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4 A REFERENCIAÇÃO E O TÓPICO EM PROCESSO

4.1 Os nomes do/no mundo: a referência em questão

O pensamento de que nomeamos os objetos constantes do mundo e os que há em nossa realidade cognitivo-social, e que essa ligação nome-coisa se apresenta como se já fosse predisposta e já existente anteriormente à própria língua, é algo que há muito se solidificou como “verdade”. A representação coisas-do-mundo como sendo igual aos nomes-dessas- coisas-do-mundo ganhou um espaço enorme e povoou diversas discussões por um bom tempo, sem contar que, ainda hoje, em especial no conhecimento popular, essa postura ainda perdura e é tida como legítima. Conforme apontam Mondada e Dubois,

A ideia segundo a qual a língua é um sistema de etiquetas que se ajustam mais ou menos bem às coisas tem atravessado a história do pensamento ocidental. Opomos uma outra concepção segundo a qual os sujeitos constroem, através de práticas discursivas e cognitivas social e culturalmente situadas, versões públicas do mundo. (2003, p. 17)

A questão, hoje, parece não ser mais discutir ou rediscutir o que se teve, se manteve ou se falou acerca desse “sistema de etiquetas” que sempre circulou as relações sociais como sendo predisposta até mesmo às relações sociais. O que se projeta, atualmente, quando esse assunto vem a destaque, é compreender não o nome-coisa, mas como os indivíduos, exatamente dentro da construção sociocultural, através de relações discursivas, vão formulando, mutualmente, as versões do mundo; como se reconstrói, infinitamente, o próprio discurso, a partir da coenunciação, e de que maneira o próprio mundo em si, a partir da linguagem, vai se remodelando, se realocando, se reconfigurando, se reorganizando e reconstruindo-se indefinidamente. “O problema não é mais, então, de se perguntar como a informação é transmitida ou como os estados do mundo são representados de modo adequado, mas de se buscar como as atividades humanas, cognitivas e linguísticas, estruturam e dão um sentido ao mundo.” (MONDADA & DUBOIS, 2003, p. 20). Não importa mais que o sintagma “linha”, por exemplo, grude-se, automaticamente, ao objeto apreendido por “linha de costura” ou por “linha de trem” ou por “linha de um time de futebol”; o que interessa é como “linha”, dentro de

um contexto discursivo-linguístico-cognitivo, promovido pelos processos de construção enunciativa no ambiente social, se mostra, se põe, e de que maneira se faz enquanto sentido no mundo do qual faz parte. Melhor dizendo, não é “linha” que diz o que é, mas como as propriedades da constituição intersubjetiva cultural, a partir da cognição enunciativa, fazem o termo “linha” significar – significação essa que pode adquirir infinitas polissemias, através de inúmeros signos. Mondada e Dubois já postulam algo que vai nesse caminho:

Com efeito – no lugar de partir do pressuposto de uma segmentação a priori do discurso em nomes e do mundo em entidades objetivas, e, em seguida, de questionar a relação de correspondência entre uma e outra – parece-nos mais produtivo questionar os próprios processos de discretização. Desejamos, além disso, sublinhar que, no lugar de pressupor uma estabilidade a priori das entidades no mundo e na língua, é possível reconsiderar a questão partindo da instabilidade constitutiva das categorias por sua vez cognitiva e linguísticas, assim como de seus processos de estabilização. (p. 19 – grifos das autoras)

Quando se trata de estudar língua, investigar processos de construção linguística, analisar linguagem dentro do seio social, pensar sujeitos falantes, é preciso compreender que o ponto de partida do estudo do processo (sócio)coenunciativo caminha pela instabilidade. Nada está posto objetivamente quando se estuda língua no uso social – tudo é processo de (des)estabilização, tentativa de produzir sentido; toda conversa, todo ato enunciativo, todo discurso formulado, qualquer que seja a ação falada no mundo, são possibilidades tentadas de estabilização do que é dito. O outro, o interlocutor, não possui a enunciação do “eu” antes de ser falada. É no ato de falar, no momento da exposição discursiva, que a enunciação se apresenta, procurando criar o sentido. Por isso, impossível falar em “etiquetas” ou formulações pré-estabelecidas. Nada na língua existe antes do dito, antes de apresentar-se ao mundo.

Não se pode mais, a partir de agora, considerar nem que a palavra ou a categoria adequada é decidida a priori “no mundo”, anteriormente a sua enunciação, nem que o locutor é um locutor ideal que está simplesmente tentando buscar a palavra adequada dentro de um estoque lexical. Ao contrário, o processo de produção das sequências de descritores em tempo real ajusta constantemente as seleções lexicais a um mundo contínuo que não preexiste como tal, mas cujos objetos emergem enquanto entidades discretas ao longo do tempo de enunciação em que fazem a referência. O ato de enunciação representa o contexto e as versões intersubjetivas do mundo adequadas e este contexto. (MONDADA & DUBOIS, p. 33-4 – grifos do autor)

Outrora, essa etiquetagem era tida como a referência aos objetos do mundo – um termo que fazia referência a uma coisa. Antes “Falar de ‘referência’ era, então, tratar de uma relação entre palavras isoladas e os objetos do mundo real que elas podiam etiquetar. Uma palavra como peixes simbolizaria os peixes que existissem na realidade, na exterioridade do que estava dito

no texto.” (CAVALCANTE, 2011, p. 15). Isso se mostra bem diferente, porque não se apreende mais relação direta e isolada entre as palavras e as coisas. Tal possibilidade de referência é nula, posto que esta “não é mais, de modo geral, considerada um problema estritamente linguístico, mas um fenômeno que concerne simultaneamente à cognição e aos usos da linguagem em contexto e em sociedade, há hoje em dia uma multiplicidade de quadros teóricos diferentes disponíveis para apreendê-la” (MONDADA, 2005, p. 11); ou seja, não é só o linguístico, não é só a ligação do que se fala com um suposto objeto, mas toda contextualização social que produz a compreensão do dito. “Como diz Rastier, a referenciação não diz respeito a ‘uma relação de representação das coisas ou dos estados de coisas, mas a uma relação entre o texto e a parte não-linguística da prática em que ele é produzido e interpretado’” (MONDADA & DUBOIS, 2003, p. 21).

Da mesma forma – e na mesma linha de raciocínio – se predispõe o texto escrito. Tal qual a coenunciatividade, o texto que se apresenta no papel (ou seja qual for o suporte) também carrega esse mesmo pressuposto de construção de sentidos do mundo através de processos de tentativa de estabilização. Não da mesma maneira que versa na conversa espontânea, mas num processo de escritura que está sendo colocado em prática a partir de um possível outro, de um possível interlocutor que irá atingir a estabilização (ou melhor, tentar atingi-la) assim que tiver contato com a leitura do que foi impresso. São modalidades diferentes – coenunciar e escrever/ler –, pertencentes, porém, a um mesmo sistema linguístico social, que atuam em conjunto, dentro das necessidades dos sujeitos em suas ações diárias, pois

O texto não representa a materialidade do cotexto nem é somente o conjunto de elementos que se organizam numa superfície material suportada pelo discurso; o texto é uma construção que cada um faz a partir da relação que se estabelece entre enunciador, sentido/referência e coenunciado, num dado contexto sociocultural. (CAVALCANTE, 2011, p. 17)

Sendo assim, é plausível dizermos que o texto-discurso – quer seja escrito ou falado – tem formulação de significado no ato, isto é, faz sentido, apenas, e apenas, nas relações sociais específicas (dentro de determinados contextos) de uso dos sujeitos interferentes e interferidos de uma determinada cultura. Referir, assim, não pode ser apontado como ato de refletir um termo, um objeto, um conceito ou uma coisa, seja ela qual for, é muito mais que isso. Essas articulações são apenas uma pequena parte do processo de referenciar, de fazer-se sentido no mundo através da enunciação. É certo afirmarmos, assim como o faz Cavalcante, que “O modo como aquele que enuncia (o enunciador) e seus possíveis interlocutores (ou coenunciadores) constroem a representação desses referentes [no escrito ou no falado] em suas mentes nunca é

o mesmo em qualquer situação efetiva de comunicação” (2011, 15), quaisquer que sejam as situações reais de uso da linguagem. Resumindo essa questão, sustentamos que

O ato de referir é sempre uma ação conjunta. Para a Linguística do Texto, hoje, fazemos referência a algo quando nos reportamos a pessoas, animais, objetos, sentimentos, ideias, emoções, qualquer coisa, enfim, que se torne essência, que se substantive quando falamos ou quando escrevemos. É na interação, mediada pelo outro, e na integração de nossas práticas de linguagem com nossas vivências socioculturais que construímos uma representação – sempre instável – dessas entidades a que se denominam referentes. (CAVALCANTE, 2011, p. 15-16 – grifos da autora)

Portanto, o ato de etiquetar as coisas cai por terra, dando lugar a uma construção conjunta, e social, de tentativa de estabilização do sentido, enquanto se constroem versões públicas do mundo, em cada enunciado que é realizado – o escrito ou o dito, seja em qual for o momento social do uso, integra, inevitavelmente, essa regra.