, 2004, p. 90).

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Despite its ancient lineage, restorative justice truly took hold as a social movement in 1970s, around the same time that community mediation emerged. One of the earliest restorative justice experiments, the Kitchener Ontario Victim Offender Reconciliation Program (VORP), took place in 1974, after a vandalism spree by two teenagers in nearby Elmira, Ontario, inspired probation officer Mark Yantzi to propose to te judge that the offenders meet with their victims. As a Mennonite, Yantzi was interested in taking a peacemaking approach to criminal justice, but he never expected the judge to agree to his approach and to assign to him the task of facilitating meetings between the teenagers and their victims. He and David Worth, who worked for de Mennonite Central Committee, took on this challenge, and its encouraging results – the teenagers faced their victims and paid restitution – spurred them to create a post-sentencing restorative justice project dedicated to reconciling offenders with their victms.

Vezzulla (2004, p. 91) explica que a lei catalã não é explicita quanto ao modo que se procederá a reparação da vítima. Ela limita-se a valoração do esforço realizado pelo adolescente no momento em que repara o dano causado. É com essa referência, pois, que o programa de reparação de Barcelona adota a mediação, prática pelo qual adolescente e vítima elaboram o programa de reparação que atende aos interesses de ambos.

Inúmeras são as vantagens deste procedimento neste aspecto. É que, ao permitirem que o jovem e a vítimadecidam os programas de reparação que satisfaçam seus interesses, o poder de decisão é, então, daqueles, o que, ainda que parcialmente, emancipa-os “da tutela do Estado ao serem reconhecidos como sujeitos, e não objetos de seus operadores” (VEZZULLA, 2004, p. 91).

O projeto de mediação integral da Espanha, além de trabalhar o diálogo entre a vítima e o ofensor, inclui também e especialmente a situação do adolescente em relação à sua família, no que diz respeito à sua identidade, condição atual, assinalando que os familiares devem estar envolvidos a fim de possibilitar um atendimento mais amplo do adolescente e do que o levou para praticar o ato infracional (VEZZULLA, 2004, p. 92).

O programa de Catalunha é formulado em duas partes, quais sejam, a primeira, que ocorre o contato com as partes e, a segunda, com a mediação conjunta.

Antes do encontro entre a vítima e o adolescente, é necessário verificar se as partes tem interesse no programa e, em caso positivo, ambas devem estar preparadas positivamente para o diálogo (VEZZULLA, 2004, pp. 93-94).

Caso a mediação ocorra em todas as suas fases, o momento que deve ser destacado, ápice do procedimento, é o encontro entre a vítima e o adolescente. É que, nesse momento, os envolvidos transmitirão um “ao outro as razões, as circunstâncias de cada um, num esforço por uma mútua compreensão. Caso se produza um acordo, este deverá atender aos interesses de ambos e às possibilidades reparatórias do adolescente” (VEZZULLA, 2004, pp. 93-94).

Vezzulla (2004, p. 94), citando Vidal (1996), define como objetivos do programa:

1) possibilitar a partir do Judiciário o restabelecimento da paz social;

2) Incorporar à “justicia juvenil” elementos restitutivos ou compensatórios em relação à vítima;

3) responsabilizar o adolescente autor de ato infracional das próprias ações e de suas conseqüências;

4) Oferecer à vítima a possibilidade de participar na resolução do conflito;

5) Possibilitar à vítima a recuperação da tranqüilidade, da paz e que seja compensada pelos danos sofridos;

6) Aproximar o Judiciário dos cidadãos através da viabilização de formas ágeis e participativas para a resolução dos conflitos que também são da comunidade.

Ainda no continente europeu, urge citar, também, a experiência belga no campo de práticas restaurativas a partir da pesquisa de Daniel Achutti (2013).

Antes mesmo do programa espanhol, no final da década de 1980, iniciaram- se os primeiros programas restaurativos na justiça juvenil, que possuía uma finalidade pedagógica. Tal qual no ordenamento jurídico espanhol, a Bélgica deparou-se com diversas dificuldades, em especial, em razão da ausência de uma base legal para promoção da mediação, de políticas públicas coerentes em nível federal e Comunitário, além de falta de orçamento específico para a execução de problemas locais, o que resultou no atraso do desenvolvimento da justiça juvenil restaurativa entre o final dos anos 1980 e meados dos anos 1990 (AERTSEN, 2006, p. 68-69, apud ACHUTTI, 2013, p. 162).

Em 1999, foram criados programas restaurativos no âmbito da justiça juvenil em todos os distritos judiciais da Comunidade Flamenca, adotando-se três diferentes modelos: mediação vítima-ofensor, serviço comunitário e programas de treinamento. De forma semelhante, a Comunidade Francesa acolheu tal política e, em 2000, a Univerdade de Leuven conduziu um projeto piloto de conferências restaurativas para delitos graves (AERTSEN, 2006, p. 70. Apud ACHUTTI, p. 162).

Apenas em 2006, a Lei Juvenil de 1965 da Bélgica foi alterada e, então, recepcionaram-se a mediação e as conferências restaurativas, em posição mais clara e central, pois determinou aos juízos que esses deem preferências pelas práticas restaurativas de resolução de conflito, além de ter instituído que os promotores considerassem a possibilidade do uso da mediação antes de iniciar o processo judicial (VAN DOOSSELAERE; VANFHAECHEM, 2010, p. 4. Apud ACHUTTI, 2013, p. 162).

Achutti (2013, p. 167), em suas entrevistas com os profissionais responsáveis pelas práticas restaurativas proporcionadas através de ONGs da Bélgica, listou três dos principais e primeiros problemas enfrentados pelos defensores do novo modelo:

primeiro, concluiu-se que o que estava sendo realizado possibilitava o aumento da rede de controle social, pois pequenos casos, que costumavam ser arquivados pelo Ministério Público em função do excesso de trabalho, poderiam voltar a ser objeto de algum tipo de controle. O segundo problema estava relacionado ao fato de os ofensores passarem a forçar a realização dos acordos, pois ao ouvir do promotor que se o caso fosse mediado e resolvido, o processo seria arquivado, o ofensor passava a tentar o acordo de todas as formas possíveis. Por fim, do segundo problema surgiu o terceiro, pois as vítimas, em alguns casos, passaram a se sentir usadas: com o pedido de desculpas do ofensor, o promotor arquivava os processos e a vítima não obtinha o retorno que desejava, sentindo-se insatisfeita com o resultado final da mediação. Tais entraves impulsionaram esses profissionais a investirem tempo e trabalho na divulgação do serviço de mediação para a sociedade, oferecido de forma

autônoma em relação ao sistema de justiça. Contudo, a procura pela mediação ainda sim não foi satisfatória, o que resultou no quarto problema: “a baixa procura poderia estar relacionada com o fato de o serviço ser oferecido de forma paralela ao sistema judicial, sem a segurança legal sobre o que poderia acontecer após a mediação” (ACHUTTI, 2013, p. 168).

Diante desse vazio, compreendeu-se que a medição necessitava um mínimo de segurança jurídica, isto é, era necessário ter um contato com o sistema judicial, o que, inclusive, permitia que os envolvidos “tivessem clareza sobre sua posição no procedimento e sobre os seus direitos” (ACHUTTI, 2013, p. 169).

A tentativa de aproximação, naquele momento, não teve resultados positivos. Isso porque o Ministério Público questionava sobre o seu interesse na mediação, pois sua função precípua – acreditava-se – era de garantir o processo contra os ofensores (ACHUTTI, 2013, p. 170).

Aertsen (2006, p. 73-75), citado por Achutti (2013, p. 174), revela que a consolidação da justiça restaurativa Belga ocorreu somente após a previsão da mediação na legislação federal, em 2005, além do papel desempenhado pelas ONGs e os projetos de pesquisa realizados pela Universidade de Leuven, que, em 2000, criou o Fórum Europeu de Justiça Restaurativa.

No que toca às experiências nacionais, por sua vez, suas raízes originaram- se principalmente de programas de restauração em âmbito escolar. O primeiro programa com componentes da Justiça Restaurativa, assim, aconteceu em 1998, com o “Projeto Jundiaí: Viver e Crescer em Segurança”. Neste, 26 escolas de 2º grau da região de Jundiaí/SP receberam o projeto, que objetivava “testar um programa para melhorar condutas, prevenir desordem, violência e criminalidade na escola” (PRUDENTE, p. 44, in SPENGLER, LUCAS, 2011). O programa criou as Câmaras Restaurativas que visavam resolver casos mais complexos e, neles, reconstruir as relações entre escola e sociedade, reparar danos e minimizar consequências negativas futuras. Contudo, tal projeto sobreviveu até 2000 (PRUDENTE, p. 44 in SPENGLER, LUCAS, 2011).

Durante os anos de 2002 e 2003, o “Projeto da Serra”, também com as câmaras restaurativas conectadas com as escolas, atendia os casos com reflexos na Justiça da Infância e Juventude. O projeto aconteceu em 12 escolas de ensino médio e uma escola do ensino fundamenta nas seguintes cidades do estado de São Paulo: Caieiras, Mairiporã e Francisco Morato (PRUDENTE, p. 44 in SPENGLER, LUCAS, 2011).

Também no ano de 2002, a Justiça Restaurativa foi adotada, pela primeira vez, na capital gaúcha no “Caso Zero”. Essa experiência, diferente daquelas ocorridas no

estado de São Paulo, aconteceu na própria justiça, especificamente na 3ª Vara do Juizado Regional da Infância e da Juventude, referente a delito envolvendo dois adolescentes. Três anos após, implementou-se o projeto “Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro”, com ênfase nos processos judicias da 3ª Vara, que acabou por motivar outros estudos e práticas inspirados no novo modelo de justiça (BRASILa, 2015).

Assim, é no sul do Brasil que se inicia o movimento nas Justiças da Infância e Juventude inspirado nos pressupostos de restauração, isto é, com enfoque não mais de punição ou retribuição, mas na resolução de conflitos, também articulado com os ideais da doutrina da proteção integral e da Cultura de Paz (BRASILa, 2015).

Em paralelo as experiências do Rio Grande do Sul, em Joinville/SC, foi instalado, através da portaria n. 5/2003, o “Projeto Mediação” na Vara da Infância e Juventude. A portaria regulamentou as atribuições da equipe interprofissional, como profissionais da área de serviço social, orientação educacional, direito e psicologia, ligada à Vara nos casos de apuração de ato infracional, assim como a aplicação de técnicas de mediação em questão que envolvam adolescentes em conflito com a lei (PRUDENTE, p. 55 in SPENGLER; LUCAS, 2011, p. 55; NIEKIFORUK; ÁVILA, 2015, p 58).

O primeiro projeto catarinense, que contou com o apoio do Instituto de mediação e Arbitragem de Portugal (IMAP) e o Poder Judiciário do estado, foi de responsabilidade do magistrado Alexandre Morais da Rosa que, em 1999, teve contato com a mediação por intermédio de Juan Carlos Vezzulla e Luis Alberto Warat. O programa consistiu em “agilizar processos em trâmite no fórum e dar um atendimento pessoal e de qualidade na prática alternativa na resolução de conflitos” (NIEKIFORUK; ÁVILA, 2015, p. 58).

Dentre outras questões, a portaria n. 05/2003 previa a possibilidade do complemento do parecer da equipe interprofissional pelas entidades de educação que conheçam a situação do adolescente (art. 2, parágrafo único), além de prever a possibilidade de, a qualquer tempo, a equipe interprefissional ser chamada a emitir parecer verbal ou por escrito (art. 4º). O art. 6º, por sua vez, disciplina as hipóteses de aplicação da remissão suspensiva ou definitiva, sendo que, no dispositivo seguinte, a conciliação será reconhecida “quando o adolescente reconheça o dano causado e se desculpe perante a vítima, e esta aceite suas desculpas e, havendo possibilidade, repare o dano causado” (NIEKIFORUK; ÁVILA, 2015, p. 59).

É necessário destacar que o projeto não disciplinou nenhuma distinção do ato infracional, se leve ou grave, mas das possibilidades restaurativas em si. Isso porque, com fundamentos do próprio paradigma, o desenvolvimento da justiça restaurativa não deve ser

definido “a partir da gravidade ou não do delito, e sim a partir de um conflito” (NIEKIFORUK; ÁVILA, 2015, p. 60).

Há outras experiências que também merecem ser assinaladas, como o projeto “Justiça, Educação e Comunidade: Parcerias para a Cidadania”, implementado na cidade de São Caetano/SP e apoiado pela Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça e pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento; o projeto “Justiça e Educação em Heliópolis e Guarulhos: parceria para a Cidadania” e o projeto de Campinas/SC, “Justiça e Educação – Novas perspectivas” (PRUDENTE, pp. 57-61 in SPENGLER; LUCAS, 2011).

Enumeradas a vasta vivência de práticas restaurativas com adolescentes em conflito com a lei, é possível concluir, como Prudente (p. 63 in SPENGLER; LUCAS, 2011), que, no Brasil, assistimos a uma proliferação da Justiça Restaurativa, embora esta saga tenha começado com atraso em relação às experiências internacionais.

Nesse aspecto, Alexandre Morais da Rosa (p. 113 in SPENGLER; LUCAS, 2011) ressalta a necessidade de discussão e estudo das perspectivas da Justiça Restaurativa, afirmação reforçada após o noticiado pelo Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para prevenção do Delito e tratamento do delinquente (Ilanud) acerca das dificuldades de compreensão da mediação e da Justiça Restaurativa dos diversos projetos em fase de experimentação no Brasil.

Os elementos já compreendidos são suficientes para avançar, no próximo capítulo, com a análise da experiência do projeto de mediação com adolescentes autores de ato infracional de Florianópolis/SC.

CAPÍTULO III

A Justiça Restaurativa na Vara da Infância e Juventude de Florianópolis/SC

A justiça restaurativa, como vista nos dois últimos tópicos, representa um novo horizonte, o qual busca construir outra resposta ao ato infracional praticado pelo adolescente, assim como atender, de forma efetiva, vítimas, adolescentes, comunidades e a sociedade para a construção de uma verdadeira cultura de paz.

De outra ponta, como bem alerta Prudente (p. 64 in SPENGLER; LUCAS, 2011), é ilusão esperar grandes realizações dessa se não for dotada de autonomia e suficientes recursos institucionais e econômicos. Aliás, esses entraves já foram percebidos na experiência da justiça restaurativa belga.

Nessa perspectiva, este trabalho, em especial, o presente capítulo, espera contribuir, de alguma forma, para o debate e reflexão do Centro de Justiça Restaurativa da Vara da Infância e Juventude de Florianópolis/SC, pois, como um novo paradigma para o enfrentamento dos conflitos, assim como diante das dificuldades do atual sistema socioeducativo e a hermenêutica a esse dedicado, é imperioso sua consolidação.

Convém assinalar que o conteúdo deste capítulo tem como principais referências teóricas a dissertação de Juan Carlos Vezzulla, “A mediação de conflitos com adolescentes autores de ato infracional”, o projeto pedagógico do Centro de Justiça Restaurativo (CJR), elaborado, em sua versão original, por Eliedite Mattos Ávila, e revisado e ampliado por Brigitte Remor de Souza May, Lilian Domingues, Cristina Mulezini Gonçalves e Matheus Sant’Ana Vieira, além de entrevista realizadas com a coordenadora do CJR, Cristina Gonçalves.