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Os movimentos negros ressignificam sua identidade: uma cultura histórica

CAPÍTULO II. Lutas de classe, lutas de raça: O Movimento Negro Unificado e o

2.3. Os movimentos negros ressignificam sua identidade: uma cultura histórica

Do ponto de vista do país que se anunciava com as propostas de reforma da sociedade brasileira apresentadas por João Goulart, o golpe militar de 1964 tratou de, em nome do combate à corrupção e ao comunismo, impor outra proposta econômica, com amargos reflexos no campo político e social. Para atingir seus objetivos, lançou mão de inúmeras estratégias para ―pacificar a sociedade civil‖ e estabelecer importantes alianças com setores da política nacional, do capitalismo nacional e do capitalismo internacional.

Para Nilma Lino Gomes:

Nesse contexto, as fortes marcas da repressão, com as perseguições às formas organizativas e cassação de direitos políticos, levaram a sair da cena pública não só a luta formal contra a discriminação racial, como também, as demandas dos outros movimentos sociais, embora os sujeitos que as defendiam continuassem agindo contra a vontade do Estado autoritário (2007, p. 305).

No âmbito das relações raciais, Antônio Sérgio Alfredo Guimarães constata, em Racismo e anti-racismo no Brasil, que um dos instrumentos ideológicos de ―pacificação‖,

entre 1968 e 1978, foi o estabelecimento da democracia racial como ―um dogma, uma espécie de ideologia do estado brasileiro‖ (2009, p. 66). Já em Classes, raça e democracia, discorre sobre os comprometimentos sociais, políticos e econômicos dessa ideologia de estado sobre a população negra:

Meu entendimento, [...], é que devemos ver na democracia racial, também, um compromisso político e social do moderno Estado republicano brasileiro, que vigeu, alternando força e convencimento, do Estado Novo de Vargas até a ditadura militar. Tal compromisso consistiu na incorporação da população negra brasileira ao mercado de trabalho, na ampliação da educação formal, enfim na criação das condições infra-estruturais de uma sociedade de classes que desfizesse os estigmas criados pela escravidão. A imagem do negro enquanto povo e o banimento, no pensamento social brasileiro, do conceito

de ―raça‖, substituídos pelos de ―cultura‖ e ―classe social‖, são suas

expressões (2002, p. 110).

Com efeito, essas iniciativas, como destaca Guimarães, também se transformaram num eficiente mecanismo de desarticulação das elites intelectuais negras. Enquanto representantes desta, temos Guerreiro Ramos, então Deputado Federal, eleito pelo Rio de Janeiro em 1962, e cassado em 1964; Abdias do Nascimento, que se autoexila em 1968, nos Estados Unidos. Eram sintomas de um período de semiclandestinidade do movimento, até o momento em que ―a negadinha jovem começou a atentar para certos acontecimentos de caráter internacional: a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos e as guerras de libertação dos povos negroafricanos de língua portuguesa‖ (GONZALEZ, 1982, p. 30).

Em entrevista a Verena Alberti e Amilcar Araujo Pereira, para o CPDOC, Amauri Mendes Pereira84 comenta essa influência externa sobre os ativistas negros brasileiros:

Eu fiquei muito impressionado com a morte de Luther King, com os Panteras Negras, aquilo me galvanizou. Eu acompanhava tudo, ponto por ponto: Muhammad Ali era Cassius Clay; a Angela Davis, que saltou do tribunal para fugir; o julgamento e a luta dos Panteras Negras; os assassinatos [...]

[...] Eu comecei a ler Alma no exílio, que foi a experiência de [Eldridge] Cleaver, que era uma das principais lideranças dos Panteras Negras, e logo

depois ―entrei‖ no Fanon. Li os dois ao mesmo tempo. Foi uma loucura! Aquilo era demais! Fanon era a crucialidade: ―a violência como parteira da História‖ (2007, p. 74-75).

Mas, ainda assim, com todo o risco imposto pela ditadura, as leituras sobre (e das) experiências negras nas lutas pelos direitos civis nos Estados Unidos da América do Norte e nas lutas pela descolonização africana continuavam a acontecer, ainda que no plano pessoal.

84 ―Amauri Mendes Pereira nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 22 de setembro de 1951. Formado em

Educação Física pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1974, foi fundador da Sociedade de Intercâmbio Brasil-África (Sinba) no mesmo ano, e redator e dirigente do jornal Sinba, publicado pela entidade entre 1977 e 1980. Participou da criação do Movimento Negro Unificado (MNU) em 1978, em São Paulo, e integrou a direção do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN), fundado em 1975, no Rio de Janeiro, em dois momentos: no início da década de 1980 e entre 1992 e 1996, quando foi eleito presidente da entidade. Doutor em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), à época da entrevista era pesquisador do Centro de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Cândido Mendes‖ (ALBERTI; PEREIRA, 2007, p. 19).

Oliveira Silveira, igualmente entrevistado para o CPDOC, destaca a importância que teve o livro Reflexões sobre o racismo, de Jean Paul Sartre, para o seu despertar sobre a questão racial:

O livro é importante porque, na segunda parte, contém o Orfeu Negro, que é a apresentação que Sartre faz para a Antologia da poesia negra e malgaxe, de Léopold Sédar Senghor o poeta senegalês que foi presidente do país e é uma das expressões da négritude, que surgiu na França, mas é de matriz antilhana e africana. Aimé Césaire, Léon Damas e Léopold Sédar Senghor são os três nomes básicos da négritude (2007, p. 73).

Essas conexões eram feitas sob um contexto fruto da crise do taylorismo e do fordismo, cujas consequências desembocam no desemprego e na flexibilização econômica, assim como diante da forte repressão política da ditadura militar, os sindicatos, especificamente os de orientação socialista e comunista, perdem sua condição de sujeitos centrais das lutas da classe trabalhadora e vanguarda dos movimentos sociais. O movimento operário85 passa a conviver em seus cenários de resistência e luta com outros atores sociais, tais como o movimento feminista e o movimento negro, muito mais inteirado com as questões internacionais acima já citadas do que nacionais, que aconteciam fragmentadamente.

As entrevistas de Verena Alberti e Amilcar Pereira deixam a entender que uma maior compreensão sobre o que estava acontecendo com o movimento negro no Brasil se deu a partir do momento em que ocorreram, com maior intensidade, contatos entre os ativistas da geração de 1970 com os antigos militantes. Outro ponto importante para a conquista de uma identidade de luta pelo ativismo negro no Brasil reside na formação de grupos e a consequente formação de redes de relações entre as organizações negras e entre ativistas.

Segundo Amauri Pereira:

85 Precisamos destacar que no final dos anos de 1970 há uma retomada mais consistente da luta dos trabalhadores

do campo e da cidade. No campo, a luta pela terra conta com a ação da Comissão Pastoral da Terra (CPT), e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Na pauta desses grupos, a luta pela reforma agrária, quer seja para conquistar o direito de permanecer na terra, no que diz respeito à resistência de posseiros na Amazônia, ou para ter o direito de acesso a ela, em se tratando das mobilizações pelas ocupações de terra no Nordeste e no Centro-Sul. Na cidade, a mobilização de diversas categorias conduziu os trabalhadores a reorganizar o movimento sindical, a formar uma Central Única dos Trabalhadores (CUT), e o Partido dos Trabalhadores (PT). Ver: SANTANA, Ana Cláudia Farranha. A central única dos trabalhadores − CUT e a luta pela democracia: elementos de uma trajetória. 1999. 189 f. Dissertação (Mestrado em Ciência Política)– Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 1999. Disponível em: <www.ifch.unicamp.br/pos/cp/dissertacoes/1999/104.pdf> . Acesso em: 22 ago. 2011.

O objetivo da Sociedade de Intercâmbio Brasil-África, Sinba, criada em 1974, era fazer intercâmbio Brasil-África. Mas como fazer isso? Não tinha nada. África, para a gente, ainda era a África, a gente não conhecia nada. Começamos a conhecer toda essa literatura, essa luta, através do Centro de Estudos Afro-Asiáticos. O passado a gente só veio a conhecer naquele

momento. Eu não tinha a menor noção de ―movimento negro‖. Para mim, a

referência era os Estados Unidos. No Brasil, nunca tinha tido. Eu vou ouvir o nome de Abdias Nascimento já em 1975, 76: um, dois anos depois de estar

dedicado à luta. Ninguém conhecia. O Yedo Ferreira uma vez falou: ―Eu lembro que tinha o Abdias Nascimento‖. Mas o Yedo também não conhecia,

porque na época ele era do Partido Comunista, então não mexia com movimento negro, nunca tinha participado (2007, p. 93).

Não sem propósito, a ditadura recrudesce a repressão com a institucionalização da censura, com a promulgação do AI-5 em dezembro de 1968, e a consecução da totalização do regime pela efetivação das prisões, das torturas e das repressões. Mas Edson Cardoso86, militante do MNU de Brasília entre os anos de 1987 e 1995, nos revela outro efeito da censura sobre a ação dos grupos negros:

Nós estávamos vivendo uma época em que a ditadura tinha consciência do noticiário que estava no mundo, das lutas na África e do que estava acontecendo nos Estados Unidos. E ouve a tentativa, sabendo qual era a

situação no Brasil, de criar um ―tapume‖, porque aqui era um foco de

possível agitação. Ou seja, o tema era controlado pela polícia, e nos veículos de comunicação ou na televisão havia interdição explícita a ele (2007, p. 86- 7).

Entretanto, mesmo com a proibição da veiculação midiática de temas como ―racismo e relações raciais‖, os debates em torno desses temas no Brasil foram retomados no início dos anos de 1970, também pela porta da cultura e, mais adiante, respaldados por pesquisas censitárias, anunciava-se uma discussão que ainda deve ser feita: que a ―retomada político- ideológica‖ do movimento negro passa pelo aprofundamento da discussão sobre classe e raça.

86―Edson Cardoso nasceu na cidade de Salvador em 10 de outubro de 1949. Em 1973 entrou na Universidade

Federal da Bahia, no curso de Letras, que abandonou no quarto ano para ir morar em Porto Alegre. Em 1980, já vivendo em Brasília, fez novo vestibular para a Universidade de Brasília, onde terminou a graduação em Letras e fez o curso em Comunicação. Professor de literatura da rede particular de ensino, entre 1981 e 1995 foi militante do MNU em Brasília, e em 1984 foi fundador da Comissão do Negro do Partido dos Trabalhadores na capital federal. Participou da Coordenação Executiva da Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, em 1995. Foi Chefe de Gabinete do Deputado Florestan Fernandes (PT-SP), entre 1992 e 1995, e responsável pela criação, em 1997, da assessoria de relações raciais da Câmara dos Deputados, quando o Deputado Paulo Paim (PT-RS) foi eleito terceiro secretário da mesa da Câmara, cargo que exerceu entre 1997 e 1999; foi também chefe de gabinete do deputado Ben-Hur Ferreira (PT-MS, 1999-2000 e 2002-2003) e assessor de relações raciais no Sendo quando o senador Paulo Paim era primeiro vice-presidente da Casa, entre 2003 e 2005. Na época da entrevista era coordenador editorial do Jornal Irohìn, do qual foi fundador em 1995‖ (ALBERTI; PEREIRA, 2007, p. 22-23).

Um depoimento de Gilberto Leal87 nos permite perceber os riscos assumidos pelas ações do movimento negro no período mais violento do regime de exceção:

Durante o AI-5, falar que o Brasil era um país racista era subversão e, conseqüentemente, você estava sujeito a todas as penalidades. Então, nós convivíamos com a luta negra em plena ditadura militar, com o cacetete da polícia, com o braço armado da ditadura batendo firme na gente. [...] Mas quem começou com o processo na Bahia de movimento político contestatório enfrentando os poderes constituídos foi o movimento negro organizado (LEAL, 2007, p. 127).

Nesse sentido, as referências externas de pensamento e de lutas negras, a contestação ao regime militar e a reorganização das organizações negras a partir do aporte da cultura, indo inevitavelmente em direção ao campo político, fazem com que a consciência racial se fortaleça na busca por uma identidade que possa os unir na luta antirracista. Se procurarmos pensar na questão da identidade da população negra como elemento-chave da sua relação dialética com a sociedade em geral, encontraremos no entrelaçamento dos campos culturais e políticos o espaço pelo qual a identidade étnica negra irá ser forjada. Ao falar sobre o seu encontro com a identidade negra, Marcos Cardoso88 acaba por mapear não só a trajetória de sua construção identitária, mas também a trajetória de muitos grupos espalhados pelo país:

Primeiro, através da música. Através da identificação, por exemplo, com o Michael Jackson, quando criança, que era da minha época, com o James Brown, com a música soul, daí os bailes e a tentativa de organizar a juventude naquele momento. Aí é que começa esse processo de discussão. Além disso, como eu morava num bairro operário, a violência era muito presente. No período final da ditadura era um bairro onde a polícia estava constantemente prendendo, averiguando, pegando documentos, humilhando operários... Isso vai criando uma revolta, você acaba virando um rebelde sem

87 ―Gilberto Leal nasceu na cidade de Salvador em 15 de agosto de 1945. Formou-se m geologia na

Universidade Federal da Bahia, onde ingressou em 1965. Durante a década de 1970, participou do Núcleo Cultural Afro-Brasileiro e integrou o grupo Malê Cultura e Arte. Participou da institucionalização do MNU na Bahia, mas rompeu com a entidade ainda no final de 1979. Em 1984 fundou a Niger Okan, entidade que dirigia à época da entrevista. Participou da Comissão de Organização do I Encontro Nacional de Entidades Negras (Enen), em São Paulo, e da construção da Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen), ambos em 1991‖ (ALBERTI; PEREIRA, 2007, p. 24).

88―Marcos Cardoso nasceu em Belo Horizonte em 11 de setembro de 1956. Formado em Filosofia e mestre em

História pela UFMG, foi um dos fundadores do MNU na cidade de Belo Horizonte, em 1979. Foi assessor da Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura de Belo Horizonte entre 1993 e 1996 e coordenador geral do Projeto Tricentenário de Zumbi dos Palmares e do I Festival Internacional de Arte Negra de Belo Horizonte. Analisa de Políticas Públicas da Prefeitura de Belo Horizonte desde 2001, entre 2004 e 2005 foi gerente de projetos da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), órgão vinculado à Presidência da República com status de ministério. Ocupando a Subsecretária de Articulação Institucional. Foi ainda Secretário Executivo do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR) no mesmo período‖ (ALBERTI; PEREIRA, 2007, p. 31).

causa, e daí começou um processo de formação da consciência para dar o salto para a organização (2007, p. 64-65).

Dessa forma, para Terry Eagleton, serão os movimentos políticos identitários, dos quais os movimentos negros fazem parte – com o recuo do movimento sindical no início dos anos de 1970 – que terminam assumindo a vanguarda dos debates políticos, sendo a cultura entendida como um conceito operado substantivamente, epistemologicamente e gramaticalmente, por exemplo, pelas lutas por empoderamento da agência negra nos Estados Unidos da América do Norte, na África ou no Brasil:

A cultura estava assim também em jogo em debates sobre o próprio destino das sociedades ocidentais, que já se encontravam desorientadas pela perda da identidade imperial, americanização cultural, a influência crescente do consumismo e dos meios de comunicação de massa, e as vozes cada vez mais articuladas de intelectuais oriundos da classe operária que haviam colhido os benefícios da educação superior sem com isso endossarem seus valores ideológicos (EAGLETON, 2005, p. 179)

É, pois, na intersecção desses campos de atuação cultural e política que a experiência histórica da agência afro-brasileira produz identidade. Enquanto processo, a identidade negra está inevitavelmente articulada entre o passado e o presente, o individual e o coletivo, o particular e o social. E, como enfatiza Neuza Santos Souza89, a identidade a ser afirmada, enquanto construção permanente, é negra, uma vez que

saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas. Mas é também, e sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar a sua história e recriar-se em suas potencialidades (SOUZA, 1983, p. 17-18).

Nesse sentido foi fundamental o protagonismo dos movimentos sociais negros no processo de afirmação de uma identidade negra que não prescinde do fato dele mesmo afirmar Zumbi dos Palmares como sua maior referência. Imerso num ―jogo de identidades‖ (HALL

89 Autora do livro Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social, Neusa

dos Santos Souza era uma psicanalista lacaniana bem sucedida profissionalmente, negra baiana que, contrariando as estatísticas e as dificuldades de berço pobre, estudou, e estudou muito, Medicina e Psicanálise, estabelecendo-se no Rio de Janeiro, onde convivia com intelectuais e dava uma importante contribuição na luta contra a discriminação racial. No livro, a autora mostra a rejeição do negro por seu aspecto exterior e explica que é necessário um raro grau de consciência para que esse quadro se inverta. Quando isso acontece, a cor e o corpo do negro são sentidos como valor de beleza. A obra de Neusa Santos Souza é considerada a primeira referência sobre a questão racial na psicologia. Disponível em: <http://www.palmares.gov.br/?p=3166>. Acesso em: 15 set. 2011.

2006, p. 18), e sujeito aos seus efeitos, como a fragmentação ou a pluralização de identidades, os movimentos negros, a partir dos anos de 1970, tomam para si o direito de transcriarem suas referências em busca de uma unidade identitária. Dessa forma, suas mobilizações em torno da representação de Zumbi dos Palmares parecem visar não somente ao fortalecimento da identidade negra, mas, sobretudo, ao combate à ideologia da democracia racial, cuja meta reside na valorização da identidade mestra (HALL, 2006, p. 21), nesse caso, desracializada e embranquecida. Mas, como adverte Hall:

a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no

momento do nascimento. Existe sempre algo ―imaginário‖ ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre ―em processo‖, sempre ―sendo formada‖ (HALL, 2006, p. 38).

Mas como o início das mobilizações negras nos anos de 1970, em sua grande maioria, tinha sido através do campo da cultura − ―o ‗soul‘ foi um dos berços do movimento negro do Rio [...] [e em] [...] São Paulo‖ (GONZALEZ, 1982, p. 32-33) −, a conexão com o campo do político se dá na medida em que as semanas promovidas para divulgar, promover, estudar, discutir e expor a história e a cultura africana e afro-brasileira, passam a dar um outro sentido aos encontros da ―negrada‖, de acordo com Lélia Gonzalez (1982).

Nesta perspectiva, Para Paul Gilroy:

A identidade negra não é meramente uma categoria social e política a ser utilizada ou abandonada de acordo com a medida na qual a retórica que a apóia e legitima é persuasiva ou institucionalmente poderosa. Seja o que for que os construcionistas radicais possam dizer, ela é vivida como um sentido experimental coerente (embora nem sempre estável) do eu [self]. Embora muitas vezes seja sentida como natural e espontânea, ela permanece o resultado da atividade prática: linguagem, gestos, significações corporais, desejos (2001, p. 209).

Gilroy, ao nos fazer entender que não é possível estabelecer uma identidade negra apenas pela atuação em um campo da atividade humana, nos dá a complexidade das dimensões dos campos da atividade humana necessárias para compor os entrelaçamentos da identidade negra: a matriz histórica palmarina; os sistemas culturais e políticos, através dos quais os movimentos sociais negros transitam; e os valores civilizatórios que fazem parte das ações educativas.

Vale salientar que, no entendimento de Henrique Cunha Junior, a construção da identidade negra no período revela a luta dos movimentos negros para romper com o regime

de exceção e dois importantes desígnios da forma pela qual os militares faziam política: o mito da democracia racial e a ideologia do branqueamento. Segundo o ativista e intelectual paulista, radicado no Ceará:

Na ruptura dos primeiros anos (70, 71, 72, 73), é marcante a luta para escapar aos critérios do valor da sociedade branca. São muitos os esforços de valorização das culturas e manifestações negras dentro da própria comunidade. A palavra folclore, que era anteriormente usada para designar festas, cultos religiosos, reuniões musicais, é varrida do vocabulário. Conscientização é considerada a chave da questão. Os ataques aos preconceitos é uma forma de tomada de consciência para sair do marasmo do mito da igualdade racial e democrática. Mas não se reclama mais ao branco, nem se solicita que ele venha a entender a nossa situação (CUNHA JÚNIOR, 1992, p. 25-26).

Esse processo de conscientização aparece para Lélia Gonzalez como ―a retomada político-ideológica‖ do movimento negro que se deu a partir do campo da cultura e, de forma dinâmica e articulada, estendeu suas ações para o campo político. O Grupo Palmares de Porto Alegre/RS90, por exemplo, criado em 1971, propõe e realiza no mesmo ano o deslocamento das comemorações do treze de maio para o vinte de novembro: ―A homenagem a Palmares em 20 de novembro de 1971 foi o primeiro ato evocativo dessa data que, sete anos mais tarde, passaria a ser referida como dia nacional da consciência negra‖ (SILVEIRA, 2003, p. 29). Importante registrar que, este foi momento do primeiro contato entre o historiador Décio