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Capítulo II (A Literatura para a Infância em análise)

3. Análise do texto de autor (texto narrativo):

3.1. Os ovos misteriosos

O conto Os Ovos Misteriosos (Soares, 1994) inicia com a expressão “Era uma

vez…” que nos conduz para um tempo indeterminado da ação. Todavia, podemos perceber que a história não se passa apenas num determinado momento ou num determinado dia. A passagem do tempo nota-se no decorrer do conto, através do uso das expressões: “Daí por diante…”, “No dia seguinte…”, “Depois do jantar…”, entre outras. Quanto ao espaço, não é uno, pois de início passa-se na capoeira e posteriormente na mata, local para onde a galinha foge para realizar o seu desejo.

Quanto ao narrador, é possível dizer-se que, é heterodiegético e omnisciente, dado que narra a ação mas não participa na própria. De referir ainda que não participando na história, mas conhecedor desta, o narrador adota um papel de proteção e aceitação perante a posição da galinha em aceitar todas as crias, chegando a comentar: “Como

podia ela abandoná-los depois de os ter chocado com tanto amor?...” (Soares 1994:

11).

No conto coloca-se em primeiro plano a galinha, personagem desconhecida, marcada por falta de nome próprio, como todas as outras personagens ao longo do conto, revelando-se uma figura corajosa, determinada e com um forte desejo de ser mãe:

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“Já pus 1000 ovos. Podia ser mãe de mil filhos. Mas não tenho nenhum por causa da gente gulosa – cacarejou certa manhã a galinha. – Vou fugir “ (Soares 1994: 1).

O sonho da maternidade ligado ao da liberdade origina a galinha a partir da capoeira, (local de cativeiro e frustração), e a arriscar-se para um espaço desconhecido, a mata. É na busca de liberdade e de realização do objeto, a que a galinha se propõe, surgindo o ninho. Este “ninho cheio de ovos de todos os tamanhos e feitios” (Idem, 3).

No que respeita à densidade psicológica desta personagem, aumenta nesta fase do conto, em que ela entra em contacto com as crias e apercebe-se das suas diferenças.

Mas a vontade de ser mãe é tanta, que para além das diferenças ou semelhanças entre as crias, existe o orgulho da galinha, em mostrar a sua ninhada aos outros animais da mata: - “Olhem a minha ninhada! – mostrava ela às galinhas do mato. É tão variada, é tão engraçada” (Idem, 10).

Mesmo não tendo por parte dos outros bichos a compreensão e aceitação “-Trata só do teu pinto. Não ligues aos outros bichos – aconselhava a perdiz” (Idem, 10), a galinha não recusa as suas crias, revelando-se assim uma heroína, pois não se deixou influenciar pelas opiniões dos outros.

Mas as diferenças que existiam entre as crias vão impor por parte da mãe galinha muito empenho e dedicação para poder acompanhar o desenvolvimento e crescimento das mesmas: “Só o pinto, naturalmente, se portava como um pinto” (Idem, 16), facilitando mais a galinha na satisfação dos seus caprichos, mas precisando, tal como os outros de um acompanhamento de mãe.

Quanto às crias – o papagaio, a serpente, a avestruz, o crocodilo e o pinto – apesar das todas as diferenças, empenham-se no sentido de criar uma união familiar. Assim todos unidos vão superar uma situação de perigo e deixam transparecer o ideal de união familiar, juntos ajudam cada um à sua maneira a salvar o pinto de uma situação de perigo.

Os valores incutidos pela mãe galinha tornaram as suas crias unidas, apesar de todas as suas diferenças, conseguindo-se assim chegar ao conceito de família.

No esquema actancial, a que Greimas dá a forma e que é diversas vezes referido no Dicionário de Narratologia (Reis 2007: 9), verifica-se a concretização do sonho, que só foi viável graças à aceitação da diferença, como podemos verificar no esquema seguinte:

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Destinador A galinha

Esquema Actancial de Greimas apud (Soares

2003: 11) Objeto O desejo de ser mãe

Destinatário As crias Adjuvante As crias que se ajudam Sujeito A galinha Oponente Os ovos

Na perspetiva da dinâmica da narrativa e segundo o modelo preconizado por Courtès, é importante salientar que este conto é marcado por uma sucessão de acontecimentos que nos levam de uma situação de falta até uma situação de equilíbrio, onde essa mesma falta é reparada.

J. Courtès destaca a necessidade de recorrer a três provas que se relacionam com a narrativa (Courtès 1979: 13):

Dinâmica da Narrativa (J. Courtès)

Prova Qualificadora Decisão da galinha fugir da copeira,

pois tinha o desejo de ser mãe.

Prova Decisiva Aceitação, da galinha, em chocar

todos os ovos, incluindo os que não eram dela.

Prova Glorificadora Aceitação da galinha em criar todas

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Segundo Courtès, a prova qualificadora da narrativa, desta narrativa é a decisão da galinha de fugir da capoeira: “Podia ser mãe de mil filhos. Mas não tenho nenhum por causa da gente gulosa. (…) Vou fugir” (Soares 1994:1), pois é a partir desse momento que toda a ação se desenvolve.

Quanto à prova decisiva, verifica-se quando a galinha afasta-se do ninho em busca de comida, surgindo-lhe mais quatro ovos, de todos os tamanhos e feitios. Ela, acha estranho mas decide chocá-los já que antes lhos tiravam agora tinha direito a todos, confirmando assim a aceitação e decide tomar conta de todos. Esta adoção, fez a galinha viver numa constante inquietação, tendo que se adaptar às necessidades de cada uma das crias. Ela “Era feliz mas vivia num desassossego”.

No que respeita à prova glorificadora, esta verifica-se na aceitação de todos os filhos por parte da galinha. Levando as crias a aceitarem-se e a respeitarem-se todas como irmãs, facto este que revela amor e carinho que têm entre si.

Um outro modelo de análise, e muito idêntico a este, é defendido por Ana Maria Macário Lopes, que divide a ação em cinco momentos distintos, correspondentes às três provas de (Reis; Lopes: 2007), como podemos analisar através do seguinte esquema:

Dinâmica da Narrativa (Ana Cristina Macário Lopes)

Estado Inicial Falta de ninho próprio.

Perturbação A fuga da galinha para a mata.

Transformação Construção de um ninho na mata

e o nascimento das crias.

Resolução Adoção de todas as crias e

aceitação das diferenças de cada.

Estado Final Equilíbrio com a realização de

uma festa e confeção de um bolo que agradasse a todas as crias.

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A narrativa parte de um estado inicial de falta, confirmado pela necessidade da galinha em ter o seu próprio ninho e assim puder ter a oportunidade de criar os seus próprios filhos, já que “(…) todos os dias punha um ovo e todos os dias vinha a dona com uma cestinha tirar-lho” (Soares 1994: 1). Esta carência leva a galinha a decidir fugir dando assim início ao estado de perturbação da ação.

Quando a galinha chega à mata, verifica-se a transformação da ação, quando “tratou de fazer o seu ninho com folhas secas, palhas, penugem, farrapos de lã. (…) Sentou-se nele e pôs um ovo muito branquinho” (p. 2), construindo assim o seu próprio ninho.

O ovo que a galinha pôs e o aparecimento de mais quatro ovos, que não eram seus, como a decisão de chocar os cinco ovos e o nascimento dos mesmos, também estão inseridos neste processo de transformação.

A resolução da ação é declarada na adoção das crias e aceitação das suas

diferenças. E de todos os bichos estarem contra a sua decisão. “Não ligues aos outros

bichos” (p. 10), pois só o pinto é que era o seu filho.

Por fim todas as situações e acontecimentos levaram a um estado final de equilíbrio, quando a galinha “para festejar, juntou todos os filhos e fez-lhes um bolo com vários andares” (p. 29). Para cada um dos andares correspondia um petisco para cada um dos filhos da galinha, visto serem todos diferentes e com vários gostos alimentares.

No que concerne à estrutura lógica da narrativa, não há uma relação de confirmação entre o estado inicial e o estado final, na medida e que o conto começa numa situação de falta e termina numa situação de equilíbrio. Existe linearidade entre o conto (os acontecimentos) e o plano do discurso, onde não se verificam nem analepses (recuos no tempo nem prolepses (avanços na ação). O tempo do discurso é muito menos que o tempo da história, na verdade, esta decorre durante algum tempo, tempo este de sair da quinta e ir para a mata, de eclosão dos ovos e do crescimento das suas crias. Há, porém, alguns diálogos, momentos em que o tempo do discurso é igual ao tempo da história.

O conto segue o esquema canónico, pois começa numa situação de falta, contudo termina numa situação de equilíbrio para o herói.

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